Por André Dick         

          Nascido em Florianópolis (SC), em 1984, Victor da Rosa é um dos poetas que vêm surgindo nos últimos anos com um olhar voltado à ligação entre literatura, música, cinema e artes plásticas em geral. Mestrando em Literatura, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve ensaios sobre literatura e artes visuais desde 2004, publicando com regularidade no Caderno de Cultura do Diário Catarinense e nos periódicos digitais de cultura e arte Centopéia (www.centopeia.net) e Zunái (www.revistazunai.com.br).
          Em 2007, foi curador de três eventos de arte contemporânea: Fim de partida (individual de Cláudio Trindade), no Espaço ARCO, Florianópolis; Réquiem (happening com cinco artistas), no Espaço ARCO; e Desvio para o vento, exposição coletiva com sete artistas, na Fundação Hassis, Florianópolis. É um dos organizadores do Bloomsday de Florianópolis e da Galeria do referido site Centopéia, que realiza pequenas exposições em espaço virtual, mantendo ainda um blog (www.victordarosa.blogspot.com). Ou seja, Victor da Rosa é um poeta que se preocupa tanto com a realização de seu trabalho verbal quanto com sua influência no espaço visual, assim como artistas que admira, a exemplo de Joan Brossa e John Cage.    

          Piano e flauta 

          Em seu livro de estreia, com as doze narrativas de piano e flauta – fragmentos de um romance (São Paulo: Lumme Editor, 2007), Victor revela uma prosa entrecortada por insights poéticos e uma sensibilidade no que se refere sobretudo à organização de imagens, costurando, inclusive, diálogos, como no primeiro fragmento: “era de um sorriso pouco e o cabelo no rosto – o laço não segurava por inteiro. vestia lilás com branco, num vestido longo e gestos quase naturais. tinha o olhar repleto de palavras, parecia de atriz – incompleto feito carícia, e nuança – na luz fraca da noite: convite, talvez? meio em silêncio, fui franco e desajeitado: você dança esse jazz, por acaso? e esse poema, você dança? […] qual é mesmo o seu nome?”. Victor da Rosa, a começar pelo título, estabelece uma ligação com a música, como no segundo fragmento de seu livro, em que faz uma interessante analogia: “composto por dois acordes menores (som de flauta em solo de meia-noite) seu corpo dormia suspenso naquele quarto de hotel”. No quarto fragmento, diz: “[…] ela desprendeu os cabelos, seduziu o vento num balanço e logo veio soprando canção”. Já no oitavo fragmento, lemos: “o lamento do piano cada vez mais distante, caindo o domingo frio, ela caminhava lento aquela rua estreita”.
          De modo geral, seu livro piano e flauta traz constantes referências a barulhos, silêncios – sobretudo de objetos (“o ruído da chave dando voltas, o ímpeto da ducha quente estalando o chão”) –, à chuva, a um encontro que logo se transforma em perda – situado sobretudo num quarto, que remete a varandas, quartos, praias, ambientes claros ou noturnos. Essa perda se refere sempre à imagem de uma mulher, e o encontro, cercado pela música, parece sempre remeter, paradoxalmente, a um silêncio, tanto aquele que o poeta inscreve em sua criação quanto o da natureza, que é apenas aparentemente estática. Isso porque se percebe que Victor empresta vida a elementos que não são humanos: “o vento acertou um tapa no rosto da janela, folha de madeira batendo na vidraça: a casa de olhos fechados”; “nuvens carregavam lágrimas por dentro”; “gotas deitavam sobre a mesa”; “disco velho chorando na vitrola”, “um vento distraído suspendeu a sujeira das folhas secas no quintal”, “palavras voaram aquele impulso frágil”. Ou seja, se o encontro com a figura humana não é possível, as imagens de objetos ao redor adquirem certa vida. Isso quando a figura humana não ganha vida através do objeto: “naquele espelho dobrado – quadro sem mundo – ela mergulhou fundo, rasgando a superfície fingida e sumindo (em página transparente, palavras perdidas no tempo)”. Ao mesmo tempo, nas narrativas poéticas de Victor, as estações variam (em certos momentos, há um “céu de outono”, em outro, é “fim de tarde no verão”, e ainda se lembra que “nuvens pálidas manchavam o inverno”).
 

          Cinema e poesia

          O trabalho de Victor da Rosa continua poético quando faz reflexões sobre o cinema, como em “Um único anjo: anotações para o cinema de Wim Wenders”, do qual separamos o primeiro fragmento, que fala de Paris, Texas:

          Há uma cena em Paris, Texas, de Wim Wenders – talvez a cena de maior intensidade de todo o filme: o ponto onde a narrativa sofre sua maior inflexão – em que o personagem principal, o antológico Travis, perdido durante muito tempo, se reencontra com a mulher que o abandonou, Jane. Separados pelo espelho escuro de uma cabine de peep show, local de trabalho de Jane, somente Travis pode vê-la – e sendo assim, o privilégio do olhar lhe garante nesta cena uma posição de poder. Jane é um objeto que não olha. O espelho os separa e marca certamente a impossibilidade de qualquer reencontro – o reflexo de seus rostos que se cruzam um sobre o outro, em tensão, sugerem a memória de que já foram uma pessoa só. Jane, ao centro, se oferece e se fragiliza, exposta a um olhar que ainda não conhece. Travis, vazio, permanece em silêncio. Depois, ao começar a descrever a história de duas pessoas que se amavam, abaixa os olhos e vira de costas para o vidro, como se negar o privilégio do olhar fosse também suspender a si – fosse esquecer toda a memória que se torna insuportável e precisa ser enfrentada, afinal: a própria imagem no espelho. Aniquilar a sua história, finalmente, salvar-se dela.  Quanto pode dizer o ato de fechar os olhos?         

          Nessas reflexões sobre o filme de Wenders, Victor mostra o impacto que tem a ideia do ensaio sobre seu processo de criação, o que se percebe em “O sono escrito”, em que faz referências a João Cabral e inicia assim, poeticamente:

          Há um momento do sono – quando já estamos com os olhos fechados, em silêncio, mas ainda no limiar de um estado lúcido – há um exato momento em que a imagem de repente deriva. Então só há tempo para pensar – o último enunciado, talvez: agora enfim adormeço. Neste momento perdemos o controle de nossa memória: as imagens passam como se diante dos nossos olhos, em torno – dentro – e nada podemos fazer contra isso: nenhuma narrativa se retém ou se organiza. É um momento em que tudo se torna suspenso, vago e imprevisível. É assim o começo de uma escrita.

          Miniaturas poéticas         

          Abaixo, ainda, é publicada, de forma completa, a série de poemas que Victor enviou à IHU On-Line, intitulada “Miniaturas” (na revista saíram seis dos doze fragmentos). Nela, é feita novamente menção novamente a músicos (Conlon Nancarrow, Toru Takemitsu), investindo numa metalinguagem que remete também a uma filosofia oriental – carregada pela influência de John Cage – e ao trabalho do espanhol Joan Brossa, que conduz tudo a uma reinterpretação do barroco, associado também à música, com uma referência inusitada ao jogador Riquelme, da Argentina. Percebe-se, aqui, uma analogia entre o movimento do corpo e a sonoridade – uma das marcas do trabalho instigante de Victor da Rosa.

          1,

          para sérgio medeiros

          sintaxe serpente interminável,
          que pende mole
          ou molhada
          de uma árvore muito alta: tronco de água
          e o córrego que escorre da calha
          não escolhe
          cai espessa
          se espalha
          e nada.

          2,

          I –
          matéria mole
          esculpir a água

          II –
          máscara líquida
          o mar é máquina
          de retratos

          3, escrituras.

          I –
          linhas de luz
          escritos no ar

          II –
          palavras de arame
          o peso de um poema
          pendurado
          no papel

          III –
          a última carta
          esta página úmida
          seu nome
          em branco

          4,

          na tecla da pianola martela a corda de uma toccata
          o corpo inumano toca maquínico
          cada som seco: mecânica música
          mínimos acordes: caótica dicção.

          nunca um temporal inteiro queda na telha
          da casa escura de conlon nancarrow.

          5, al carrer de wagner.

          equilibra o poema na ponta mas –
          aparece na outra:

          o ponteiro do relógio de joan brossa
          não acerta.

          (corte)

          o dado desliza pelo chão e
          redondo ou cúbico não
          equilibra.

          (corte)

          sem música
          o desenho da partitura
          a seta se atravessa precisa no aço do espelho – e aparece na outra:

          6, s/título.

          tudo se movimenta mudo
          sabe-se pouco da velocidade do ar
          que nos escapa –

          palavras em uma página opaca
          morta sobre a mesa: faca
          enterrada no branco

          a mesma ameaça – frágil
          são os olhos ainda frios.

          7, distância.

          aço de fino corte
          o som repartido em golpes
          as mãos de toru takemitsu.

          8,

          para cláudio trindade

          um copo cheio de água fria
          transborda, diáfano
          com palavras de vidro quebrado.

          é fio de luz: recortada faca,
          agudo golpe
          na manhã branca.

          9, imaquinária.

          I –
          a máquina por dentro é barroca
          ou retórica:
          máquina oca | máquina morta.

          II –
          a retórica é o eco
          da máquina oca:
          máquina dentro | automática morte.

          III –
          ruído arranhando o silêncio
          resto de som
          ritmo arrastado de um risco
          eco morto
          oco:
          máquina.

          10,

          riquelme impõe com seu ritmo destro
          o jogo morto ou túmulo – lento
          e com um golpe preciso e certo
          o seu silêncio decreta o outro.
 
          contraste definido pelo vento:
          dois passos de monótono domínio
          futebol sem sobra: lâmina, pouco
          só permanece o olho em movimento.
 
          se sua presença predomina o mínimo
          ainda mantém o drama do barroco.

          11,

          quando me perco em uma cidade estrangeira
          e olho para o mapa que é também uma cidade
          inteira no bolso da calça
          é como se a imagem do instante em que me perco
          ficasse presa para sempre no papel.

          12,

          para virna teixeira

          luz fraca na boca
          e branco, tudo
          muito branco: os objetos,
          a cortina, o céu, as mãos brancas
          esticavam a saliva
          — nunca estive tão perto, espere
         agulha mole na pele mas — nenhuma dor
         a pele morre aguda após
         a primeira pergunta: nós dois
         vamos para o céu quando acabar tudo isso?

         As miniaturas poéticas de Victor da Rosa revelam múltiplas referências, uma das características da poesia brasileira contemporânea, o que as torna tão importantes. Seu trabalho, ao mesclar as mais diversas artes, dialoga com o mundo contemporâneo de forma decisiva. Além disso, mostra um sujeito poético que se movimenta na criação de um objeto poético, não ficando imóvel dentro dos parâmetros literários. A sua metalinguagem não se constitui num afastamento da realidade, mas numa compreensão mais complexa dela. Ao destacar objetos de construção (para as artes plásticas e para o próprio poema), acaba se inserindo numa tradição de poetas que pensam sobre os elementos que a constituem.

                                                                                             

2 Respostas

  1. nike disse:

    muito legal seu blog!
    parabéns!

  2. nazir disse:

    são completamente fascinantes adoro-os todos

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