Por André Dick  

        O poeta carioca Armando Freitas Filho, nascido em 1940, participou da IHU On-Line em dois momentos: no primeiro, com um poema na revista número 240, na editoria Invenção. Num segundo momento, no dia 22-10-2007, concedeu a entrevista “O poema moderno pode trazer uma utopia constante” ao sítio do IHU. 
          Pode-se dizer que a poesia de Armando cresceu justamente quando se libertou do movimento da Poesia Práxis, que o acompanhou no início, e de certa dicção marginal nos anos 1970. Não que ele fosse fiel a alguma fórmula, mas sua poesia – cuja melhor característica é a tensão – por vezes optava apenas pela sonoridade, em alguns poemas praxistas, ou por aquilo que virou característica de certa poesia marginal, como o poeta diz numa entrevista à Poesia sempre (RJ): a troca da “seriedade forçada” pela “gracinha obrigatória”, mesmo sem fugir a uma poesia de pensamento, reflexiva, e sem entregar-se aos poemas-piada. Como disse em entrevista ao sítio da IHU On-Line, em relação aos poetas marginais, “vivíamos nas mesmas praias, participávamos de debates públicos etc. Isso leva a uma semelhança de identidade comportamental, e, no meu caso, a uma contaminação mínima, irrelevante, na minha poética. Mas uma coisa eles me ensinaram muito bem: que o poeta pode escrever sem a gravata-borboleta de um formalismo reducionista, que o poeta sua, enfim”.
          Nos últimos anos, sobretudo da década de 1980 para cá, Armando não interrompeu sua linha de acertos, com os livros de poesia Cabeça de homem, Números anônimos, Duplo cego, Fio terra, Numeral e sobretudo em seu livro mais recente, Raro mar (São Paulo: Companhia das Letras, 2006). Isso não é pouco – pelo contrário: sua obra, em vida, já vem ganhando um ar de respeito comparável ao de autores que se deixam afetar pelo que acontece no mundo.
          Isso porque o que Armando persegue não é apenas a tradição literária, mas o embate desta com o empírico. Assim, mesmo com a metalinguagem evidente do seu livro mais recente, em Raro mar – em poemas endereçados a João Cabral, a Drummond e a livros, como Lolita e Grande sertão: veredas –, Armando não cai no óbvio, como mostram “Uma leitura do livro” (definindo a relação entre autor e livro: “Mas é no claro e escuro da entrelinha / que o autor e o leitor se confundem: / um de um lado, outro do outro / da grade do texto – quem está dentro / ou fora? – até que a capa se feche”) e “Sonetilho do falso CDA” (com sua bela quadra “Coração unânime / exposto sem anúncio / de ferro adjacente / que o reveste”). Às vezes, a admiração por Drummond cai num certo coloquialismo desajeitado (“Drummond é o cara” é o início de “O observador do observador, no escritório”), o que não impede que, e seguida, o poema se alinhe numa tensão que é marca de todo o livro. Ao mesmo tempo, parece que investindo num verso mais extenso, como já se podia ver em Fio terra (sobretudo na excelente e rigorosa seção inicial, mas também nos poemas simétricos de “No ar”) e Numeral, Armando concede um novo fôlego, talvez mais panorâmico, ao desalento que o conduz a ambientes com os quais já nos acostumamos ao ler seus livros. Nesse sentido, Raro mar apresenta certa inovação quando seus poemas se conduzem a um espaço de construção em que parecem ganhar mais vitalidade. O espaço poético de Armando, no entanto, não está restrito a um processo de releituras, como as do poeta Drummond, ou dos poetas citados na orelha, mas também à dura realidade do Rio de Janeiro: o tráfico, as armas, os criminosos, a insegurança diante da paisagem paradisíaca representada pelo mar, pela vegetação e pelas montanhas. Há em seu olhar uma predileção comprovada pelo que está ausente, mas acaba sempre regressando à escrita, entre deslocamentos, recriação de imagens reais ou fotográficas e de objetos. Armando não foge a temas que poderiam ser considerados banais, que constituem um novo pathos do sujeito.
          No poema que abre o livro, “Outra receita”, ele se contrapõe a um possível afastamento de Cabral da realidade mais crua: “E em vez de pedra quebra-dente / para manter a atenção de quem lê / como isca, como risco, a ameaça / do que está no ar, iminente”. O “risco iminente” é o problema real, presente na esquina. Em outro momento, Armando vai contestar a possível pureza do impuro Mallarmé, no fragmento 51 de “Numeral”: “Azul não aguado, exclamativo, agudo, que dispara / repetido, como o de Mallarmé – azul de maçarico / soldando o chão da cidade, e o som, às sirenes”. Tais elementos já eram abordados em livros anteriores, como Números anônimos. Em “Revólver”, de Raro mar, a arma dispara: “Cada dia é uma bala de roleta-russa. / Cada casa, cada câmara pode estar por acaso / vazia ou ocupada. / No primeiro caso, depois do susto / o dia pára, na cara da paisagem. / Num segundo, dispara”. Armando, de qualquer modo, não se coloca como porta-voz das mazelas, comprometido com algum discurso político: o processo poético que o lança a esta realidade cotidiana ganha um trato verbal de grande qualidade.
          O poema abaixo, que Armando enviou à IHU On-Line foi publicado simultaneamente numa plaquete, com as palavras gravadas num papel transparente.

PARA ESTE PAPEL

Escrito neste papel onírico
feito de vestígios de nuvem
o poema procura não pesar
nem ferir o sono da folha debaixo.
Prefere que transpareça o sonho
a magia que animou a mão
e a elevou, até tocar o céu.
O que pousa nesta página
não marca, nem com a tinta
da pena, a sua face oferecida.
Não marca, mas pretende apontar
o que está atrás da aparência
que o círculo da lâmpada não ilumina
que o aro do sol não queima.

                                               (outono é ponte)
                                               Alice Sant’anna

Estas folhas não numeradas
existem para acolher melhor
qual estágio da expressão?
O do insistente verão que o sol
declama? O da lâmina do inverno?
Ou o das passagens, das pontes
e poentes, do outono e primavera?
A caligrafia busca a beleza
através da letra: traço, volteio
que a mão treinada realiza
dentro da pauta estreita.
Na contramão, a outra, selvagem
tem estilo diferente: livre e preso
no gráfico acidentado dos sentidos.

                                                        
                                               p/Cri

Sua pele, sua palma aberta
aceita minha escrita leve.
Se a força de antes, que calcava
se foi, o que ficou, perto do fim
ainda deseja cobrir, com amor
a distância inconquistável, talvez
por natureza, terra de ninguém.
Que o vento não venha
dar asas às folhas
e não à imaginação, não
as solte dos seus ramos, não
as perca, nem por um segundo
as esqueça, sobre a mesa
sem o peso de um peso de papel.
Não passem, estas páginas, depressa.
Não se perca logo o matiz de sua tez
feito de um flagrante do ar livre.
Fiquem aqui as palavras escritas
resistindo ao desmaio do esmaecer.
A transparência deste papel, pelo
menos, não se rasgará com o tempo.

É interessante que Armando já publicou outras plaquetes depois desta, sempre equilibrando-se entre a literatura e as artes plásticas. Em “Sol e carroceria”, apresenta poemas em prosa, organizados como se fossem um diário, com ilustrações de Anna Letycia. Lemos em “Dia 15 de janeiro de 1998”: “Saindo de férias. Fugindo de férias pelas estradas furiosas do verão. Quem buzina assim, altíssimo, contra a lataria, é o sol. Há, ainda, uns restos de Natal no ar – esfarrapados e vermelhos. E à noite as mil e uma luzinhas recortam árvores, casas, com o seu incêndio controlado, esquecidas aqui e ali. Algumas, cansadas, entram em curto e falham. Pisca-pisca, espasmo, vale-tudo, e nada”. Em “Tercetos na máquina”, dialoga com o poema “A máquina do mundo”, de Drummond: “Tercetos terríveis / de tantas arestas soldadas / sem cuidado e melodia. / / Suas linhas diferem / em alcance e precisão / além de toda medida”. Por sua vez, no recentíssimo “Mr. Interlúdio”, Armando investe numa poética que parece dialogar com a dos heterônimos de Fernando Pessoa: “Quem sou você / que me responde / do outro lado de mim?” ou “Entre mim e você / quem sou eu / simultâneo / quem sou? / O que se fez / enfim, nesse intervalo / onde minhas coisas todas / pousam / na poeira do silêncio / o segredo de sua carga?”. De modo geral, o poema revela um sujeito em dúvida sobre sua temporalidade, tentando preencher as lacunas com mais questões sobre sua própria indefinição: “nessa pausa mínima / entre mim e você / que escreve / com a mão esquerda / o que não sei / o que, com certeza, não escrevo / e nem jamais escreverei aqui”. Diante de tantos projetos novos, é importante lembrar que, para 2009, Armando Freitas Filho prepara a publicação de Lar, seu novo livro de poemas, a ser lançado pela Companhia das Letras.

                                       

2 Respostas

  1. Elaine disse:

    Uma amiga gentilmente colocou na minha página e eu adorei….Parabéns…..Poeta.
    Um super beijo na alma
    Elaine

  2. Elaine disse:

    Uma grande amiga colocou em minha página e eu adorei…Parabéns Poeta!
    Um beijo na alma e abrços de Luz
    Elaine

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