Por André Dick         

          Talvez a definição mais surpreendente que o poeta Augusto de Campos, nascido em 1931, na cidade de São Paulo, tenha dado sobre si mesmo encontra-se num texto emocionado que escreveu em homenagem a seu irmão Haroldo, logo após o falecimento deste. Enquanto Haroldo era “ridente, exuberante, expansivo”, Augusto se considera “parco, melancólico, à beira do silêncio”. Tais características se referem ao sujeito empírico ou textual? Por ser um texto autobiográfico, pode-se dizer que o empirismo é evidente. Isso não descarta que tal definição não sirva também para caracterizar o trabalho textual do poeta. O compositor  Caetano Veloso – que gravou o poema “O pulsar”, de Augusto, publicado abaixo – escreve, em seu livro de memórias Verdade tropical, que Augusto não se interessa pela retórica, pelo discurso. Ele seria um “sujeito metódico”, sem egocentrismo, ou algum traço de brilhantismo que o autor de Araçá azul assinalou ter percebido, por exemplo, em Glauber Rocha e em Ferreira Gullar.

                  

          Augusto, na verdade, possui uma apreciação pelo silêncio, elemento que busca em figuras que analisa, como Mallarmé, João Gilberto e Webern. No campo literário, porém, nem Mallarmé nem Augusto apresentam um silêncio místico, até porque eles não se colocaram no papel de habitantes da torre de marfim. O silêncio de Augusto é, sobretudo, verbal. Augusto transforma o ser humano num objeto a ser extinto pelo silêncio: “um / som / que / não / soa / / no / ar / que / não / é / / qua / se / se / pes / soa”. No poema “viventes e vampiros”, entrecorta o poema com uma partitura, ironicamente: “viventes e vampiros / a sugar / até o último suspiro / / a vida vírus / a sangrar / poetas e papiros”. Em “afazer, ao escrever os versos “excesso / de exser poesia / afazer de afasia”, retorna à extinção (mitológica) do elocutor. O “excesso de exser” (contrapondo o “excesso de exser” ao de “deixar de ser” ou “de ter sido”) produz a poesia, que nada mais é, para Augusto, que um “afazer de afasia”, isto é, de silêncio, de recolhimento. Por sua vez, “dizer” assinala o desaparecimento de si mesmo dentro da linguagem: “desa / pare / cer / / criar / sem / crer / / quantomais /  poetamenos  / dizer”, voltando ao recolhimento silencioso de “afazer”. Escreve, igualmente, no polêmico “pós-tudo” o verso “extudo mudo”, além de remeter a “absurdos mundos mudos” em “anticéu”. Em algumas intraduções, essa busca pelo silêncio permanece, como em “o som (mandelstam)” (“o / som / seco / e / surdo / desta / / fruta cain / do / / no mur / múr / io / sem / fim / do / / oco / silêncio / da flor / esta”); “transcorvo de poe” (“mas / o corvo / sem um som / surdo e só”); e “pó de tudo (scelsi)” (“ao / nível / do / silêncio / o / pó / de / tu / do”).
          Todos esses poemas retratam uma posição pessoal de Augusto, mesmo que não haja um pretenso “eu lírico” (o eu, como se disse, não some na poesia de Augusto, apenas se materializa numa linguagem indireta, neutra): há o silêncio pessoal, já presente desde seus primeiros poemas, de O rei menos o reino, ou no poema concreto  “tensão” , abaixo:

             

          Outros poemas de Despoesia seguiriam a mesma linha já adotada nesses poemas iniciais – como na série Poetamenos (1953), em que o poema relembra o início de seu romance com Lygia. Em “canção noturna da baleia”, por exemplo, Augusto compõe o som marítimo ao mamífero esboçado no título, fazendo referência à lenda de Jonas e à Moby Dick, de Herman Melville, citando “Ahab”. No poema, um “m”, como se fosse um murmúrio marítimo da baleia, percorre os intervalos das palavras. O “mesmo som” delineia uma comparação entre Ammagio e Scelsi, músicos que Augusto estuda em Música de invenção, colocando as palavras em círculo, com a assonância de “meSMO” em “SOM”.  Em “minuto”, ele diz ver sua vida retroceder num minuto como um “filme de cinema mudo”. Em “oco”, poema de NÃO, o poeta escreve: “só eu ressôo o som sem som que sufoco”, aqui o tema do silêncio aliado a uma compreensão da subjetividade.
          Além de poeta excepcional, que produz poemas em animações (para os quais dá o nome de clip-poemas), Augusto é exímio tradutor de poesia. Tanto em livros dedicados a poetas quanto em livros de crítico que trazem traduções, Augusto mostra as melhores versões em português existentes de autores como Rimbaud, Rilke, Mallarmé, cummings, Pound, entre outros. À IHU On-Line ele enviou uma tradução de “Brahma”, de Ralph W. Emerson, e concedeu uma entrevista sobre seu livro Emily Dickinson – Não sou ninguém, além de ter permitido a republicação de algumas de suas traduções de Gerard Manley Hopkins na revista dedicada ao poeta inglês. Além disso, é crítico literário: seus livros Verso reverso controverso, Linguaviagem, O anticrítico e Poesia da recusa reúnem alguns dos melhores ensaios feitos sobre poetas estrangeiros: Augusto dedica-se a analisar desde os provençais, passando por Dante Alighieri, poetas românticos (Keats), simbolistas (Mallarmé, Rimbaud, Corbière), investindo naquilo que considera “tradução-arte”, o mesmo que Haroldo de Campos, seu irmão, chamou de “transcriação”. Como disse em entrevista à IHU On-Line: “Uma tradução que não se limite ao literal, mas recupere os achados artísticos do original e se transforme num belo poema em português e não num arremedo canhestro. É possível, sim, ser fiel aos experimentos do poema original sem “trair” seu conteúdo mas isso exige duas condições básicas: a técnica artística (que é, segundo Pound, o teste da sinceridade, pois como ele acentua, se uma obra não merece boa técnica é porque lhe falta merecimento) e a identificação emocional com o texto de origem. […] É preciso muita sensibilidade para recobrar a paixão concentrada do poema, aquela “espécie de matemática inspirada” para as nossas emoções, de que fala Pound. O conteúdo não deve ser pensado à letra, em unidades semânticas, mas como um conjunto formal-semântico-emocional, cujo espírito deve ser captado”.
          Vejamos a bela tradução que Augusto fez para o poema Primavera”, de Mallarmé:

           A primavera enferma expulsou sem clemência
           O inverno lúcido, estação de arte serena,
           E no meu ser, que ao sangue obscuro se condena,
           Num longo bocejar se espreguiça a impotência.

           Crepúsculos sem cor amornam-me a cabeça,
           Velha tumba que cinge um círculo de ferro,
           E, amargo, atrás de um sonho vago e belo eu erro
           Pelos trigais, onde se exibe a seiva espessa.

           Exausto, eu tombo enfim entre árvores e olores,
           E, cavando uma fossa para o sonho, a boca
           Mordendo a terra quente onde germinam flores,

           Espero que o meu tédio, aos poucos, vá-se embora…
           –  Porém, do alto, o Azul ri sobre a revoada louca
           Dos pássaros em flor que gorjeiam à aurora.

           Ou a tradução de “versos à Tchecoslováquia”, da poeta russa Marina Tzvietáeiva, que trata, com repulsa, da invasão nazista nesse país:

           Lágrimas de ira e amor!
           Olhos molhados, quanto!
           Espanha em sangue!
           Tchecoslováquia em pranto!

           Montanha negra  –
           Toda a luz amputada!
           É tempo  –  tempo  –  
           De devolver a Deus a entrada!

           Eu me recuso a ser.
           No asilo da não-gente
           Me recuso a viver.
           Com o lobo regente

           Me recuso a uivar.
           Com os tubarões do prado
           Me recuso a nadar,
           Dorso dobrado.

           Ouvidos? Eu desprezo.
           Meus olhos não têm uso.
           Ao teu mundo sem senso
           A resposta é  – recuso.

          Não por acaso, diante de uma obra tão interessante, em que o silêncio e a recusa ainda servem como elementos de ética, João Cabral disse numa entrevista: “sinto uma extensão do meu trabalho em relação a Augusto de Campos, embora acredite que ele tenha feito, como seus companheiros (Haroldo de Campos e Décio Pignatari, com os quais criou a poesia concreta), uma obra original estupenda”. Quando se lê Augusto, é difícil discordar da afirmação cabralina.        

                                                                                                          

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