As pesquisas sobre o funcionamento familiar e sua repercussão no desenvolvimento infantil demonstram que não é apenas a relação pais-filhos que reflete no comportamento dos filhos, mas também as relações conjugais e coparentais. Sabe-se, por exemplo, que práticas parentais muito punitivas e um ambiente familiar com muito conflito geram prejuízos no desenvolvimento das crianças. No entanto, para a professora Clarisse Mosmann, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unisinos, a natureza e magnitude dessas relações ainda não foram suficientemente explicadas.
“Quando as crianças desenvolvem sintomas, como agressividade, depressão e dificuldades escolares, as práticas parentais e os conflitos familiares explicam uma parte, mas não o todo”, avalia. A pesquisa “Relações conjugais, coparentais e parentais: repercussões e impacto em problemas emocionais e de comportamento dos filhos” visa, justamente, desenvolver elementos teórico-clínicos que aprimorem os processos de diagnóstico das relações conjugais, coparentais e parentais e seus reflexos no desenvolvimento de sintomas clínicos dos filhos. Em outras palavras, busca investigar o máximo possível de variáveis no relacionamento conjugal e familiar, para tentar explicar e mapear o desenvolvimento desses sintomas.
O que é relação “conjugal”, “coparental” e “parental”?
O relacionamento conjugal é a interação entre marido e mulher, o “casamento”. O relacionamento parental significa a mãe e o pai educando um filho em comum, de forma individual. Por outro lado, existe a coparentalidade ou relação coparental, que é a divisão que os pais fazem da parentalidade. Por exemplo, quando o casal se apoia como pais, divide as tarefas ou mesmo disputa para saber quem o filho “prefere”.
A pesquisa
A investigação, que começou em agosto de 2011 e termina em agosto de 2014, se organiza em dois estudos. O primeiro, quantitativo, analisou as relações conjugais, coparentais e parentais em 100 casais – com filhos entre quatro e 18 anos e que residem no Vale do Rio dos Sinos. Essa primeira fase permitiu discriminar distintos grupos homogêneos de pais conforme os sintomas emocionais e de comportamento dos filhos.
No primeiro estudo, o pai e a mãe do mesmo filho responderam a um questionário, composto por uma lista de comportamentos, que os pais deviam marcar. Por exemplo: “O seu filho tem problemas de agressividade?”, “O seu filho não consegue dormir?”, “O seu filho briga com os colegas na escola?”. Esse instrumento caracteriza as crianças em grupos não clínico e clínico, a partir da percepção dos pais. “Queríamos entender o que acontecia com aquele casal, que poderia estar associado ao desenvolvimento de sintomas psicológicos dos filhos”, explica Clarisse. Essa coleta foi concluída em abril de 2013. Das 100 famílias estudadas, 18 apresentaram filhos com sintomas psicológicos em nível clínico, o que significa que eles precisam de atendimento. “É um número bem alto”, avalia a pesquisadora.
O segundo estudo, ainda em planejamento, visa o desenvolvimento, implementação e avaliação de um programa de intervenção clínica conjugal e familiar. Participarão desta etapa pelo menos cinco casais, escolhidos aleatoriamente, dos 18 identificados, no primeiro estudo, com relações disfuncionais que estão reverberando em sintomas psicopatológicos dos filhos. O objetivo é a elaboração ou reestruturação dos aspectos que supõem alteração dos dinamismos do sistema familiar. A intervenção terapêutica compreenderá oito encontros com os casais e será avaliada após o término para identificar se houve mudanças nos padrões de interação conjugal, assim como na presença de sintomas dos filhos. Esse procedimento será repetido seis e doze meses após o término da mesma para avaliar a eficácia e a estabilidade das mudanças.
O programa, então, será testado. “Os pais vão, novamente, responder ao questionário e a gente vai ver se diminuíram os sintomas das crianças”, explica Clarisse. Se a intervenção for efetiva, a ideia é disponibilizar o programa para a comunidade. “Pessoas esperam muito tempo por um atendimento psicológico. Então, a nossa ideia é que esse grupo possa funcionar de maneira multifamilar, atendendo várias famílias ao mesmo tempo. Isso diminuiria a espera e a fila, e alcançaria um número maior de famílias.”
As dificuldades
Para Clarisse, conseguir que 100 famílias participassem do estudo foi complicado. “É difícil, porque a gente precisa que as pessoas se exponham e recebam os pesquisadores e os auxiliares de pesquisa em casa, o que normalmente acaba acontecendo no final de semana ou à noite”, conta. “É o desafio de todos os pesquisadores.”
A solução encontrada foi adequar o estilo da pesquisa ao gosto dos pesquisados. “Os casais gostam de participar de encontros sobre como educar os filhos, por exemplo. Querem saber o que devem ou não fazer”. Esse foi um dos motivos que levou os pesquisadores a desenvolver a segunda etapa da pesquisa. A ideia, no entanto, é trabalhar para além das práticas parentais. “Não queremos focar só no desenvolvimento. As pesquisas mostram que dizer para os pais só ‘não pode bater no filho’ ou ‘não pode discutir na frente das crianças’ não resolve, porque eles não batem nos filhos, mas discutem no quarto. Fica um clima horrível e as crianças sentem o que está acontecendo”. Para Clarisse, é preciso que os pais entendam que ter um problema que não conseguem resolver gera nos filhos insegurança e faz com que eles tenham medo de que os pais venham a se separar, e que o fato de ter um clima familiar de muita desavença e pouco afeto gera o desenvolvimento de sintomas nos filhos.
Padrão de comportamentos – os primeiros resultados
Dentro dos resultados já analisados – por meio de cálculos estatísticos que mostram o peso das variáveis no desenvolvimento dos sintomas – as variáveis que mais impactam no desenvolvimento de sintomas são: acompetição e o conflito coparental – o quanto os pais brigam na divisão das tarefas, e o quanto cada um acha que o seu jeito de educar o filho é mais importante ou mais certo – e as práticas parentais de intrusividade e comportamentos coercitivos – bater no filho, xingar, utilizar violência, etc. Existem, por outro lado, algumas variáveis que protegem. Se existirem bons níveis de acordo coparental ou divisão das tarefas, por exemplo, é possível proteger os filhos do desenvolvimento de sintomas
“O interessante nos resultados é que a gente conseguiu identificar o que não funciona (o que gera sintomas), mas a gente também conseguiu ver o que as famílias com filhos sem sintomas têm de diferente”. Clarisse destaca que o desenvolvimento de sintomas está, sim, ligado também à qualidade do relacionamento conjugal. “Os pais têm uma ideia de que o filho não tem nada a ver com o relacionamento conjugal, mas, na realidade, isso é impossível. As crianças percebem tudo o que acontece no ambiente familiar; são muito perceptivas”, ela explica. “Conflitos todos têm. É inerente. A questão é a forma de resolver esses conflitos. Isso protege o desenvolvimento de sintomas nos filhos. A nossa ideia também é trabalhar em termos de prevenção.”