Famoso e querido pelo público, o filósofo e escritor norte-americano Michael Sandel esteve em Porto Alegre na noite desta quarta-feira (9/8) para participar de mais uma conferência da edição deste ano do Fronteiras do Pensamento. Michael indagou o público, que lotou a Casa da Ospa, com questões como justiça, merecimento, democracia e meritocracia. A apresentação e mediação foi realizada pelo jornalista Tulio Milman.
Professor da Universidade Harvard, sediada em Cambridge, nos Estados Unidos, Michael é autor de livros muito utilizados na área do Direito, como “Justiça: o que é fazer a coisa certa” e “O descontentamento da democracia: uma nova abordagem para tempos periculosos”. Com 70 anos de idade, ele é reconhecido por continuar muito ativo e influente em seus questionamentos e contribuições para diferentes áreas do conhecimento. O livro “Justiça…”, inclusive, se tornou um curso de Harvard, que está disponível gratuitamente na Internet – já foi acessado por mais de 15 mil alunos.
O autor defende a ideia de que a filosofia pertence não somente às universidades e ambientes acadêmicos, com palavras rebuscadas e difíceis de entender, mas, sim, à cidade, onde os cidadãos se reúnem, raciocinam e debatem juntos sobre como organizar a vida coletiva.
Como perseguir uma justiça na busca do bem comum, tentando descobrir o que devemos uns aos outros enquanto cidadãos? Com essa pergunta, Sandel iniciou a conferência. Para ele, há uma forte polarização que atrapalha esse processo. “Mas o que traz essa polarização? Grande parte do discurso público está esvaziado. É tecnocrático, que não interessa a ninguém, dispostos aos gritos, ideologias de partido, membros dos congressos que gritam uns com os outros, sem escutar-se. O próprio projeto democrático está em risco”.
“E por que o discurso está vazio?”, continuou Sandel. Segundo o filósofo, a fé nos mercados que animou a versão da globalização que os partidos políticos buscaram foi orientada pela visão neoliberal dos mercados. “Figuras como Ronald Reagan e Margaret Thatcher, nos anos 1980, defendiam uma questão de inevitabilidade da globalização. Se dizia que ‘não há alternativa, é como uma força da natureza, algo que não podemos desligar ou parar’”, exemplificou.
Com isso, Sandel afirmou que os “vencedores” tiveram ganhos, mas que contemplaram apenas os 20% da “classe de cima”. “A maior parte das pessoas tiveram os salários estagnados por décadas, enquanto a desigualdade aumentou. Isso é uma fonte do que nos dividiu. A frustração com a política que provocou a raiva contra a elite e os políticos”, observou o palestrante.
O professor apontou ainda para uma força dos trabalhadores, que veem as elites os menosprezando, elites essas acadêmicas, intelectuais e da mídia. Porque, segundo Sandel, mesmo com as desigualdades aumentando devido à globalização, os principais partidos políticos respondem a isso dizendo “se você quiser competir e vencer, faça faculdade. O que você ganha depende do que você estudar”. “A resposta é sempre ‘melhorar a você mesmo’”, criticou.
Para Sandel, as oportunidades não são iguais. As pessoas não começam a corrida no mesmo local de partida. “Imaginem que possamos corrigir isso: promover uma corrida e fornecer a todos os competidores o mesmo treinamento, acesso a bons treinadores, os mesmos sapatos de corrida, nutrição, para que estejam preparados para correr sem possuir alguma desvantagem. Teríamos uma meritocracia perfeita”, avaliou o filósofo.
“Todos querem uma vida pública melhor”
A partir desse cenário, Michael interagiu com a plateia, requisitando opiniões e explicações dos participantes. “Nesse cenário meritocrático perfeito, o vencedor da corrida mereceria a vitória, um prêmio maior?”. Com a pergunta, o palestrante permitiu um espaço para o público literalmente dialogar com ele, que ouvia e considerava os pontos levantados. “Liguem as luzes, para que eu possa ver quem está falando comigo”, pediu Michael.
“Os vencedores esquecem a sua sorte. Isso nos leva a esquecer a nossa dívida com as pessoas que nos levaram às nossas conquistas: professores, treinadores… Uma meritocracia perfeita produziria uma arrogância daqueles que estão no topo, levaria a menosprezar os menos afortunados”, comentou Sandel, reforçando o fato de que todo o trabalho tem dignidade. “Um médico e um gari são igualmente importantes, pois se o médico não tratar as doenças, a situação urbana piorará, e se o gari não fizer o seu trabalho, as doenças irão se alastrar”.
Segundo o conferencista, nós perdemos a capacidade de ouvir uns aos outros, especialmente através das nossas diferenças. “Os feeds das redes sociais reforçam isso, nos mantêm em bolhas fechadas. Isso é corrosivo para a virtude cívica”, enfatizou. Para Sandel, é preciso escutar os princípios morais por trás das falas das pessoas. “Temos que ir contra o poder das grandes empresas de mídia social e encontrar uma forma de termos um discurso público mais robusto sobre a moral”.
“É difícil ser otimista”, disse o professor, que fez uma distinção entre otimismo e esperança. “O que me dá esperança é que todos querem uma vida pública melhor, especialmente os jovens. Existe uma fome de se engajar sobre as diferenças, coisas contestáveis. Temos que aprender a fazer isso”.
Sobre isso, Tulio Milman comentou com o filósofo sobre a tarde que ele passou na comunidade Morro da Cruz, na Capital gaúcha. “Eu passei três horas em uma mesa redonda com membros locais e do poder público. Mesmo com recursos limitados, havia uma força e criatividade para criar uma comunidade, fazer com que suas vozes sejam ouvidas. O governador estava lá também. Algumas vozes eram mais inflamadas, com raiva. Mas eram legítimas. Às vezes, a raiva desse tipo é necessária e pode ser saudável”, disse o jornalista.
Michael, então, chamou Vitor, estudante do Ensino Médio, morador da comunidade que ele havia visitado mais cedo ontem. Vitor contou que quer trabalhar com Relações Internacionais e entrar para a política, e a conversa durante a tarde foi uma oportunidade de ter sua voz ouvida.
Fronteiras vai até outubro
Essa foi a quarta conferência do evento, que é realizado presencialmente também no campus de Porto Alegre da Unisinos. O Notícias Unisinos esteve presente nos três primeiros encontros, que contaram com a jornalista espanhola Rosa Montero, com a vencedora do Prêmio Nobel da Paz Nadia Murad e com o neurocientista espanhol Rafael Yuste. Ainda serão recebidos o documentarista norte-americano Douglas Rushkoff, no dia 13 de setembro, e o arqueólogo britânico David Wengrow, para encerrar a temporada, no dia 4 de outubro.