Por André Dick         

          O volume Poesia pois é poesia – Poesia 1950-2000 são as obras completas em “verso”, até agora, de Décio Pignatari, escritor nascido em Jundiaí (SP), em 1927. Editado primeiramente pela Duas Cidades, depois pela Brasiliense – em versões reduzidas, a segunda edição com o acréscimo & Po&etc no título – , o mais recente Poesia pois é poesia tem os selos da Ateliê Editorial e da editora Unicamp. Embora continue importante, falar em Pignatari como poeta hoje em dia parece estranho, talvez por ele andar um pouco afastado do gênero ao qual se dedicou dos anos 1950 ao final dos anos 70, sobretudo na fase mais polêmica do Concretismo, do qual foi um dos criadores. Tornou-se conhecida sua reflexão, referindo-se ao trabalho dos concretos: “certa vez um poeta consagrado nos disse: o arco não pode permanecer tenso o tempo todo um dia tem de afrouxar & eu: no meio da geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso” (ver “Depoimento 1”, em Contracomunicação). Afirmar isso num panorama que tinha ainda Drummond, João Cabral e Manuel Bandeira (como ele reconhece no mesmo depoimento), além de Murilo Mendes e  companheiros de geração (como Hilda Hilst e Sebastião Uchoa Leite) soava, além de exagerado, fora de contexto, mas a polêmica era essencial num universo em que pouco se discutia poesia, como afirmava Mário Faustino, e poetas experimentais recorriam a uma poesia mais popular, a exemplo de Ferreira Gullar. Alguns levaram tão a sério sua frase que até hoje a consideram ofensiva. e a poesia concreta não deixa de pagar as contas por sua pretensão numa época em que o incomunicável – a poesia – ainda pouco comunica. O resultado é que ainda hoje qualquer elogio feito ao trabalho dos poetas que dela participaram – sobretudo Augusto de Campos e Pignatari – parece soar anacrônico, como se eles tivessem ficado parados nos anos 1950, imobilizados pelo tempo e pela teoria.

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          Não foi exatamente assim. Depois de atuar como o principal poeta concreto que estabeleceu contato com europeus (como Max Bense, Pierre Boulez e Eugen Gomringer), Décio, ao mesmo tempo que seria professor de Semiótica, dedicou-se ao estudo dos mass media, escrevendo livros dentro desse campo. Interessado pela linguística, ajudou a criar a Associação Internacional de Semiótica, em que o diretor era Roman Jakobson. Envolveu-se, ao longo dos anos, com a publicidade (ele criou a sigla “Lubrax”), no que foi seguido por poetas como Paulo Leminski, um de seus melhores amigos nos anos 1970, com a prosa e com o jornalismo (nos anos 60, aliás, ele já escrevia sobre futebol, como podemos ver em crônicas de Contracomunicação). Da sua poesia em stricto sensu, Décio se afastou quase que totalmente a partir de meados dos anos 1980 (entre 1990 e 2000, fez menos de vinte poemas, número pequeno em relação aos mais de cem, incluindo as traduções, que fez entre 1950 e 1989, não se esquecendo aqui que quantidade não representa necessariamente qualidade). De qualquer modo, é preciso levar em conta seus trabalhos como tradutor, em Retrato do amor quando jovem (em que traduz Dante, Shakespeare, Goethe etc.), 31 poetas, 214 poemas: Do Rig-veda a Apollinaire e Marina Tsvietáieva (com traduções da poeta russa moderna), além de sua participação nos trabalhos de  Mallarmé e Ezra Pound. No livro de memórias Errâncias, apresenta textos (sobre o túmulo de Mallarmé, por exemplo) com ressonância poética – qualidade também presente em seu romance joyciano Panteros e em seus contos de O rosto da memória. Ao ler sua poesia, porém, sabemos que o seu libello didático sobre como fazer/entender poesia, Comunicação poética, é muito pouco para entender a complexidade e “beleza difícil” de sua obra.

          Imagens atípicas

          Em sua trajetória eclética, o trabalho de Décio, como criador e tradutor de poesia, não só continua a interessar como revela uma ligação direta com a obra de seu companheiro mais direto: Augusto de Campos. Isso porque, ao contrário de Haroldo de Campos, Augusto e Décio se aprofundaram no cuidado tipológico e gráfico da palavra na página, embora o autor de Poesia pois é poesia não tenha se dedicado a ele exclusivamente. De qualquer modo, a influência gráfica do poema Um lance de dados, de Mallarmé, é visível tanto em sua obra quanto na de Augusto (Haroldo de Campos recorria a Mallarmé de forma mais subjetiva do que visual). Eles também souberam, como Haroldo, se desvencilhar da fase ortodoxa do concretismo, que serviu para obter um rigor ainda maior, por meio de uma busca de novos caminhos para seus projetos. 
          Costuma-se dizer que a fase mais radical do trio Noigandres ocorreu durante o auge do movimento da poesia concreta. É possível. Mas, sob outro ponto de vista, é oportuno considerar que, nas obras dos três autores, suas fases mais radicais – no sentido de exploração de imagens, de ousadias sintáticas e semânticas – foram exatamente as pré e as pós-concretas. Na fase pré-concreta era comum que as obras deles fossem parecidas (embora cada uma tivesse características e modos de desenvolvimento particulares), na escolha de alguns temas. Do trio, Décio é o mais barroco em sua fase inicial, mesmo que este conceito tenha se adaptado melhor a Haroldo depois de Galáxias e de livros como A educação dos cinco sentidos e Crisantempo. É o próprio Haroldo que no ensaio “A arquitextura do barroco”, incluído em A operação do texto (1976), considerou Pignatari como um dos poetas que conseguiram, como Sarduy, Mallarmé, Góngora, Sousândrade e Lezama Lima – poetas de diferentes épocas, mas é importante dizer que, para Haroldo, o barroco era transistórico – atingir um alto nível de imagens barrocas em seus poemas. Haroldo destacava o seguinte poema:

          Move-se a brisa ao sol final e no jardim confronta
          a púrpura com luz e a turva bifrenária – um gesto de
          azinhavre. Eni abre o portão, manchas solares
          confabulam: (esvai-se o verão). Seus olhos
          suspeitam, temem o susto das mudanças
          incríveis, repelem o jardim bifronte ao sopro do
          crepúsculo. De verde amargo e quinas de ferrugem,
          um cáctus castelar, optando contra
          a sombra rasa, num escrutínio de esgares, soergue
          entre os cílios de Eni, por um instante, um rútilo
          solar, em marcha com suas nuvens noivas!
          E ela depõe, aos pés de ocre do castelo,
          as pálpebras, aos poucos liquefeitas
          ouro – um malentendimento de ternura
          na tarde decadente, cáctus.

          Haroldo afirma que o poema apresenta “Um dos mais espetaculares lances de competência logopaica (logopeia: a dança do intelecto entre palavras – Ezra Pound) da moderna poesia de língua portuguesa”. Seria um exagero – sendo Haroldo amigo próximo de Décio –, não fosse coerente com a composição. A ligação da claridade do “sol final”, do “sopro do crepúsculo” com as pálpebras liquefeitas, depois que Eni abre o portão e “manchas solares confabulam”, indo embora o verão, e o desenho do cáctus como uma “tarde decadente”, com seu “verde amargo”, compõem um panorama de solidão, o que o torna ainda mais contemporâneo. Haroldo voltou a lembrar tal riqueza de imagens num texto, incluído em Metalinguagem & outras metas (1992) sobre a crítica antecipatória de Sérgio Buarque de Holanda, que teria visto nos poemas de Pignatari algumas qualidades que o ligariam a um traço, segundo Haroldo, de “furiosa pulsão barroquizante”. Destacava Sérgio Buarque nos poemas iniciais de Décio (tal artigo se encontra no segundo volume de O espírito e a letra): “formas amétricas – embora não necessariamente arrítmicas”. O crítico assinalava também uma “mobilidade da expressão” provinda de uma “deliberada aplicação a temas e ritmos que ajudam a estimulá-la”.

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          Desde O Carrossel, de 1950, seu livro de estreia, Pignatari propõe imagens atípicas e móveis, como se ritmassem um filme (“Cavalgo em ‘travelling’ / Com minha infância!”). Como outro exemplo, temos o poema “O lobisomem”, que, com seu humor corrosivo, mostra uma espécie de matemática surrealista, com a qual trabalhava Lautréamont em seus Cantos de Maldoror, e uma certa morbidez em versos como “Arrancou a epiderme com sangue / Toda quente de pêlos malhados”. Em “Poema”, perceba-se a precisão dos versos: “Tosco dizer de coisas fluidas, / Gume de rocha rasga o vento: / Semanas tantas de existir / E de viver – um só momento”. Como os irmãos Campos, Décio recorre a poemas de origem quase teatral, como “Altar-menor”, em que pode explorar, com a devida ênfase, seu conjunto de imagens. Essas ressurgem com toques da ciltura oriental num poema como “Périplo de agosto a água e sal”, que dialoga com a obra Auto do possesso, de Haroldo, com suas referências à “Meca de califas”, a Ramsés II (“Que fermentou por 3 000 anos numa estufa de marfim”), às “tecelãs hindus / Que tresmalharam fios de um mágico tapete” e a mercadores beduínos. A amizade entre Décio e os companheiros de poesia concreta, portanto, não ficaria restrita à esfera pessoal. É demonstrada, por exemplo, no poema “Rosa d’os amigos”, que Pignatari dedica a eles e a si próprio, no qual Sérgio Buarque destacava o “malabarismo vocabular”. Um poema sem autoelogios, mas esclarecedor no que se refere a uma poética em comum: “Esta é a rosa d’amigos (dirás: mesa redonda) / Conciliemos ao crepúsculo: / Este vidro tem algo que não é dos vidros” – este vidro que não é dos vidros sendo isolado como a “flor” de João Cabral e a do “buquê de flores” de Mallarmé.

          Autobiografia irônica

          A ausência de autoelogios também ocorre, da seção Rumo a Nausicaa (com sua clara referência à tradição greco-latina), no poema “Hidrofobia em Canárias”, no qual Décio se antecipa à autointitulação de Leminski como “cachorro louco” escrevendo que é um “cão raivoso”: “decius é o cão / pignatari – o canil”. Há uma espécie de romantismo, na écogla moderna pastoril de “A morte do infante”, com seu tom do Ricardo Reis de Fernando Pessoa: “Vulnerável aos poros da terra perfumada / virei saber dos tempos naturais, / a brisa, a chuva, as vozes familiares / numa saudade confundida / entre o pássaro e a lágrima!”. Também no belo “Noção de pátria”, com a expressão usada por Augusto no título de um livro ensaístico seu, publicado em 1989: “Apenas o amor e, em sua ausência, o amor, / decreta, superposto em ostras de coragem, / o exílio do exílio à margem da margem” (grifos meus, que formam o título do livro de Augusto). E, como faz Augusto em “Ad augusta per angusta”, Décio continua fazendo uma espécie de autobiografia irônica, trabalhando à exaustão um número impressionante de analogias, em poemas como “Decius infante” (que traz novamente a figura do cáctus), “Epitáfio” (com os versos finais que dizem: “Crescente como o céu de março nas ameias das torres elevadas e redondas / e à tua própria sombra no mundo que perdeste / descansa Pignatari”), além de apostar no romantismo de poemas para a amada Eni (em “Fadas para Eni”, escreve: “Eu sou o Príncipe Eni”), relembrando o castelo e o cáctus da tarde do poema antes mencionado. Igualmente, é capaz de dialogar com a poesia de Rimbaud, em “Bateau pas ivre”, com a prosa, que tem algo de barroco, de Marcel Proust, na extensão dos versos e de cada ideia desencadeada (“Viver é frio – sem o cansaço aberto / à tarde, final e vagarosa, e em viagem / sem velas – sem o feliz murmúrio / das vísceras, como constelações de rumo / sussurrantes / para Vésper – e ao largo, ao largo / da insistência mordente de um dia sem piedade (…)”), e com a poesia de Mallarmé (considerado por Pignatari seu mestre, em um texto de seu “biográfico” Errâncias). A presença mallarmeana está numa certa cadência metalinguística desprendida da figura suprema do Autor, procurando a rarefação, em “Eupoema”, por exemplo: “Eu não sou quem escreve, / mas sim o que escrevo: / Algures Alguém / são ecos do enlevo”. O poeta brasileiro também dialoga, nessa primeira fase de sua poesia, antecendo a poesia concreta propriamente dita, com o autor do revolucionário Um lance de dados em “Adieu, Mallaimé (Autoportraîte)” – empregando as palavras espalhadas pela página – e na quebra sintática e vocabular de “Stèle pour vivre nº 1” e “nº 2”, além de sua disposição espacial diferenciada. Todos esses poemas entram na seção “Vértebra”, com poemas publicados na revista Noigandres 3, em 1956. (Continua)

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