No dia em que o golpe que institucionalizou a ditadura civil-militar no Brasil completa 50 anos (1º/4/1964 – 1º/4/2014), é fundamental que se rememore o que foi o terrorismo de Estado e o que essa política repressiva significa no país, na memória dos seus mortos e desaparecidos, no testemunho dos tantos presos, torturados e exilados que sofreram o seu flagelo e sobreviveram para contar o que aconteceu, na publicização de quem e dos meios pelos quais a violência se institucionalizou.
A ditadura civil-militar no Brasil foi caracterizada por uma repressão altamente judicializada, o que levou à formação de uma legalidade autoritária que legitimou a permanência do regime e repercutiu no controle que as Forças Armadas exerceram sobre as medidas transicionais brasileiras, o que pode ser verificado em maior ou menor medida até a atualidade. Essa legalidade se afirma ao passo em que a Constituição não foi suspensa no período de exceção, mas passou a conviver com os Atos Institucionais que aumentaram a repressão institucional gradualmente e legitimaram intensamente a tortura e a barbárie como políticas de Estado.
A intensidade de uma ditadura não se mede pela vala de mortos que ela carrega, mas pelas marcas que deixa na sociedade. Nesse sentido, a herança deixada pelo período ditatorial no Brasil repercute na ausência de uma efetiva Justiça de Transição no país, e nas marcas de autoritarismo e violência que ficaram e persistem até os dias atuais marcando a política brasileira, sobretudo contra a população mais pobre e necessitada da atuação estatal. Em vista disso, a ditadura brasileira é considerada uma das mais duras da América Latina.
A articulação entre memória e verdade como meios de concretização da justiça implica em se considerar o outro como alteridade absoluta, porquanto as vítimas outrora invisibilizadas passam a ter papel fundamental nesse novo contexto. Assim, a política de memória implica necessariamente na justiça de transição à medida que, oficial ou publicamente, visa elucidar a verdade e realizar a justiça olhando o passado e reconstruindo o futuro na paz e buscando evitar a reincidência da barbárie.
As medidas da Justiça de Transição no Brasil, não obstante tenham avançado no sentido da promulgação da Lei 12.528/2011, que instituiu a Comissão da Verdade, parecem se mostrar insuficientes se considerados pelo menos dois dos seus pilares: o julgamento e a punição de violadores de direitos humanos, especialmente daqueles que perpetraram a tortura (crime amplamente difundido, embora ainda não definido, como de lesa-humanidade) e a reforma das instituições. A estes, pode-se acrescentar um terceiro viés de insuficiência, segundo o qual os mecanismos tradicionais da Justiça de Transição não estariam levando em conta todos os silêncios produzidos na história e que são mais agudos nos períodos autoritários. Isso se revela em aspectos como a evidente demora na instituição da Comissão da Verdade (quase 30 anos, quando nos demais países da América Latina, as Comissões da Verdade foram instituídas em períodos de aproximadamente cinco anos) e tendo em vista que as instituições brasileiras permanecem reproduzindo uma cultura de violência que remonta ao estado de exceção.
A Justiça de Transição deve ser concebida tanto pelo viés do reconhecimento quanto pelo da importância da memória e da verdade na concretização dos objetivos de justiça. As políticas de memória têm o condão de reconhecer o terrorismo de Estado e suas consequências para a coletividade, tencionando a preservação de certos valores democráticos, éticos e morais, bem como a constituição de patrimônio para as gerações futuras, sendo um dos fundamentos da implantação dessas políticas de memória a condenação moral do passado, a erradicação de qualquer justificativa para a implantação das ditaduras.
Contraposta à dimensão da memória como potencial garantidora da justiça, a ideia do esquecimento, contexto em que ocorrem indistintas manipulações históricas e reproduções da violência, o que elide a possibilidade de se falar em redemocratização ou transição democrática. A amnésia tem o condão de banalizar a violência e a legitimar para seguir sendo um instrumento institucional, permeando sobremaneira os mais diversos estratos da sociedade.
Mesmo após o julgamento dos casos Olavo Hansen e Julia Gomes Lund pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se verificou a incorporação da jurisprudência supranacional. Entretanto, o impacto dessas decisões e do espírito da Convenção Interamericana de Direitos Humanos se verificou no sistema jurídico-político brasileiro em 2011, quando foram adotadas as leis nº. 15.527, que regula o acesso à informação, e nº. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade.
Apesar de representarem avanços na justiça transicional brasileira, ambas as inovações seguem a lógica da perseguição política supra afirmada, desconsiderando as demais identidades subalternizadas e oprimidas violentamente por ocasião do regime político do estado de exceção. Da mesma forma que houve grande continuidade jurídica na passagem da democracia para o autoritarismo, as transições ocorridas na década de 1980 não desmontaram por completo o aparato judicial repressivo construído pelo regime militar. Algumas das leis nas quais esses julgamentos se baseavam – bem como as instituições que processaram e julgaram os acusados – ainda existem. Casos como o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, após ser torturado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, e a execução da trabalhadora negra Cláudia Silva Pereira pela mesma PM, com o desferimento de dois tiros, um nas costas e outro no pescoço, seguido pelo arrastamento de seu corpo por cerca de 250 metros pela viatura policial, são apenas dois exemplos recentes e que chocaram o país, demonstrando o quão violenta e torturadora permanece sendo a polícia brasileira.
A verdade na apuração dos fatos que levaram à legitimação da ditadura por um período tão longo no Brasil, através de um terrorismo de Estado que perpetrou na guerra desleal que resultou nas centenas de pessoas e famílias que foram mutiladas e massacradas lutando pela volta da democracia, é fundamental na consolidação de uma memória capaz de articular novas posturas do Estado brasileiro, em direção a uma justiça social que muito é difundida e pouco é concretizada. Um país sem memória é um país suscetível a cometer os mesmos erros. A partir da consolidação da memória e da repulsão ao autoritarismo e à violência institucional é que se encontrarão mecanismos de enfrentamento a ações governamentais violentas e autoritárias como as que têm se verificado em episódios recentes no cenário político-social brasileiro, como aconteceu nas manifestações de junho e julho de 2013 e nos processos de preparação das grandes cidades brasileiras para a recepção dos megaeventos esportivos que serão sediados pelo país a partir deste ano (Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016), com a suspensão dos direitos constitucionais em benefício da Lei Geral da Copa e com a tramitação no Congresso Nacional de um malfadado Projeto de Lei Antiterrorismo. Em ambos os casos seguem como na ditadura tanto a retórica da forte repressão militar sobre a liberdade de expressão como a ideia da disseminação do terror para justificar a aceleração dos processos desenvolvimentistas que privilegiam as elites em detrimento das grandes massas.
O autoritarismo, simultaneamente velado e evidente, que caracteriza a atuação do Estado perante o povo e as instituições brasileiras, a permanência das milícias na condução conturbada da segurança pública, o modelo de corrupção política e o combate ao inimigo (antes o comunismo, uma vez que o regime foi totalmente afiançado, ideológica e financeiramente, pelo capitalista Estados Unidos da Guerra Fria, e hoje a “baderna” que representa qualquer manifestação contrária às políticas desenvolvimentistas governamentais), condutas importadas da ditadura civil-militar, são apenas alguns dos tantos exemplos do que ficou e não mudou. Por isso a urgência da memória e da verdade. Por isso a urgência da concretização de uma efetiva Justiça de Transição. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.
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Por Karina Macedo Fernandes, mestre em Direito pela Unisinos e membro do Núcleo de Direitos Humanos
Bibliografia consultada:
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BRAGATO, Fernanda Frizzo; PAULA, Luciana Araújo de. A Memória Como Direito Humano. Relatório Azul. Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011, pp. 133-146.
FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. São Paulo: Fundo de Cultura S.A, 1964.
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Leia mais em:
Negacionismo (IHU Notícias) – http://www.ihu.unisinos.br/noticias/529369-negacionismo
Filha de Rubens Paiva diz que destino esclarecido do pai serve de exemplo (IHU Notícias) – http://www.ihu.unisinos.br/noticias/529367-filha-de-rubens-paiva-diz-que-destino-esclarecido-do-pai-serve-de-exemplo
As Marchas da Família com Deus pela Liberdade. 50 anos depois. Entrevista especial com Aline Pressot (IHU Notícias)- http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/cinquentenario-da-marcha-com-deus-pela-familia-e-a-liberdade-e-uma-sociedade-que-nao-se-reconciliou-com-a-memoria-da-ditadura-entrevista-especial-com-aline-pressot-/529378-cinquentenario-da-marcha-com-deus-pela-familia-e-a-liberdade-e-uma-sociedade-que-nao-se-reconciliou-com-a-memoria-da-ditadura-entrevista-especial-com-aline-pressot-
Regime militar: A trajetória da mentira – Entrevista com Jair Kirschke (IHU Online – edição nº. 439) – http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5419&secao=439
“Não há tema mais atual do que a memória” – Entrevista com José Carlos Moreira Filho (IHU Online – edição nº. 439) – http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5420&secao=439
Especial de Carta Capital sobre os 50 anos do golpe – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/especial-lembra-50-anos-do-golpe-contra-jango-6874.html
Raízes da impunidade no Brasil – Coluna do Juremir Machado – http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=5762