Datas importantes sempre nos possibilitam refletir sobre algo novo. Neste 7 de agosto de 2014, os jesuítas celebram os 200 anos da restauração da Companhia de Jesus. A carta de supressão, assinada pelo Papa Clemente, é lembrada em todo o mundo, principalmente no Brasil, por ter sido Marquês do Pombal quem emitiu o documento.
Apesar da supressão, a Companhia de Jesus se manteve viva no Oriente. Entretanto, os jesuítas só reencontraram a paz em todos os povos em 1814, quando o Papa Pio VII leu a Bula Sollicitudo Omnium Ecclesiarum. Este gesto restaurou canonicamente a família religiosa dos Jesuítas no mundo.
A Companhia de Jesus é uma instituição de ordem católica, fundada por Inácio de Loyola, em 1534. Presente em mais de 130 países, a Companhia atua no desenvolvimento social por meio do aprofundamento intelectual e da produção de conhecimento científico. A Rede Jesuíta de Educação engloba, hoje, mais de 180 colégios, 200 universidades e faculdades e 2724 centros de Educação Popular. Um dos fatos históricos que marca a história dos Jesuítas foi a escolha de Jorge Mario Bergoglio, primeiro membro da congregação a assumir o Sumo Pontifício Católico, no ano passado.
Confira abaixo a entrevista feita com professor do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, Luiz Fernando Rodrigues. Uma viagem ao passado, que relembra momentos desde a expulsão dos jesuítas até a sua restauração, que hoje se comemora.
Entrevista
Como ocorreu o processo da expulsão dos jesuítas até sua restauração?
A expulsão da Companhia de Jesus foi um evento global para a época, que afetou todas as colônias das cortes europeias no mundo inteiro. A mola mestra foi uma tensão forte entre as coroas ibero-europeias, em relação às suas colônias e à atuação dos jesuítas nessas colônias. A falência da coroa portuguesa fez com que Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido como Marquês do Pombal, desenhasse um grande plano de desenvolvimento para a Amazônia. Declarava ele que a Amazônia deveria ser grande exportadora de madeiras para fazer navios; as aldeias indígenas deveriam ser elevadas a vilas e cidades; os índios passariam a ser cidadãos, vassalos do rei, os quais deveriam comprar e vender, e, nesse fluxo comercial que se criaria, o índio deveria pagar impostos. Pombal vai tentando estabelecer seu plano econômico e civilizador da Amazônia, porém, ele não funcionou. Nessa época, surgem então três grandes acusações aos jesuítas: a escravização do índio em benefício próprio em contraste com a pobreza do colono, o grande número de terras que eles administravam e a sabotagem do Tratado de Madri.
Em 1759, ocorre um atentado ao rei de Portugal, Dom José I e à procura de culpados, condenam o jesuíta italiano Malagrida. Essa foi a gota d’água, entre outras situações que já estavam ocorrendo em solo brasileiro. Então se planejou a prisão e expulsão dos jesuítas de todo território português. O procedimento foi muito elaborado, mas de forma secreta; deveria ser realizado em todos os lugares de colônia portuguesa e ao mesmo tempo. Os jesuítas passaram as ser vistos por outras cortes europeias como extremamente perigosos. O Papa da época, Bento XIV, desconfiou dos boatos espalhados por Pombal e sofreu ameaça de invasão ao estado pontifício pelas tropas portuguesas. Nessa efervescência, o papado mudou, e os jesuítas são suprimidos no pontificado do Papa Clemente.
Não proclamada a supressão na corte de Catarina II, os jesuítas permanecem em território russo. Nesse momento, delineia-se a continuidade e a descontinuidade da Companhia de Jesus. A primeira se dá porque na parte ocidental o jesuíta praticamente desaparece. Contudo, na Rússia, eles sobrevivem, atuando na educação e cultura.
Falamos hoje, historicamente, que houve uma supressão da Companhia, mas não podemos falar de restauração da Companhia, porque ela, na verdade, continuou na Rússia. O que acontece, de 1776, quando se assina a bula de supressão, até 1814, é que, na parte ocidental, havia apenas ex-jesuítas.
No início dos anos 1800, Pio VI iniciou oralmente o processo de aprovação dos jesuítas, desde que não se fizessem muito presentes na sociedade. Em 7 de agosto de 1814, expediram uma bula oficial para a restauração da Companhia de Jesus. Desse modo, a Companhia volta a existir oficialmente para a Igreja. Então, pouco a pouco, a Ordem começa a se disseminar novamente no mundo.
Como o caso se dá no Brasil?
O caso brasileiro é bem particular. Após a expulsão dos jesuítas de vários países, eles buscam abrigo no Brasil. No entanto, não tinham permissão para tal pelas autoridades brasileiras. Eles planejam ir ao Paraguai, mas as adversidades os fazem passar por Santa Catarina e chegar a Porto Alegre. No ocidente, nós não temos uma restauração da Companhia de Jesus, mas um retorno dos jesuítas. A grande celebração no Brasil se dá para mostrar esse período e pelo fato dos historiadores começarem a refletir sobre a restauração dos jesuítas. A volta foi um longo processo, pois, na época, o Brasil estava tomado pelas ideias anticlericais de Voltaire; a maçonaria estava muito ativa; havia a separação entre Igreja e Estado. A propaganda antijesuíta estava ainda na memória. Embora ainda não reconhecidos, o próprio governo provincial pede a vinda dos jesuítas ao sul do país. A Companhia começa a se estabelecer em São Leopoldo [colégio Conceição], depois se desloca a Porto Alegre [colégio Anchieta] e então para o interior.
Quais são as principais características da Companhia de Jesus na educação?
A Companhia de Jesus não nasceu como uma ordem voltada à educação; isso aconteceu aos poucos. Depois de muitas tentativas, ela estabeleceu um código educativo da companhia, o Ratio Studiorum, um programa global educativo que tutora o que estudar, como estudar, de que forma estudar. Na Unisinos, por exemplo, os alunos devem estudar três eixos: Antropologia, Ética e América Latina. No primeiro, se estuda a questão humanística, o homem diante da técnica; no segundo, o posicionamento diante dos grandes problemas da sociedade, o discernimento, a melhor escolha, fundamentada no método da razão; e, em terceiro, o território vizinho, questões sociais e étnico-raciais. O programa pedagógico foi um apanhado de experiências da Companhia de Jesus, que regulamentam práticas educativas.
Além da educação, quais outras missões que a Companhia de Jesus tem com a sociedade?
A formação do homem integral. A partir do conceito de que, hoje, o homem não é um ser isolado, mas um ser social, comunitário. Esse ser comunitário tem de aprender a viver com outros seres comunitários. Isso traz desafios éticos, não só profissionais, mas de como buscar a felicidade voluntariamente. Esse indivíduo, que deve ter uma grande cultura, uma grande experiência técnica e uma grande humanidade, também é um ser religioso. Como respeitar a questão religiosa de cada um e ao mesmo tempo abrir a possibilidade de a pessoa perceber que não é só matéria? Então se propõe uma série de reflexões, como o IHU – Instituto Humanitas Unisinos faz. Coloca-se o homem diante da técnica. Os jesuítas sempre trabalharam na fronteira, nos limites, onde saber o que é certo e errado é complicado. Pegamos grandes questões do nosso tempo, por exemplo, o aborto, o tráfico de órgão, uma série de questões que são debatidas academicamente.
O fato de termos o primeiro Papa jesuíta no poder é de grande significância para a Companhia de Jesus?
Sim e não. Nunca pensamos em um Papa jesuíta e, de repente, Jorge Mario Bergoglio, um jesuíta, é escolhido. Uma grande responsabilidade. Entretanto, agora ele não é mais jesuíta, é Papa. Sempre que um jesuíta vira bispo, ele sai da congregação. O Papa em teoria é jesuíta, mas agora ele é um bispo diocesano. Porém evidentemente que a forma de pensar, de agir, a espiritualidade, o perfil do jesuíta, transparece. Ele é informal, mas tem uma capacidade decisória muito grande. E isso está sendo um bom vento para Igreja. Hoje a igreja afronta temas que já deveria ter afrontado há muito tempo. O novo Papa também está trazendo uma nova concepção eclesiástica. Não é mais o Papa como o primeiro posto da hierarquia, mas junto aos outros cardeais. Um governo colegial. Uma característica muito peculiar dos jesuítas, e muito exercida pelo Papa, é tomar decisões, sempre consultando os outros.