Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), apenas 36% dos alunos que completaram o ensino médio em uma escola da rede pública entram em uma faculdade. Quando se olha para alunos de escolas privadas, este percentual sobe para 79% dos casos. Além disso, o Brasil sofre com um problema mais grave: 52% dos brasileiros não tem diploma do ensino médio, segundo estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por isso, uma reinvenção na educação do país é necessária.
A vulnerabilidade social é uma das barreiras que tornam esses índices tão altos no Brasil e fazem da conquista do diploma de ensino médio algo mais difícil. Atenta a isso e convivendo com uma realidade diretamente atingida pela desigualdade social, a professora e pesquisadora Joana D’Arc Félix de Souza transformou o ensino na escola técnica em que trabalha.
Apostando em uma metodologia que combinasse a educação e a ciência, a professora mudou a forma de ensinar na Escola Técnica Estadual Prof. Carmelino Corrêa Júnior, em Franca, São Paulo. Joana implantou um projeto de bolsas de Iniciação Científica para seus alunos. O diferencial dessa aposta foi o fato de que ela optou por trabalhar com os alunos de baixo rendimento escolar. Segundo a pesquisadora, “como que nós queremos um Brasil diferente, se só trabalhamos com os melhores? Então os piores sempre vão ser excluídos. A gente sempre vai trabalhar com exclusão”, pergunta Joana.
Joana D’Arc Félix de Souza é PhD em química, pela Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. Atualmente é professora e coordenadora do Curso Técnico em Curtimento, na ETEC Prof. Carmelino Corrêa Júnior, do Centro Paula Souza, na cidade de Franca, em São Paulo.
Confira a entrevista realizada pelo Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas, da Unisinos, via Skype.
Como é fazer educação de qualidade com incentivo à ciência e à pesquisa no Brasil atual? Qual é a perspectiva que você tem para o futuro da nossa educação científica?
Eu acredito no Brasil. Eu creio em uma educação de qualidade. Só que tem que existir uma educação pública, de qualidade para todos, porque assim todos terão as mesmas oportunidades, as mesmas chances, quando forem fazer uma prova do ENEM, uma prova do Vestibular. Então a educação pública de qualidade para todos, isso iguala a todos, todos vão concorrer de igual para igual. Porque do jeito que está, quem tem mais condições são alunos que estudam em uma boa escola e que vão bem em um Vestibular e em um ENEM. Mas nós podemos mudar um pouquinho a cara disto. Isso se cada professor começar a fazer a sua parte. Como assim? Eu até falo como um achado que foi aqui na escola quando nós começamos a trabalhar a educação científica, que é a educação aliada a ciência. Porque eu comecei isso aqui na escola? A escola estava passando por um grande problema de evasão escolar e essa foi uma maneira de estar reduzindo a evasão escolar e juntamente, concomitante a isso, estar melhorando o desempenho dos alunos no ENEM e no Vestibular.
A escola se localiza em um bairro de periferia aqui na cidade de Franca, em São Paulo. E é uma escola técnica, que nós temos o ensino técnico e o ensino médio também. E aqui, o bairro é dominado pelo tráfico de drogas e pela prostituição. Então, na escola nós temos muitos alunos envolvidos no tráfico de drogas e na prostituição. E eram esses alunos que estavam causando a grande evasão escolar. Como mudar essa realidade, reduzir a evasão escolar, prender esses alunos na escola, motivando esses alunos a vir à escola, eles tendo prazer de assistir aula?
Educação aliada à ciência
Então veio a educação científica, que é a educação aliada a ciência. Junto com isso, é importante a bolsa de Iniciação Científica. A realidade que eu encontrei desses alunos é a seguinte: eles falam que tem que levar dinheiro para casa. É muito triste você ouvir de uma garota de 14, 15 anos, de um garoto de 14, 15 anos, que a menina tem que se prostituir, por que a família esta esperando o dinheiro. O menino tem que traficar, por que a família está esperando o dinheiro. Então a bolsa veio, não sei se iguala valores, mas pelo menos contribuiu bastante. Por que a bolsa de Iniciação Científica na Fapesp, que é Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, eles chamam de Bolsa de Treinamento Técnico, tem um valor muito bom. Essa bolsa chega a ter até um valor maior que a bolsa do CPNq para Iniciação Científica na Graduação.
Qual o valor?
Hoje é em torno de R$1000. É um valor considerável. Ou seja, o segredo foi despertar um espirito investigativo no aluno, dar oportunidade. Porque como eu só trabalho com esse tipo de aluno, não é fácil, eu que tenho que correr atrás deles, porque se você colocar um anúncio “aceita-se inscrições para bolsas de Iniciação Científica”, esses meninos que estão no tráfico de drogas e na prostituição, eles se sentem excluídos. Porque, infelizmente, até na sala de aula por serem aqueles ditos piores alunos, então eles são excluídos. Eles não se candidatam, porque eles têm na mente deles que eles serão excluídos. Eles não se sentem pertencentes aquele lugar. Então eu que vou atrás. Essa é a forma que eu comecei a trabalhar e trabalho até hoje. Eu vou atrás desses meninos, mostro para eles o que é uma Iniciação Científica, o que é o desenvolvimento de um Projeto de Pesquisa. Mas não é fácil convencer, porque eles são muito desconfiados. Mas eu digo para eles que o importante é começar, se não gostarem, abandonem daqui uma semana, daqui um mês. Mas pelo menos comecem. E eu percebi que até hoje eu não tive nenhuma desistência. E o que é importante é que esses meninos começaram a se sentir valorizados. Aquele talento que estava adormecido dentro deles, eles colocam isto pra fora.
A bolsa de Iniciação Científica e a vulnerabilidade social
“Como que nós queremos um Brasil diferente, se só trabalhamos com os melhores? Então os piores sempre vão ser excluídos. A gente sempre vai trabalhar com exclusão”- Joana D’Arc Félix de Souza
O que é comum, quando o professor tem uma bolsa de Iniciação Científica, não é errado, mas geralmente o professor seleciona pelo histórico escolar. Como que nós queremos um Brasil diferente, se só trabalhamos com os melhores? Então os piores sempre vão ser excluídos. A gente sempre vai trabalhar com exclusão. Então dando oportunidade para esses meninos que vivem na vulnerabilidade social, eles tendo uma oportunidade, eles mostram aquele talento que está adormecido. E eles serão tão bons, quanto os primeiros ou muitas vezes até melhores, porque eles agarram essa oportunidade com unhas e dentes, eles querem vencer na vida. Esses meninos participando dessa educação científica, eles começam a ler assuntos além da sala de aula, e com isto eles começam a adquirir conhecimento, o que facilitou muito na hora da prova do ENEM e do Vestibular. Nós temos alunos que já fizeram Iniciação Científica comigo e já saíram da escola, todos passaram no ENEM e no Vestibular sem cursinho, porque eles ampliaram o leque de leitura e isso facilitou para adquirir conhecimento. A educação tem jeito, a partir do momento que nós professores, a gente não precisa ficar esperando entrar governo, sair governo para melhorar a educação. Eu acho que cada um de nós pode dar uma contribuição, pode melhorar um pouquinho.
E esse trabalho desenvolvido por você na escola técnica, impactou a realidade destas vidas, destes jovens, de uma forma geral, na comunidade?
Sim, bastante. Impactou bastante. Que já saíram da escola e fizeram Iniciação Científica comigo, foram 40. Desses 40, oito fizeram cursos técnicos e estão no mercado de trabalho e 32 estão na universidade e nenhuma desistência.
Como estes jovens se motivaram a seguir na Iniciação Científica? Sabemos que principalmente, em relação à vida de jovens negros, persistir em projetos como este, é muito mais difícil, por vários motivos. Principalmente, quando temos índices que atrasam ainda mais a vida destes jovens em nosso país. Será que os resultados que vocês obtêm ajudam a motivar estes alunos a persistir?
Sim, ajuda a motivar pelo seguinte: eles começam a olhar para a minha vida como um exemplo. Eu passei por necessidades, que eles também estão passando. Não tive problemas de drogas e nem prostituição na minha família, mas eu sei muito bem o que é ser excluída, sei muito bem o que é passar fome, o que é passar por necessidades, principalmente preconceito. Sofri muito preconceito. Tanto por conta da cor, quanto por condição social. Mas, mais por conta da cor. Então eles acabam me olhando como um exemplo: “ela venceu, eu tô na mesma situação, então eu também posso vencer”. Eles enxergam isto como uma motivação: “eu também posso conseguir”. Eu procuro participar de Feiras aqui dentro, Congressos, Feiras de Ciências com esses alunos, tanto aqui no país, como fora do país. Então eles se sentem muito valorizados quando eles vão representar a nossa escola, o nosso país, nos Estados Unidos ou na Europa. Essa valorização é muito importante, porque quando ele volta, ele acaba motivando outros alunos que estão na mesma situação. Ou seja, mostrando para os outros: “eu também posso”. Então é essa valorização que fez com que eles seguissem em frente e não desistissem. Eu tenho muitos alunos negros, porque eu vou atrás, que estão nessa situação e eles veem que são importantes. E ai, acaba tento aquele relato que eu também sofri. Quando eu era criança o meu pai falou assim: “estuda pra ser alguém na vida”. Ai eu falei assim: “como ser alguém na vida, sendo preta, usando sapato furado e roupa rasgada?”. Porque eu falei isso de como vencer na vida sendo preta? Porque a sociedade me excluiu de tal forma, que eu cheguei à conclusão, enquanto criança, que preto era lixo, que preto não valia nada. A sociedade me fez pensar assim. Mas o que eu tive de bom, apesar da pobreza, foi uma família estruturada. E meu pai teve sabedoria para falar: “estuda pra vencer na vida”. Porque, se de repente, eu encontrasse uma família desestruturada, eu poderia ter escutado aquilo que muitos dos alunos escutam dos pais: sai da escola, a escola não vai te levar a nada, a escola não vai melhorar a sua vida. Então isso também acaba desmotivando os alunos. Aqui na escola, além desse trabalho de orientação científica, ainda temos que fazer esse resgate da autoestima, recuperar essa autoestima dos alunos.
Na sua opinião, a ciência no Brasil é branca?
Muito, muito branca. No ano passado eu participei de um evento no Museu do Amanhã e fiquei espantada com um dado que eu não sabia. Mulheres negras, doutoras, no Brasil, são apenas 0,2%. A ciência brasileira, infelizmente ela é branca.
Eu falo muito em palestras para professores, a gente pode fazer cada um a sua parte, independente de salário. O objetivo de todos é mudar o Brasil. Cada professor tem que fazer a sua parte, independente de governo. Cada um tem condições de dar uma pequena contribuição, para que todas e todos mudem este país.
Como é ser mulher, negra e pesquisadora no Brasil?
Eu acho que até por conta dos trabalhos que são desenvolvidos, eu consegui um certo respeito. Mas mesmo assim, você ainda vê, em alguns lugares, pessoas que torcem o nariz. Só que eu não ligo para isso.
Um problema que vi no ano passado foi quando participei de um evento da Unifesp, Universidade Federal de São Paulo. Acho que foi dia 25 de julho do ano passado, dia internacional da mulher negra. Tinha mulheres do movimento negro, que infelizmente ainda tentavam se esconder atrás do vitimismo. Eu já sou ao contrário. Eu já falo não ao vitimismo. A gente tem que mostrar a cara. Tem que estar em todos os lugares para eles verem. Porque as vezes ficam assim: “a primeira negra que conseguiu isso, a primeira negra que conseguiu aquilo”. Então fica parecendo que nós somos tão inferiores, que hora, quando um se destaca é porque ela é inteligente. Não, eu acho que não é assim ‘a primeira’. Independente da cor, todo mundo tem que ter o mesmo valor. Eu acho que a gente não pode ter esse estereótipo, eu acho que a gente tem que ser enxergado como um ser humano, independente da cor. O que falta muito é a representatividade. Porque você vai em um hospital, você não vê médicos negros, você vai em consultório, dentista dificilmente. Está faltando muita representatividade. Falta aumentar a autoestima do negro brasileiro.
Você entrou na Universidade muito antes da Política de Cotas ser implementada no Brasil. Qual é a sua opinião sobre a inserção desta Politica Pública em universidades?
São fundamentais. Infelizmente, isso hoje ainda é necessário. Só que eu sou muito a favor das cotas sociais. Porque hoje em dia tem negros que conseguem pagar uma escola, dar uma boa educação para os filhos. Só que eu acho que infelizmente ainda precisamos das cotas raciais, das cotas sociais. Porque nós não temos uma educação pública de qualidade para todos. O dia que tivermos uma educação pública de qualidade para todos, ai não precisa mais existir cotas no país.
E o Brasil está muito longe disto?
Não precisava estar muito longe disto não. Se quem está no poder trabalhar em prol da educação e se nós professores, sem ficar esperando políticas governamentais, cada um fizer a sua parte. Vamos motivar esses alunos, vamos trabalhar de forma diferente, mudar a metodologia de ensino, a forma de ministrar as aulas. Cada um dando a sua pequena contribuição, cada um no seu lugar, na sua escola, eu acho que nós conseguimos atingir esse prazo 100%, em menos tempo daquilo que a gente espera.
E na sua área, que é a química, como você enxerga a atuação da mulher negra?
É muito baixa a atuação da mulher negra. Por que o que eu percebi na ‘parte de baixo’, a parte de baixo que eu falo é o ensino médio e técnico. Aqui, eu tenho bastante meninas. Eu tenho muito mais meninas na Iniciação Científica do que meninos. Eu tenho muito mais meninas negras na Iniciação Científica do que meninos. Por que isso se inverte no ensino superior? O que eu percebi de dados aqui da escola, muitas destas meninas, quando vivem na vulnerabilidade social, engravidam. E ela estando na vulnerabilidade social dificilmente volta para concluir um ensino médio, dificilmente ela volta pra concluir o ensino técnico. Então como que a gente está fazendo a nossa parte? Como é que a gente está mudando a realidade? Como eu tenho um número maior de meninas, essas mulheres estão conseguindo entrar em uma universidade. Então é por isso que eu te falo, se cada um fizer a sua parte nós vamos conseguir ter mais meninas na ciência, mais meninas negras na ciência.