0 Comentário em 30 - setembro - 2013

James Marion Sims foi um médico americano, que por suas descobertas e invenções é considerado hoje o pai da ginecologia moderna. Ele é o responsável pela criação do espéculo (instrumento com o qual o médico é capaz de enxergar, e examinar, o interior da vagina), pela cirurgia de reparação de fístula, de extração de pedras da vesícula, pela iniciação de tratamentos de fertilidade (inseminação artificial) e várias outras inovações na área, isso tudo por volta dos anos 1850.

O que poucas pessoas sabem é que Sims realizava seus “experimentos” em escravas. As mulheres negras eram utilizadas como “cobaias” nas experiências ginecológicas do médico no Estado do Alabama. A cirurgia de reparação de fístula urogenital foi “testada” em sete escravas que sofriam da doença. Os procedimentos eram brutais e doloridos. O médico operou mulheres negras por mais de quatro anos sem a utilização de anestesia, em um ambiente com condições anti-sépticas inadequadas. Uma destas mulheres foi operada pelo menos trinta vezes, todas sem a utilização de qualquer método que inibisse a dor, muito embora este tipo de medicação já existisse na época.

Estas cirurgias – realizadas mediante o sofrimento e a dor das mulheres negras daquela época – permitiram a evolução dos procedimentos que hoje são utilizados ao redor de todo o mundo pelos médicos ginecologistas no trato de suas pacientes. A experiência serviu também para que o médico pudesse aperfeiçoar sua técnica e, somente depois, aplicá-la, de modo confiável e indolor, às mulheres brancas (que podiam pagar).

Pouco se sabe sobre a exploração das escravas negras, no século XIX, em pesquisas ginecológicas. Fonte da imagem: http://elegbaraguine.files.wordpress.com/2013/08/the-gynecological-work-of-j-marion-sims.jpg

Pouco se sabe sobre a exploração das escravas negras, no século XIX, em pesquisas ginecológicas. Fonte da imagem: http://elegbaraguine.files.wordpress.com/2013/08/the-gynecological-work-of-j-marion-sims.jpg

Fatos como este não costumam ser divulgados. O sofrimento vivenciado pela população negra no período da escravidão muitas vezes é silenciado ou reduzido ao “impulso físico” destinado ao trabalho braçal ou à obediência. Em meio ao senso comum, poucas pessoas têm acesso às terríveis práticas dirigidas a estes homens e mulheres, à subjugação, à dor e à humilhação vivenciada por eles no período da escravidão. Esta invisibilidade histórica, por sua vez, é condição que permite a continuação da violação dos direitos destes indivíduos, justamente por inviabilizar uma visão crítica do que aconteceu e ainda hoje acontece. Sem conhecer não é possível questionar, sem questionamentos não há mudança.

É preciso esclarecer ainda que não apenas o passado é escondido, um presente marcado pela diferença também não é mostrado. Conforme pesquisa realizada pela Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, as mulheres negras recebem menos anestesia do que as brancas na hora do parto, além de receberem uma prestação de serviços médicos inferior em termos qualitativos do que aquela oferecida às mulheres brancas. E isso não é tudo!

Todas as vezes que as mulheres de hoje, forem aos seus ginecologistas e realizarem procedimentos sem dor, devem se lembrar do sofrimento vivido pelas mulheres negras utilizadas como cobaias nas pesquisas e experimentos realizados sem anestesia pelo “pai da ginecologia moderna”. Imagem: Mulata, de Di Cavalcanti. Fonte da imagem: http://4.bp.blogspot.com/-Tg_4zWo3jzI/TrkcEdGtJrI/AAAAAAAADQ0/BQ8M51B6wGQ/s1600/mulata+Di+Cavalcanti.jpg

Todas as vezes que as mulheres de hoje, forem aos seus ginecologistas e realizarem procedimentos sem dor, devem se lembrar do sofrimento vivido pelas mulheres negras utilizadas como cobaias nas pesquisas e experimentos realizados sem anestesia pelo “pai da ginecologia moderna”. Imagem: Mulata, de Di Cavalcanti. Fonte da imagem: http://4.bp.blogspot.com/-Tg_4zWo3jzI/TrkcEdGtJrI/AAAAAAAADQ0/BQ8M51B6wGQ/s1600/mulata+Di+Cavalcanti.jpg

Conforme a coordenadora da ONG Crioula, Lúcia Xavier, elas “acabam recebendo menos anestesia, porque se acredita que as mulheres negras seguram mais a dor. Então, a seleção de quem vai receber uma medicação, independente de ser uma prescrição, tem a ver também com o olhar que se tem sobre a mulher negra” ressaltando ainda que ao evitar tocar nas mulheres negras, os médicos deixam de agir na prevenção de doenças como o câncer, que têm alta incidência neste segmento da população. “Os exames que são necessários acabam não acontecendo, porque há nojo e desprezo pela pessoa”.

Por todas estas razões torna-se imperativo resgatar a história e passá-la adiante. Todas as vezes que as mulheres de hoje, forem aos seus ginecologistas e realizarem procedimentos sem dor, devem se lembrar do sofrimento vivido pelas mulheres negras utilizadas como cobaias nas pesquisas e experimentos realizados sem anestesia pelo “pai da ginecologia moderna”, Dr. James Marion Sims. Além disso, compete a cada um de nós o conhecimento da realidade experimentada, não somente pelos negros, mais pelas diversas minorias existentes em nossa sociedade. O respeito e a plena efetivação dos direitos de homossexuais, deficientes, mulheres e outros tantos “invisíveis” depende antes de seu reconhecimento como iguais, como sujeitos plenos de direitos, o que, passa, necessariamente, pela compreensão de sua condição política, histórica e social, não somente pelos estudiosos da área, mas, por todos nós, cidadãos em âmbito geral.

(por Ana Patrícia Wisniewski, mestranda do PPG em Direito da UNISINOS, bolsista PROSUP/CAPES e integrante do Núcleo de Direitos Humanos)

categorias: Destaque, Reflexão

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