Um par de gêmeos santos, outro de orixás. O primeiro, conhecido pela medicina; o segundo, pela traquinagem. Em comum, apenas a fé e duas histórias que se confundem no 27 de setembro. Comecemos pelos santos.
Diz a crença popular que Cosme e Damião viveram por volta dos anos 260 d.C., em algum lugar da Ásia Menor. Cristãos desde sempre, praticaram a medicina sem cobrar nada por isso, sob o lema de “curar as doenças em nome de Jesus Cristo e pelo seu poder”, apontam registros históricos. Eles eram o que as pessoas chamavam de anárgiros – inimigos do dinheiro.
Mas a época não os favoreceu. Ao pregarem a fé cristã por meio da medicina, os irmãos atraíram a atenção do Estado, então liderado por Diocleciano. Perto de 300 d.C., as autoridades expediram éditos que revogaram os direitos legais dos fiéis e ordenaram o cumprimento das chamadas práticas religiosas tradicionais. Em outras palavras, a adoração de ídolos e esculturas consideradas sagradas pelo Império Romano. Firmes em sua crença, porém, Cosme e Damião se recusaram a acatar o mandado. E por isso foram perseguidos, torturados e, enfim, mortos.
A história dos orixás, por outro lado, nos remete ao período da escravatura no Brasil. De uma crença originalmente africana nasceram Exu, Xangô, Ogum e outras tantas divindades de nomes carregados de X e O. Surgiram também os Ibejis, os orixás-crianças, protetores dos gêmeos que, por anos, foram adorados “por baixo dos panos”, mascarados como os santos católicos lembrados no mesmo dia, os já citados Cosme e Damião.
Quem conta a história dos Ibejis é Júlio Cezar de Oxalá, um “africanista de ventre”, como ele mesmo se considera. Os rótulos candomblecista, umbandista e batuqueiro não dão conta de definir sua religião. “Apesar das variações, a matriz é uma só”, diz ele. “Mas, para mim, o que vale mesmo é a fé.”
De acordo com Júlio, muitos são os contos sobre os Ibejis. A versão mais aceita, talvez, diz que dois pequenos príncipes gêmeos levavam sorte a todo um reino, tempos atrás. Eram eles que resolviam os problemas mais difíceis e as tarefas mais delicadas – sempre em troca de doces. Apesar disso, não foi a sorte que os fez conhecidos, mas sim o comportamento. Alegres e enérgicos, os dois viveram de estripulias até que, certa vez, brincando próximo a uma cachoeira, um deles caiu e se afogou. Inconsolável, o jovem sobrevivente perdeu o gosto pela vida e pediu a Orunmilá – a divindade da profecia – que o levasse para junto do irmão. E assim foi feito.
Essas duas histórias, embora tenham acontecido em momentos e locais diferentes, se encontram no 27 de setembro. É nele que católicos e africanistas de todo o país dedicam orações e homenagens a Cosme, Damião e aos Ibejis. No caso dos gêmeos mártires, a data é lembrada em função das mortes dos dois. Já as divindades africanas “pegaram carona” na celebração. É o que explica Júlio: “Antigamente, a adoração dos Ibejis, assim como dos demais orixás, só podia acontecer sob o disfarce da crença católica, por imposição da Igreja. Daí a associação com Cosme e Damião, irmãos com quem, de certa forma, mantinham semelhanças. E desde então comemoramos o dia deles também nessa ocasião”.
Sobre a tradição, o vice-reitor da Unisinos, padre José Ivo Follmann, acrescenta: “Cosme, Damião e os Ibejis são figuras ressignificadas, assim como Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá. Interessante observar como a questão da criatividade sincrética é forte no país. A maneira como o catolicismo foi implantado no Brasil deu brecha a essa prática. Por quê? Porque os africanos trouxeram para cá seus costumes religiosos camuflados, e isso criou um contexto favorável para essas novas sínteses religiosas. É um fenômeno histórico”.
Vale a nota: ainda que os católicos celebrem Cosme e Damião no dia 27, a data reconhecida pela Igreja é 26 de setembro. Isso acontece porque muitos fiéis brasileiros mantêm a tradição que, até 1969, considerava como oficial o 27/09. Com a reforma litúrgica ocorrida naquele ano, passou-se a comemorar a ocasião na data anterior, para que a lembrança não coincidisse com a memória de São Vicente de Paula (cujo falecimento, sabe-se, ocorreu no dia 27).
Folia
Em ambas as crenças, a data é sinônimo de festa e os pequenos protagonizam a diversão. Mesas repletas de doces, danças e brincadeiras não podem faltar. “Os Ibejis são crianças puras, representam a sinceridade, a felicidade. E eles têm muita força. Imagina uma casa sem crianças – não tem a mesma energia”, comenta Júlio. “Nesse dia, a terreira enche de alegria. É uma ‘sujeirada’ maravilhosa.”
Por experiência própria, o africanista sabe do que está falando. Aos 33 anos, o babalorixá da Terreira Ilê Àse Òbokúm, de Canoas, já viu muita coisa acontecer em dia de Ibejis. Ele conta que presenciou mudanças de comportamento – para melhor – em ocasiões assim. “A pessoa muda. Minha mãe, por exemplo, que tem mais de 80 anos. Ela recebe uma ‘cosminha’ chamada Mariazinha e vira cambalhota. Literalmente!” E acrescenta, em tom de graça: “Eu passo por situação semelhante também. Chego a subir num caminhãozinho de brinquedo e as crianças ao redor me empurram pela sala”.
Ele lembra, ainda, de algo que presenciou anos atrás em Rosário do Sul, cidade onde nasceu. “Hoje, o que as pessoas chamam de encosto nós chamávamos de zombeteiro. Naquela noite, um senhor assim, meio alcoolizado, entrou no terreiro e resolveu atrapalhar a festa. Mas havia três médiuns lá, recebendo ‘cosminhos’, que começaram a cantar, de mãos dadas ao redor dele. Ele imobilizou na hora e logo voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido”.
Pelo lado católico, a tradição é igualmente forte. Em alguns Estados – Bahia e Rio de Janeiro, principalmente – Cosme e Damião são tão conhecidos como Santo Antônio, o santo casamenteiro.
Simbolismo
Também conhecida como Iorubá, a crença africanista a qual Júlio se refere entende os Ibejis como tudo de bom, belo e puro que existe, inclusive na natureza. Eles representam a dualidade. Assim, lembram que todas as coisas caminham juntas e que a justiça só pode ser feita se as duas medidas forem pesadas, se os dois lados forem ouvidos.
As pessoas guiadas pelos Ibejis são conhecidas por apresentarem comportamento jovial e irrequieto, estarem sempre sorridentes e dispostas a extravasar energia, como verdadeiras crianças. E é essa energia que vai marcar o dia de amanhã, em terreiras, Igrejas ou mesmo nas ruas. Independente da forma, a festa certamente acontecerá. Porque, para os fiéis, o que conta não é essa ou aquela religião, mas a existência da crença, como diz Júlio: “É a fé. Ponto”.