0 Comentário em 24 - maio - 2015

Imagem 01Na última semana, após dois dias de reportagens seguidas sobre transexualidade, o Programa do Gugu, exibido pela Rede Record de televisão, foi destaque nas redes sociais e sites de notícias. A atração, que na quarta-feira (20) levou a emissora ao primeiro lugar de audiência, teve como pano de fundo a história de vida de Roberta Close, com clara ênfase em sua transexualidade.

A crítica foi, em sua maior parte, positiva, afinal não se mostra comum a concessão de espaços na grande mídia para tratar de temas que não costumam interessar ao público tradicional. Muitos aplaudiram a iniciativa de uma emissora de grande porte – e com clara inclinação religiosa – em abordar o tema que ainda hoje é tratado, na maior parte dos meios de comunicação formal, de forma periférica e eventual. Todavia, os aplausos deixaram de considerar os substanciais equívocos que permearam as duas reportagens (20 e 21 de maio) e que, de forma velada, seguem afirmando falsas noções sobre a realidade das pessoas trans, e que lutamos, diariamente, para desconstruir.

A primeira, e talvez a pior de todas, é a inadequada  correlação que se faz das pessoas trans com o sexo quando se trata do tema. Não custa repetir: orientação sexual e identidade de gênero não possuem qualquer relação. A atração afetivo-sexual que sentimos pelos outros não define se somos homens ou mulheres. O que define isso é a identidade de gênero que exteriorizamos. Então, quando se fala da inconformidade de alguém à denominação que lhe foi conferida quando do nascimento (homem ou mulher), estamos falando de identidade de gênero, e não de orientação sexual. O programa inicia-se com o questionamento “qual a verdadeira identidade sexual de Roberta Close?”. E a pergunta que não quer calar é: de onde vem essa necessidade de, em qualquer ocasião, ter de se associar identidades ao sexo ou ao órgão genital?

A segunda, de certa forma, responde à primeira. Quando o programa passou a tratar da cirurgia de transgenitalização realizada por Roberta na Inglaterra, a chamada afirmou em tom melódico que ela havia “em fim realizado o sonho de se transformar, definitivamente, em uma mulher“. Nesse momento, a televisão afirmou a milhares de brasileiros que para se tornar mulher, Roberta Close precisava de uma vagina. Tudo o que ela era vivenciara até então não a legitimava, de forma suficiente, a “ser” mulher, não sem uma vagina. A fala faz transparecer o papel secundário atribuído às performances de gênero, à autoidentificação e, sobretudo, à mulher que Roberta Close sempre foi, independentemente do órgão genital que possuía.

A posse de uma vagina coroa o conceito de mulher tradicional e a importância dada a ela reforça a noção equivocada de que somente poderá ser lida como tal aquela pessoa que a possuir. E, ao mesmo tempo, faz com que aquelas mulheres que não a possuem sejam discriminadas. Uma mulher que nasce sem útero deixa de ser mulher por isso? Um homem que, por problemas de saúde, tem de amputar o pênis ou nasce sem os testículos (o que é comum), deixa de ser homem? Ou torna-se menos homem por isso? Por que então precisamos destes orgãos para legitimar a identidade das pessoas trans? Isso realmente importa? Imagem 02

A terceira refere-se à exposição do nome de batismo, não só de Roberta, mas de outras pessoas que participaram do programa seguinte à exibição da entrevista (21). Ainda que essa exposição tenha sido autorizada pelos interessados e a eles, como pessoas públicas, não cause constrangimentos, o problema que aqui se denuncia tem a ver com a necessidade de explorar, conhecer e expor a situação que precede a transição das pessoas trans nestes programas. Essa abordagem, na maioria das vezes, é realizada com uma ênfase reveladora. O nome “de verdade”, “verdadeiro” ou “dos documentos” é frequentemente questionado. E assim contribui para que se siga acreditando que o real não é o que as pessoas trans exteriorizam, mas sim a forma como nasceram. Tudo o que trascende isso cai para o âmbito da escolha, da opção.

Os equívocos são recorrentes e os três pontos indicados, infelizmente, não compõem um rol taxativo. Porém, destacam-se por viabilizar a análise de questões que se desdobram em várias outras e que, por esta razão, permitem problematizar, por via reflexa, a transfobia. Nunca é demais ressaltar: identidade de gênero não tem nada a ver com sexo; genital não define gênero e nome “de verdade” é aquele com o qual a pessoa se identifica.

A televisão aberta é a única fonte de informação para mais de 70% dos brasileiros, e, justamente por isso, sua responsabilidade é imensa. No Brasil, hoje, mais de 90% das trans brasileiras tem a prostituição como única fonte de renda e apenas 5% participa do mercado de trabalho formal. Enquanto o brasileiro vive uma média de quase 75 anos, para elas a expectativa não ultrapassa os 30. A realidade passa bem longe das telas coloridas e da luta por ibope, e isso precisa ser considerado.

Para saber mais sobre transexualidade, vale seguir os perfis públicos das ativistas Daniela Andrade, Sofia Favero e Maria Clara Araújo no Facebook.

https://www.facebook.com/danielasobrevivente?fref=ts

https://www.facebook.com/TReflexiva?fref=ts

https://www.facebook.com/ikeepdancinonmyown?fref=ts

_________________________

Sobre a autora: Ana Patrícia Racki Wisniewski é advogada atuante em questões de gênero e homoafetivas; mestre em direito público, membro do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos; pesquisadora, professora e feminista.

Imagem 01

Fonte: Revista Veja – Disponível em http://vejasp.abril.com.br/blogs/pop/files/2015/02/robertaclose.jpg

Imagem 02

Fonte: Uol – Disponível em http://imguol.com/c/entretenimento/2015/05/21/20mai2015—roberta-close-deu-entrevista-para-o-apresentador-gugu-liberato-na-tv-record-1432180331428_956x500.jpg

categorias: Destaque

Deixe uma resposta