Resgate ao passado em visita ao Quilombo Peixoto Botinhas

Projeto Quilombolas Multiplicadores, criado pelo NEABI, reforça a cultura negra em comunidades afastadas

A história revela mais pelo que esconde do que pelo é contado. Um povo sofrido e guerreiro, que esqueceu de registrar sua trajetória, que foi ensinado a não valorizar suas origens – mas que ainda traz esperança no rosto. Foram arrancados de seus países, separados de seus amigos e parentes, não trouxeram nada nas mãos, nenhuma ferramenta. Todos os bens materiais ficaram para trás, mas trouxeram uma cultura riquíssima, de um povo alegre e trabalhador.

Ao visitar um quilombo, tantos anos depois do fim da escravidão, o que mais impressiona é a ausência de registros, os rastros apagados, a memória borrada e desfocada dos descendentes quilombolas.  Mas o que eram os quilombos? O termo, de origem angolana, era usado para definir aldeias que refugiavam escravos fugitivos das fazendas e casas de família. Mais do que a definição de um lugar, a palavra quilombo define uma atitude de resistência, de força e de luta. Mais de cem anos passados da abolição da escravatura, o resgate da cultura dos quilombolas é necessário para repensar a história do Brasil e a importância dos negros na identidade nacional.Em busca de entender quem são essas pessoas, fizemos uma visita ao Quilombo Peixoto Botinhas, que fica na zona rural de Viamão. Há cerca de um ano, os moradores de lá têm sido beneficiado pelo projeto social do NEABI da Unisinos, com a Inclusão Digital Afrodescendente. Através de um trabalho piloto, a equipe do NEABI qualificou os quilombolas para usarem as ferramentas digitais e ensinarem outras pessoas de sua comunidade. E assim nasceu o projeto Quilombolas Multiplicadores.

A história do quilombo

Criado na época dos navios negreiros, o Peixoto Botinhas foi o primeiro quilombo de Viamão. Sem a certeza sobre as datas, mas seguro sobre a coragem e ousadia dos antepassados, Antônio Gomes, morador do local, conta que um navio chegou a um porto, provavelmente, Rio Grande e transferiu os escravos para uma embarcação menor, que veio pela Lagoa dos Patos. No desembarque, houve uma rebelião, uma guerra muito violenta, em que muitos morreram. Quem viveu, não foi cativo por nenhum dia, já que o quilombo foi fundado no alto de uma montanha, de onde tinham uma ampla visão dos arredores. Estratégia fundamental para garantir da liberdade da nova comunidade.

“Tudo começou quando chegou aqui nas lombas um grupo de africanos fugitivo.”

Antônio Gomes, Quilombola

“Na época, um pouco antes da abolição, existia o tráfico de escravos e os navios negreiros faziam a travessia pela Lagoa dos Patos. Numa dessas viagens, tinha um grupo de africanos sendo trazidos para serem vendidos aos estancieiros, e quando o barco ancorou, travou-se uma batalha sangrenta, com muitos mortos. Mas muitos conseguiram fugir. Dali eles saíram caminhando por dentro dos banhados, se escondendo pelo meio das árvores, e seguiram nessa direção, em busca de proteção nas montanhas. Quando o grupo chegou nessas lombas, se organizou no meio do mato, num lugar estratégico porque tinham medo de ser recapturados, então escolheram esse local porque daqui podiam olhar por toda a volta e perceber quando estava chegando alguém. Aqui, construíram suas casas, com pedaços de árvores e demarcaram as terras para que cada família pudesse plantar para o seu sustento. Nesse grupo de fugitivos vieram quatro mulheres: Antônia, Pelônia, Maria da Conceição e Fortunata”, narrou Antônio. Segundo a história, a líder do grupo era Pelônia, mostrando a força feminina na luta contra a escravidão.

O porquê do nome

Em 2004, quando foi fundada a associação dos quilombolas, foi preciso escolher um nome para o quilombo. O grupo buscou fazer uma homenagem a importantes personagens da história local. Vamos à história: Pelônia, teve um filho com um estancieiro de sobrenome Peixoto, iniciando assim uma nova família.

Já Fortunata, teve um grupo de netos, fruto de seu casamento com Vitorino. Os rapazes criaram um grupo musical chamado de Botinhas. Os Botinhas eram quilombolas que ficaram famosos na região por tocar em bailes, terno de reis e festas típicas africanas. Eram conhecidos em todo lugar, naquela época, e chamados de Botinhas, já que usavam botas, o que não era comum entre os negros. Mas e qual será que era o nome original do lugar? Como Fortunata e Pelônia se referiam ao quilombo? Não há registros, por isso, só nos resta imaginar.

Lembranças guardadas

Bisneto de Pelônia, Décio Lopes, nos recebeu em um galpão, que hoje funciona como sede dos quilombolas, e contou porque o espaço foi construído. “Nós do quilombo não podíamos ir aos bailes, aí começamos a fazer uns bailinhos para o pessoal dançar. Porque os brancos não deixavam o negro dançar. Aí a gente começou a fazer os bailes, e construímos esse lugar”, relembrou.

Depois da conversa, fomos caminhando, guiados por Décio, até o local onde o quilombo se originou. “Aqui tinha uma casinha de palha, que o pessoal dizia que era da minha bisavó Pelônia. Mas está tudo demolido, agora é só campo, não tem mais nada”, constatou.

Damilton Silveira Lopes, irmão de Décio, que passava a cavalo pelo local, guarda muitas lembranças do tempo de criança.  Em meio ao descampado, onde resta apenas um pilar de madeira e uma pedra, Damilton reconstrói mentalmente a imagem da casa antiga onde viveu. “A casa era de barro com madeira, tinha a sala lá, a cozinha, o quarto e um tanque velho aqui. Esse tanque, era um tanque de pedra que a gente enchia de água da bica com uma lata. Quando os velhos estavam bem bravos com a gente, eles nos botavam a buscar água. Aqui – aponta para o outro lado – era um galpão e uma cancha de bocha”. Dalmilton descreve tudo com a precisão de quem consegue rever cada detalhe da cena narrada. Sobre as diferenças da vida naquela época, destaca “antes nós vivíamos do campo, da roça e agora isso não é mais possível. Eu tenho muita saudade daquele tempo. Eu, por mim, abandonava a vida da cidade e vivia no campo, lidando com a terra”.

O papel do NEABI

O Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (Neabi) cria espaços de inserção por meio da tecnologia, tanto para afrodescendentes, quanto para brancos em situação de vulnerabilidade social. Durante os encontros, os participantes aprendem a usar ferramentas digitais para recuperar e reforçar a cultura negra na comunidade. No ano de 2013, com o projeto Multiplicadores Quilombolas, o trabalho do grupo ultrapassou os portões da universidade e chegou às regiões longínquas dos quilombos. Os relatos de alguns alunos sobre essa ação, mostram a força do projeto na vida destes estudantes.“Acho que os quilombolas vão ter mais oportunidades a partir desse espaço com computadores que está sendo criado. Eu vou trabalhar nesse local ajudando as pessoas a conhecerem mais sobre a sua história. Com o NEABI a gente descobriu um monte de coisas que não sabia sobre nossas origens. Descobrimos parentes que não conhecíamos. Sendo multiplicador vou poder ajudar as crianças a conhecerem sobre a nossa história e os idosos a mexerem no computador. É importante despertar a curiosidade sobre o assunto nos moradores do quilombo, sendo um multiplicador de informações também”, destacou Igor Rodrigues Oliveira.

“Como multiplicadores queremos trazer o conhecimento para dentro do quilombo, principalmente para as crianças.”

Daiane Lopes, Quilombola

Tataraneta de Pelônia, Daiane de Abreu Lopes, foi a única mulher que participou do curso oferecido pelo NEABI e conta o que mudou na sua vida “Como multiplicadores queremos trazer o conhecimento para dentro do quilombo, principalmente para as crianças. Com o curso a gente descobriu muita coisa, até parentes que a gente não conhecia. O NEABI nos ajudou muito a resgatar nossa história e nossa cidadania. Infelizmente, a história do negro é muito resumida na escola e os quilombos são quase esquecidos, com o NEABI tivemos a oportunidade de aprender mais”, explicou. A proximidade com o projeto também mudou a visão de Daiane como cidadã “Depois que conheci o NEABI, me sinto mais esclarecido em relação às leis que beneficiam os afrodescendentes e aos nossos direitos”, ressaltou.

Um dos papéis do NEABI é manter tradições vivas. Os quilombolas também tentam preservar suas origens. Oriundo das lombas, desceram para ficar mais próximo das estradas. Os ternos de reis – uma homenagem a Nossa Senhora Aparecida, em que um grupo chega de surpresa na casa das pessoas, tocando gaita – quase não existem mais. No entanto, quando acontecem as festas no quilombo ainda se mantém a comida típica, como o quibebe e o charque. Nesses dias, os velhos “causos” voltam a ser contatos em rodas de quilombolas.

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