“Por que eu?” Histórias que começam com perguntas como essa tendem à autopiedade. Essa não. Essa é, tão somente, a história de gratidão do pai que pedalou mais de mil e trezentos quilômetros em nome do filho – um leopoldense que aos seis meses de vida já se familiarizara tanto a camas hospitalares e procedimentos médicos quanto a berços e balançar de chocalhos.
Onze dias na estrada, dez abaixo de chuva. Era segunda, 14 de maio de 2007, quando Adrovan Evandro Vieira subiu em sua bicicleta recém-comprada e saiu de casa, às 4h40 da manhã, rumo a rodovias desconhecidas. Não tinha ideia do que encontraria pela frente, nos 1.350 quilômetros diante de si, do Rio Grande do Sul a São Paulo. Só sabia que não desistiria até chegar lá. Até ter a chance de dizer, ajoelhado diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida, um muito obrigado.
O motivo do agradecimento era – e sempre será – seu filho, Jian Evandro Vieira. Jian veio ao mundo de forma incomum, em janeiro de 95 – nasceu com um rim maior e menos funcional que o outro. Ainda sem entender nada além dos próprios instintos de sobrevivência, foi pela primeira vez para o bloco cirúrgico em julho do mesmo ano, passar por aquilo que os médicos chamam de pieloplastia. Recuperado, tempo depois, na época em que soprava as quatro velinhas do bolo de aniversário, outra surpresa: estava com câncer.
”Quando ele teve aquela complicação no rim, antes mesmo do câncer, disseram que seriam necessárias três ou quatro cirurgias para evitar a perda total do órgão. Graças a Deus foi uma só”
Rejane Silveira de Oliveira, mãe de Jian
“Começou com cansaço”, conta o pai, aluno e funcionário da Unisinos. “Ele caminhava um pouco e se queixava, então resolvemos levá-lo ao posto de saúde.” O resultado do exame de sangue não convenceu a família, tampouco os médicos. Um segundo teste foi feito e aquilo que tanto temiam se confirmou. Era mesmo leucemia, e em estado avançado. Do momento em que descobriram a doença até a internação de Jian no Hospital de Clínicas, poucas horas passaram. “Diziam que com mais dois ou três dias sem atendimento ele quase não teria chances de melhora”, lembra Adrovan.
Jian recebeu alta e voltou para casa com uma lista de restrições. “Vocês têm um cristal dentro de casa. Cuidem dele”, diz Adrovan, citando a equipe médica. Naquela época, até algo simples como oferecer bolachas ao filho era perigoso, lembra a mãe, Rejane Silveira de Oliveira: “Ele só comia na hora em que o pacote fosse aberto. Depois, qualquer coisinha, do ar mesmo, podia contaminar o alimento. E isso agravaria o estado de saúde dele”.
Aí começaram as promessas pela recuperação. A mãe jurou que rezaria o terço todas as noites, até o fim da vida. “Não importa se for sábado, domingo, feriado. Sempre.” Já o pai fez três votos: parar de beber, andar de joelhos da Avenida Teodomiro Porto da Fonseca até o Santuário Padre Reus e pedalar até a Basílica de Nossa Senhora Aparecida em São Paulo. Todas elas foram ou estão sendo cumpridas.
Estrada de fé
Foram oito anos de idas e vindas do hospital, três deles decorridos em períodos menores de tempo entre uma visita e outra – três anos de quimioterapia. Em casa, o tratamento contínuo tomava todo o tempo da mãe, que desde a gravidez deixara de trabalhar para acompanhar o filho. “Quando ele teve aquela complicação no rim, antes mesmo do câncer, disseram que seriam necessárias três ou quatro cirurgias para evitar a perda total do órgão. Graças a Deus foi uma só”, recorda.
A notícia da cura chegou no começo de 2007 e trouxe alegria de volta à família. No mesmo instante, Adrovan – que até então já havia cumprido duas das três promessas – percebeu que era hora de comprar uma bicicleta. Com a ajuda dos colegas de trabalho, prendeu nela uma caixa de supermercado carregada com os poucos pertences que o acompanhariam na jornada. Metade deles ficou para trás logo na primeira parada, em Capão da Canoa. “Estava muito pesado. Deixei barraca e cobertor com parentes e segui viagem”. Ele nunca havia saído do Sul.
No bolso, R$ 20 ou R$ 30 para garantir o lanche, só. As demais despesas passavam direto no débito, mas o verdadeiro controle de caixa quem fazia era a esposa, a distância. Ela, aliás, relutou até o dia da partida, com medo de perder o marido para eventualidades do caminho – “Imagina se ele se perde, se acontece alguma coisa” – chegou a sugerir que fossem ao padre substituir a promessa por outra. Nada feito.
Ciente do grau de dificuldade do trajeto, Adrovan imaginava o esforço que a empreitada exigiria. Passou um mês na academia, em treino específico para a viagem, e outro de férias – na estrada. “Estava decidido a ir, nem que isso me custasse os 30 dias da licença”, afirma.
A promessa era chegar lá, sempre de bicicleta, sem pegar carona. Não que recusasse ajuda, só não queria pedir. “As pessoas me aconselhavam a contar a história na TV, para ver se alguém oferecia apoio, mas eu nunca quis”. O que aceitou foi um auxílio aqui, outro ali, um desconto na diária do hotel ou uma refeição gratuita.
O pior não foi lidar com dinheiro contado, mas sim com cansaço e ansiedade. “Nas primeiras pedaladas, parecia que as pernas iam cair”, lembra. “Depois fiquei anestesiado.” Adrovan acordava cedo, tomava café rápido e saía. Parava ao meio dia para uma refeição leve e voltava a pedalar. À noite, banho e ligação para casa – “Só oi, nada de se estender” – depois, remédio para dor, janta e cama.
Com uma média de 120 quilômetros por dia, Adrovan saiu do Rio Grande do Sul, passou por Santa Catarina, Paraná e chegou a São Paulo sem contratempos, apesar da chuva. Nenhum pneu furado, nada de gripes ou resfriados, assaltos ou abordagens policiais. “Isso que andei pela freeway, o que era proibido. Parecia que havia uma luz ali, me guiando.” De perdas, só o funcionamento da marcha da bicicleta e o próprio peso – 11kg a menos.
Dever cumprido
Para quem só pensava nisso há quase duas semanas, chegar à basílica foi mais do que uma benção. Satisfeito consigo mesmo por estar ali, Adrovan se despediu da bicicleta no saguão de doações e deixou a fiel companheira ao lado de relíquias de outros devotos – “De camiseta de jogador de futebol a capacete do Ayrton Senna”. Nos poucos dias em que estiveram juntos, recusara-se a se separar dela, inclusive à noite, em albergues ou hotéis. “Tive de subir três andares com a bicicleta no ombro. Ela me acompanhava aonde eu ia, fazia parte da promessa também”, comenta.
Depois de uma breve visita pela basílica, Adrovan fez o caminho de volta à capital paulista de ônibus. Não havia planejado o retorno a São Leopoldo, tarefa que ficou a cargo da família. “Eles compraram uma passagem de avião e me receberam no aeroporto, quase não me reconheceram”, recorda. No dia seguinte, as roupas que enfrentaram os dez dias de mau tempo foram para o lixo, encharcadas, irrecuperáveis, mas o pai estava feliz. E em casa.
Futuro
Tudo está em paz na casa dos Vieira. Jian, agora com 18 anos, estuda no Centro Tecnológico de Mecânica de Precisão (Cetemp/Senai) e imagina cursar uma graduação na Unisinos, no mesmo lugar onde o pai passa boa parte de seus dias, como estudante do curso de Educação Física e funcionário da Segurança. Rejane permanece em casa, cuidando da mãe, dona Irena. E Adrovan, em vias de formatura, já pensa em dar aulas.
Os planos agora são os melhores: voltar a São Paulo em família – de carro, dessa vez – e registrar a história em livro. “É um aprendizado que a gente leva para sempre, isso de dar valor à vida, não guardar rancor”, emociona-se Adrovan. Rejane, igualmente sensibilizada, complementa: “Por que eu? Porque Deus sabia que eu iria conseguir, que nós três juntos iríamos. Ele só coloca no nosso caminho aquilo que podemos resolver. E nós sempre resolvemos”.