0 Comentário em 24 - junho - 2014

Discussão polêmica em nossa sociedade, o aborto proporciona argumentações apaixonadas tanto daqueles que o defendem quanto daqueles que o condenam. A contenda costuma ser definida em termos antagônicos: o direito do feto de um lado e, de outro, o da mulher grávida[1]. A despeito da importância da abordagem do tema em torno desses polos adversos, o presente texto pretende discorrer sobre a questão do aborto sob o viés do status moral do feto, tendo como objetivo a apresentação de argumentos que subsidiem, de forma imparcial, o debate.

Considera-se que uma criatura possui status moral se e somente se seus interesses são moralmente valiosos a ponto de que mereçam ser objeto de proteção. Para tanto, apenas leva-se em consideração a natureza dessa criatura e não as relações ou afinidades de outros seres para com ela.  Assim, a doutrina especializada[2] assume que o status moral pode ser conceituado em graus (absoluto, relativo ou inexistente), sendo que há quatro principais categorias para sua diferenciação: 1. capacidade cognitiva sofisticada; 2. aptidão para desenvolver capacidade cognitiva sofisticada; 3. capacidade cognitiva rudimentar; 4. ser membro de uma espécie com capacidade cognitiva sofisticada.

Em termos amplos, no relativo ao grau mais alto, uma criatura tem status moral absoluto quando há fortes objeções em relação a matá-la, machucá-la ou torná-la objeto de estudo/experimentações médicas sem o seu consentimento. Alguns doutrinadores incluem também uma premente necessidade de ajudá-la quando em perigo, além de uma veemente razão para tratá-la com justiça.[3] Em sua famosa obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes[4], o filósofo alemão Immanuel Kant definiu o conceito de autonomia, i.e., a capacidade de decidir racionalmente, como sendo a mais elevada capacidade intelectual sofisticada e, também, como embasamento para a dignidade do ser racional. Outras atitudes, tais como a habilidade de fazer planos futuros, de avaliar riscos e situações e a capacidade de se preocupar emocionalmente consigo ou com outrem, também fazem parte do rol destas capacidades. Nessa categoria, incluem-se, por exemplo, não só os seres humanos adultos autônomos, mas também elefantes, golfinhos, grandes primatas.

No concernente ao status moral relativo, como não há consenso sobre o que poderia classificar os diferentes graus de status moral, o caminho utilizado é a diferenciação entre quais argumentos podem ser utilizados para a defesa dos interesses da criatura em discussão – e qual força eles têm.

Por último, apesar da denominação autoexplicativa, cumpre salientar que criaturas e organismos que não possuem status moral não estão sujeitas a qualquer tipo de proteção em face de seus interesses próprios.

Então, acerca do status moral do nascituro, há duas grandes correntes de pensamento acerca do tema[5]: aqueles que acreditam que o feto somente passa a ter status moral no momento em que atinge certo nível de senciência e aqueles que, pelo modo de pensar gradualista, acreditam que o feto, desde a concepção, já merece ter o direito à vida preservado, em face do que virá a ser e representar.

No atinente à primeira corrente, que leva em consideração as categorias de diferenciação 1 (capacidade cognitiva sofisticada) e 3 (capacidade cognitiva rudimentar) indicadas acima, sendo senciência a capacidade de sofrer ou sentir prazer e felicidade, essa linha de pensamento indica que não pode haver injúria contra um organismo não senciente, pois o próprio organismo não teria a capacidade de perceber que está sendo injuriado. Por óbvio, pode-se arguir que mesmo um organismo não senciente, como, por exemplo, uma alga ou uma planta de alface, possui necessidades biológicas prementes. Porém, para essa corrente, as necessidades biológicas não são suficientes para que o organismo possua status moral e, por consequência, para que seja merecedor de proteção. Para essa corrente, somente há a necessidade de proteção quando existir a senciência. O exemplo utilizado pela filósofa americana Maggie Little (vídeo indicado na nota de referência n. 5) traduz exatamente o que está sendo aqui falado: é consenso dizer que o corpo humano pode existir sem a mente, eis que pode haver morte cerebral em um corpo humano ainda vivo – as funções biológicas podem continuar a funcionar muito após o cérebro ter morrido; nesse sentido, já não há mais a pessoa per se, há somente o corpo – a pessoa, porém, não existe sem a mente; o status moral deixa de existir após a morte do cérebro. Seguindo essa linha de pensamento, o corpo existe também antes da formação da pessoa e, assim sendo, antes do status moral, antes da intrínseca necessidade de proteção. Nesta visão, o aborto é permissivo nos primeiros meses da gravidez, eis que o ser humano nunca foi embrião; passou a existir somente após a senciência, ou seja, em algum momento após a metade da gestação.

Na visão gradualista, seus defensores assumem que não há um momento específico em que o feto adquire status moral. Esta corrente, alinhada às categorias 2 (aptidão para desenvolver capacidade cognitiva sofisticada) e 4 (ser membro de uma espécie com capacidade cognitiva sofisticada) acima indicadas, indica que o feto, desde sua concepção, possui status moral relativo e, à medida que vai se desenvolvendo, passa a ter, gradualmente, maior grau de status moral, i.e., incrementando o nível de proteção de que é merecedor. Nesse sentido, não há um momento específico em que o embrião se torna ser humano e, por isso, detentor de status moral absoluto – o embrião, desde a concepção, é um ser humano em desenvolvimento. Quanto maior o nível de desenvolvimento, maior a proteção de que é merecedor. Essa visão, logo, assume que, uma vez concebido, o feto merece proteção, cujo nível aumenta na medida em que o nascituro se desenvolve e, assim, adquire maior status moral.

Verifica-se que a questão do status moral do feto é um dos principais problemas que antecedem a discussão sobre a moralidade do aborto. Nota-se que há vasta gama de escritos acerca do tema, que, em sua maioria, buscam sustentar uma ou outra posição, em tentativa de convencimento do leitor sem a apresentação dos argumentos adversos. Porém, por tratar-se de uma questão filosófica aberta, cujas correntes majoritárias ainda ensejam inúmeras outras ponderações[6], o texto objetivou apenas fornecer introito ao tema do status moral do feto, ante a subjetividade da posição assumida tanto por parte daqueles que defendem a interrupção forçada da gravidez quanto daqueles que a condenam. Nesse passo, o texto, ao apresentar o problema e uma objetiva conceituação de status moral, além das duas principais correntes para a defesa ou o repúdio do aborto com base na moralidade da ação sob o ponto de vista exclusivo do feto, conduz, imparcialmente, a discussão para o campo filosófico e, assim, demonstrando diferentes pontos de vista, espera contribuir para uma melhor compreensão do tema.

 

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Por Fabrício José Rodrigues de Lemos. Mestrando em Direito Público pela  Unisinos (2014). Possui graduação em Direito pela Unisinos (2013). Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos (NDH). Advogado. http://lattes.cnpq.br/4217441321009017


[1] Para uma visão ponderada sobre o tema do aborto do ponto de vista da mulher grávida, em destaque o exemplo do violonista famoso, ver Thomson, Judith J. A defense of abortion. Boulder, 1986. Disponível em: <http://tinyurl.com/ppc43>. Acesso em: 22 jun. 2014. A forma utilizada na argumentação do artigo indicado, porém, é bastante criticada em POSNER, Richard. Problemas de Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 469.

[2] Ver, por exemplo, LIAO, S. Matthew. The Genetic Account of Moral Status: A Defense. Journal of Moral Philosophy. Boston, 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/ljj5c6w>. Acesso em: 22 jun. 2014. GRAU, Christopher. Moral Status, Speciesism, and Liao’s Genetic Account. Journal of Moral Philosophy. Boston, 2010. Disponível em: <http://tinyurl.com/oydaart>. Acesso em: 22 jun. 2014. DEGRAZIA, David. Moral Status as a Matter of Degree?  The Southern Journal of Philosophy.  Memphis, 2008. Disponível em: <http://tinyurl.com/q6kn6r6>. Acesso em: 22 jun. 2014. JAWORSKA, Agnieszka. TANNENBAUM, Julie. The Grounds of Moral Status. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford, 2013. Disponível em: <http://tinyurl.com/om3a8mp >. Acesso em: 20 jun. 2014.

[3] JAWORSKA, Agnieszka. TANNENBAUM, Julie. The Grounds of Moral Status. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford, 2013. Disponível em: <http://tinyurl.com/om3a8mp >. Acesso em: 20 jun. 2014.

[4] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007. p. 79.

[5] LITTLE, Maggie. Early Human Life – Modest Moral Status. 2013. 1 post. (7 min 40 s). Postado em: 2013. Disponível em: <http://tinyurl.com/o8qsjre>.  Acesso em: 22 jun. 2014.

[6] Ponderações como, por exemplo, para a tese senciente, qual o momento exato em que se inicia a senciência do feto e, para a corrente gradualista, o que fazer com aqueles embriões in vitro que não serão gestados, fazem parte do rol de questões a serem respondidas.

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