Por André Dick
Em Como é que chama o nome disso, que a Publifolha lançou em 2006, numa notável edição, Arnaldo Antunes faz uma antologia, com quase 400 páginas, de sua obra, incluindo algumas caligrafias e letras de música. Além disso, apresenta um livro inédito, seguido por uma entrevista, feita por Arthur Nestrovski, Francisco Bosco e José Miguel Wisnik. Um autor como Arnaldo, que divide sua persona em mais de uma área, em seu caso, a poesia, a música e as artes plásticas, tende naturalmente a não se encaixar em nenhuma, mesmo que haja um fio que una sua obra (a palavra), ou seja, seu trabalho ganha deslocamentos sempre imprevistos, principalmente quando lida, em alguns casos, com registros diversos dos mesmos trabalhos. Desses campos, é verdade, acaba se sobressaindo o mais acessível e certamente o mais consumido, o da música, onde Arnaldo é um letrista de destaque, fazendo um trânsito sem paralelo no Brasil. Assim, acaba por ser encoberta, por vezes, sua faceta talvez mais interessante: a do poeta que lida com a palavra que se sustenta no papel e se utiliza de imagens desintegradas, de lugares-comuns, de uma linguagem pseudo-infantil, sob um olhar desautomatizado, que nos leva a um certo primitivismo, do qual trataremos ao longo deste ensaio. O que se nota na antologia são algumas imagens recorrentes da poesia de Arnaldo, remetendo a um ser primitivo. Posicionado, na verdade, como homem natural, Arnaldo parece desconfiar da ciência, como Jean-Jacques Rousseau, apesar de se referir
a ela: seus poemas com menção a esse campo são básicos, infantis. O discurso científico lhe interessa enquanto pode ser transmitido à criança, daí Arnaldo escrever em sua letra de música “a ciência em si”, com certo tom de axioma: “Se o que se pode ver, ouvir, pegar, medir, pesar / Do avião a jato ao jaboti / Desperta o que ainda não se pôde pensar / Do sono do eterno devir / Como a órbita da terra abraça o vácuo devagar / Para alcançar o que já estava aqui / Se a crença quer se materializar / Tanto quanto a experiência quer se abstrair / / A ciência não avança / A ciência alcança / A ciência em si” (ou seja, a ciência é aquilo que apresenta o mundo natural; em Rousseau, a ciência é boa apenas em si mesma, pois o autor divino de todas as coisas é a fonte da verdade). O objetivo de Arnaldo é a taba do tribalismo, a antropofagia oswaldiana, com seu “homem natural tecnizado”, embora com predileção pelo homem natural, de Rousseau, como queria Oswald em seu manifesto, e não pelo homem civilizado.
Ressalte-se que esta característica se mostra no campo poético e não na maioria dos artigos do autor, alguns reunidos ao final de Como é que chama o nome disso, em que se procura um diálogo maior com os mass media. No entanto, leia-se um texto como “Sobre a origem da poesia”, em que Arnaldo, compondo um discurso subjacente à influência dos mass media e à propagação da poesia via informática ou via música, como se fosse outro autor, escreve: “A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades – significante e significado” (observe-se que o autor se refere a uma “infância da linguagem” e não a uma “linguagem da infância”). Tal reflexão encaminha Arnaldo para o que ele considera “algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado”.
A ciência, com isso, é uma ameaça ou é um campo à parte da realidade que quer oferecer: da pessoa que observa as coisas pela primeira vez, com um “simples olhar” primitivo, mas não um olhar menos provido por ser contrário à ciência e sim como uma idéia de mundo. A sociedade, com isso, não deixa de ser uma ameaça, como em Rousseau. Ela representa um perigo para o poeta que pretende dar ao leitor a visão de um mundo utópico, em que o homem continua bom porque é bom por natureza (a canção “saiba” é exemplar nesse aspecto). Rousseau não admirava os avanços tecnológicos, e pode ser estranho classificar um poeta que lida com o computador na realização de muitos de seus poemas alguém que possui aspectos que se direcionam para tal filosofia.
Mas os poemas de Arnaldo com trabalho gráfico destacado costumam lidar com as letras como carimbos, garatujos, rabiscos, fragmentos, ao estilo de Edgar Braga (uma influência confessa de Arnaldo), o que mostra mais explicitamente em suas caligrafias:
O trabalho de Arnaldo é artesanal; na realidade mostra uma vocação para o antifuturismo e para um trabalho verbal completamente avesso aos avanços da informática, ou melhor, ele só deseja nesses o que lhe lembra a inscrição primitiva – veja-se a palavra H2OMEM (do livro Psia) gravada como se fosse lascada numa pedra. Assim, privilegia o que chama, em seu texto “Escrita à mão”, de “inscrições rupestres”.
A origem do poético
Seguindo uma reflexão de Bakhtin, presente no texto “Sobre a origem da poesia”, Arnaldo entende que há uma complexidade nesse pensamento primitivo que desenvolve em sua obra. Arnaldo reproduz a reflexão de Bakhtin: “O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal etc.”. Para o poeta, tais usos “são estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia, que elabora seus paradoxos, duplos sentidos, analogias e ambiguidades para gerar novas significações nos signos de sempre”. Ele ainda acredita, ao mesmo tempo, num regresso ao tempo em que “os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito” e “música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência ser conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras”, na tentativa de alcançar a “infância da linguagem”. Esse primitivismo incorre no que Oswald dizia da poesia Pau-Brasil, baseada na filosofia de Rousseau: “Ágil e cândida. Como uma criança”. Arnaldo quer, como Oswald (e não é por acaso que este é figura recorrente na entrevista com Arnaldo ao fim da antologia) e Rousseau, atingir uma ordem “sentimental, intelectual, irônica, ingênua”, uma “volta ao sentido puro”, visando a um “estado de inocência”. Nesse estado, o homem ainda é puro e descobre coisas que, com mais idade, passam a ser óbvias ou mesmo desimportantes. É quando o homem passa a deixar de lado sua visão poética nascida de rápidas observações ou de reflexões despretensiosas.
Visão infantil
Temos, então, o poeta como alguém que quer explicar obviedades, mas sob uma perspectiva estranha, como em “nome não” (de Tudos): “Os nomes dos bichos não são os bichos. / Os bichos são: / macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha”. O conteúdo e a forma do poema parecem saídos de uma reflexão de criança em voz alta – o som, afinal, é para o poeta em questão, primordial para a conexão entre as pessoas. No entanto, esses elementos simbolizam, na verdade, seu lado primitivo, pré-babélico, que pretende entregar significações distintas com os mesmos signos de sempre, como no poema que o poeta enviou à IHU On-Line, “Entre os dentes”:
entre os dentes restos,
como no reto, infectos
excretos, nichos
de bactérias abertos
na polpa doce
do osso exposto
em cáries
entre
os maxi
lares
Arnaldo pretende oferecer à criança uma idéia “pura” de universo, longe do “mundo cão” a que se referia num poema excluído dessa antologia da Publifolha – e transforma cada analogia numa espiral em que se escrutina a materialidade das palavras. Essa idéia é levada ao extremo em Nome, que continua a dicção de As coisas, com seus poemas em forma de enumerações e de definições próprias das que encontramos em dicionários. Destaca-se, então, a constituição do homem, como água e terra, como corpo, por meio, sempre, de um simples olhar. Em outros momentos, o questionamento a respeito do destino do homem (que do pó veio e ao pó voltará) se estabelece a partir de uma estranheza negativa. A recusa ao discurso científico mais elaborado tem um adensamento, em poemas mais recentes de Arnaldo, como “gen”, “acasala”, “olha”, “eu mim” e “dna”. Os versos deste poema apontam algo de novo na poesia de Arnaldo – a ser mais elaborado em seus próximos trabalhos. É interessante, também, a maneira com que o poeta apresenta discretamente a palavra “dna” (ou “dno”) em “eu mim”, por meio dos verbos no gerúndio. A cadeia genética (que aparecia no poema “o macaco”) inscreve três versos distintos, que se complementam: “eu fim”, “eu eu” e “eu mim”. O “eu”, nessa cadeia, vai se perdendo verso a verso, inclusive na palavra “somes” que surge em “por is (so mes) mo”. Ou em “cromossomos” ( “somos como o cosmos somos cromossomos”).