0 Comentário em 16 - dezembro - 2012

Na última quinta-feira, 13/12, aconteceu a última reunião do Núcleo de Direitos Humanos da UNISINOS, que contou com a presença da professora Dra. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger, da Universidade Federal do Rio Grande e da Universidade Católica de Pelotas, que dissertou sobre “Conhecimento jurídico colonial e subalterno: os desafios de(s)coloniais e interculturais – algumas experiências no Equador e na Bolívia”. Na ocasião, a professora Raquel iniciou sua fala ressaltando a possibilidade de construção de um novo discurso/pensamento de(s)colonial e  intercultural  como ferramenta teórica capaz de permitir uma análise da produção dos conhecimentos jurídicos, não mais centrado em concepções epistemológicas eurocêntricas. Falou acerca da proposta de uma decolonialidade e interculturalidade epistemológica nos saberes político-jurídicos, o que possibilita uma redefinição e ressignificação da retórica emancipatória da modernidade, incluindo a análise de conceitos como democracia, direitos humanos e Estado, a partir de cosmologias e epistemologias do subalterno.

Professora Taysa Schiocchet, professora Fernanda Bragato e professora Raquel Sparemberger

Professora Taysa Schiocchet, professora Fernanda Bragato e professora Raquel Sparemberger

A seguir, a professora Raquel trouxe uma série de autores importantes para o estudo do pensamento descolonial, autores que trazem múltiplas perspectivas metodológicas e diferentes conhecimentos, originados a partir de distintas abordagens e conceitos, como Dussel, Grosfoguel, Fanon, Foucault, Castro Gomes, Bhabha, Catherine Walsh, Maldonado Torres, Levinas, Bartolomé de Las Casas, Althusser, Todorov, Zizek, Said, Boaventura de Sousa Santos, Stuart Hall, Roberto da Matta, Silvio Coelho e Roberto Cardoso de Oliveira. Após, esclareceu que, de acordo com Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010), a expressão Epistemologias do Sul é uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de saberes, povos e culturas que, ao longo da história, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo – colonialismo que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, do sentido da vida e das práticas sociais. Ademais, que a retórica da modernidade e suas ideias pretensamente universais (cristianismo, modernidade, Estado, democracia, mercado etc.) permitiram e permitem a perpetuação da lógica da colonialidade (dominação, controle, exploração, dispensabilidade de vidas humanas, subalternização do saberes dos povos colonizados, etc.); que no processo atual da globalização, o domínio do saber tecnológico é simbolicamente o determinante das relações de poder, assim como que essas relações foram construídas e constituíram saberes e conhecimentos diferenciados que definiram os dominantes e os dominados, esses que tiveram e têm seus conhecimentos subalternizados, inclusive no nosso foco de estudo que é o conhecimento tradicional do Direito.

A professora também explicou que a expressão “subalterno” começou a ser utilizada nos anos 1970, na Índia, como referência às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e possibilitou um novo enfoque na história dos locais dominados, até então, observados apenas do ponto de vista dos colonizadores e seu poder hegemônico. Emergiria, assim, o nome “subalternidade”, que, de nome abstrato, teria seu sentido deslocado para certa concretude e visibilidade, lembrando Gayatri Spivak, para quem o subalterno é aquele que não pode falar: sempre que tiver voz, não mais será subalterno, para Spivak.

Professora Taysa Schiocchet, professora Fernanda Bragato e professora Raquel Sparemberger

Professora Taysa Schiocchet, professora Fernanda Bragato e professora Raquel Sparemberger

Para Raquel, temos no Direito um “paradigma” epistemológico dominante centrado na objetividade, na reprodução, e aceito pelo chamado senso comum teórico dos juristas, com fortes características coloniais e de subalternidade. O paradigma epistemológico tradicional (colonial), nesse sentido, concentra-se em torno dos valores e interpretações ligados a um tipo de conhecimento centrado na objetividade ou na relação construída entre sujeito e objeto. Deve-se, então, atentar à possibilidade de ir além do discurso jurídico moderno/colonial e pensar condições outras do jurídico; vivenciar o “direito” não como um sistema fechado de normas jurídicas pensado apenas a partir do “Estado”, tampouco defender que conceitos como democracia, justiça e direitos humanos sejam entidades únicas definidas e válidas para todo o planeta. A professora esclareceu que a entrada em cena do “outro” e de suas formas de conhecimento significa que por meio dos processos de de(s)colonialidade epistêmica é possível buscar as reações e respostas daqueles que tiveram seus saberes subalternizados (saberes em um sentido amplo, incluindo práticas, memórias, subjetividades, etc), os quais foram considerados primitivos, inferiores, arcaicos, etc. O que se pretende é a discussão ou mesmo a proposição de um pensamento jurídico “outro” que parta da emergência dos saberes jurídicos latino-americanos subalternizados e não da perspectiva jurídico-epistemológica eurocêntrica e colonial do conhecimento.

Trazendo o pensamento de Catherine Walsh, Raquel disse que a interculturalidade pode ser considerada como uma ferramenta conceitual central para construção de um pensamento de(s)colonial. Primeiro porque está concebida e pensada desde a experiência vivida da colonialidade; segundo porque reflete um pensamento não baseado apenas nos legados eurocêntricos ou da modernidade e, terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma volta na geopolítica dominante do conhecimento que tem tido como centro dominante o norte. A interculturalidade se diferencia do multiculturalismo na medida em que esta última categoria compreende que a diversidade se expressa em sua forma mais radical, por separatismos e etnocentrismos e, em sua forma liberal, por atitudes de aceitação e tolerância. Já a interculturalidade diz respeito a relações complexas, negociações e intercâmbios culturais que emergem de espaços de fronteira (Mignolo): trata-se de uma interação entre pessoas, conhecimentos, práticas, lógicas, racionalidades e princípios de vida diferentes.

Assim, a professora Raquel apontou que os fundamentos e os pressupostos da cultura jurídica moderna, antropocêntrica e ocidental, passam a ser devidamente questionados, na medida em que além do discurso da interculturalidade, a perspectiva da “descolonização” (do Estado, da sociedade) também entrou em evidência, principalmente na Bolívia e no Equador, a partir da primeira década deste século (sofrendo influência inclusive dos estudos acadêmicos latino-americanos da decolonialidade, Quijano, Mignolo, etc.).

A seguir, a professora trouxe duas experiências de rupturas com o tradicional: na Bolívia, as organizações camponesas, indígenas e originárias, no contexto da Assembleia Constituinte (que elaborou o texto aprovado em janeiro de 2009), articularam o discurso da descolonização a partir da proposta do “Estado plurinacional”, o qual é considerado para esses movimentos e organizações um modelo de organização que teria como função “descolonizar nações e povos indígenas originários, recuperar sua autonomia territorial, garantir o exercício pleno de todos os seus direitos como povos e exercer suas próprias formas de autogoverno”. Um dos elementos fundamentais a ser tratado na concretização do Estado plurinacional é o direito à terra, ao território e aos recursos naturais, possibilitando acabar com o latifúndio e com a concentração de terras, rompendo com o monopólio de controle dos recursos naturais em benefício de interesses privados. De igual maneira, o Estado plurinacional implica que os povos e nações indígenas, originários e camponeses sejam representados no Poder Público, de acordo com suas próprias normas e procedimentos.

Já no Equador, a proposta do Estado plurinacional foi introduzida inicialmente no final da década 1980 pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, sendo amplamente discutida por essa organização durante os anos de 1990, reconhecendo, junto a vários intelectuais não-indígenas, que a plurinacionalidade não implica numa política de isolamento ou separatismo, mas sim no reconhecimento de sua própria existência como povos e nacionalidades no interior do Estado equatoriano, enfatizando que não existe uma só forma nacional, mas várias formas historicamente estabelecidas.

Ao final, a professora Raquel Sparemberger enfatizou que a América Latina tende cada vez mais a se renovar no sentido pluralista, através de uma democracia que inclui o índio e o negro como personagens atuantes, construindo uma sociedade mais humana e mais próxima da igualdade econômica, social e cultural, o que vem sendo explicitado pelas experiências da Bolívia e do Equador, as quais demonstram os anseios da população latino-americana por uma nova ordem constitucional.

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