Com a presença de 16 pessoas, dentre elas alunos, professores e pesquisadores da Unisinos, bem como do palestrante Dr. Cesar Sanson, no dia 18 de junho o Instituto Humanitas Unisinos – IHU debateu a temática “trabalho e subjetividade”.
“Trinta anos atrás, em muitas fábricas, havia cartazes que intimavam: ‘Silêncio, aqui se trabalha!’. A principal novidade do pós-fordismo consiste em ter colocado a linguagem a trabalhar. Hoje, em algumas fábricas, podemos fixar dignamente cartazes invertidos aos de outros tempos: ‘Aqui se trabalha. Fale!” Com essa descrição de Paolo Virno, que define o caráter radical da mudança que se processou no mundo do trabalho nos últimos anos, César iniciou a sua fala, buscando demonstrar que o capital adotou uma cruzada contra o caráter monológico do trabalho. O que antes era ocultado agora precisa vir à superfície, o que não era valorizado, enquanto ação individual ou grupal para melhorar o processo produtivo, tornou-se central na nova forma de organizar o trabalho.
Aqui temos ilustrado alguns indícios da passagem do que ele denomina da uma subjetividade do trabalhador vinculada a sociedade industrial, para uma vinculada a sociedade pós-industrial. Mesmo que esta passagem ainda não seja hegemônica hoje, ou seja, não seja a subjetividade pós-industrial a predominante entre os trabalhadores, ela aponta a tendência quando pensamos o mundo do trabalho, afirma César, que seguiu detalhando o assunto e seus desdobramentos.
Do comando e utilização da força física para o comando e utilização da subjetividade – “a alma do operário que deve descer na oficina”
Na sociedade industrial, o trabalhador é encerrado em uma “jaula de ferro”, expressão de Weber, reapropriada por Sennett. As suas características pessoais são desconsideradas, o seu conhecimento é desqualificado, o seu saber não é reconhecido e a sua subjetividade é dispensada. O trabalhador entra no processo produtivo como um “acessório da oficina capitalista” descreve Marx. Na fábrica, ele se torna um numerário, sem rosto e sem fruição a ser manifestada. A sua energia física é consumida, o seu tempo de trabalho é roubado e o seu conhecimento, quando exigido, é usurpado. Coisificado e assujeitado, assim é o trabalhador da sociedade industrial. Assim como a mercadoria, produto do trabalho fordista é estandardizada, o trabalhador também é estandardizado.
Em contraponto ao trabalhador calado do modo de produção fordista, a sociedade pós-industrial demanda um trabalhador comunicativo. Agora se pede ao trabalhador que se disponha a inventar e a produzir novos procedimentos cooperativos, que colabore, que se explicite, apresente idéias. ‘É a alma do operário que deve descer na oficina’, afirmam Lazzarato e Negri acerca da nova exigência do capital. É a sua personalidade, a sua subjetividade que deve ser organizada e comandada.
Assiste-se a uma ruptura da concepção de trabalho da sociedade industrial. Na sociedade fordista, o trabalho insere-se na esfera da reprodução, está preconcebido e atende a um padrão tecnológico e organizacional estruturado de antemão. As tarefas são rotineiras, repetitivas, e podem ser pré-codificadas e programadas para que as máquinas as executem. A relação homem/máquina é despojada de qualquer enriquecimento. Trata-se de uma relação racionalizada por procedimentos que manifestam uma interação mecanicista. O saber operário não é reconhecido, ou apenas parcialmente, por encontrar-se circunscrito nos padrões pré-estabelecidos pela máquina. Há um limite interposto pelo ‘saber morto’ objetivado na máquina que bloqueia a possibilidade do ‘saber vivo’ do operário. Na sociedade industrial da manufatura e do fordismo, a relação com a produção faz-se silenciosamente, pois a máquina-ferramenta não permite uma interação colaborativa.
Agora, com a introdução das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação, as mudanças são significativas. Cada vez mais a valorização do trabalho repousa sobre o conhecimento, sobre a capacidade de interação com a máquina, superando a mera subordinação. Trata-se do que Corsani denomina de “sistema de produção de conhecimentos por conhecimentos”. É nesse sentido que a forma de trabalhar associada ao pós-fordismo é vista como a passagem de uma lógica da reprodução para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de invenção.
Se na sociedade industrial há rigidez, uniformidade e padronização no modo produtivo e demanda-se um trabalhador especializado, fragmentado, parcelizado e não qualificado, na sociedade pós-industrial, pede-se um trabalhador comunicativo, participativo, polivalente, flexível, capaz de realizar múltiplas tarefas que, com o seu conhecimento enriqueça o processo produtivo e faça da comunicação com os outros um recurso permanente.
Subjetividade e trabalho: da sociedade industrial/fordista para a sociedade pós-industrial/pós-fordista
O conceito de força de trabalho, na sociedade pós-industrial, retoma a essência do seu significado, ou seja, a compreensão de que a força de trabalho é um todo corpóreo, reúne todas as faculdades, da força física à competência lingüística. Na nova forma de se organizar o trabalho e ativá-lo, busca-se a reconquista da parte do trabalho vivo que o desenvolvimento histórico do capitalismo tentou aniquilar. Ao capital da sociedade pós-industrial interessa a mercadoria do corpo não apenas como unidade biológica, mas como corporalidadade social, ou seja, aquilo que ele reúne em si, como parte integrante de uma capacidade produtiva maior, que se reúne no intelect generall – o cérebro social de que fala Marx.
Mais do que nunca, o capital procura reconciliar o que um dia foi separado, tornar único o todo do trabalhador, reunir as suas aptidões físicas com a sua “vida da mente” como diz Virno. A “vida da mente” é cada vez mais solicitada no envolvimento com o cotidiano do chão de fábrica.
Em síntese, a sociedade industrial, taylorista-fordista, mobilizou massas enormes de trabalhadores e os empurrou para uma divisão técnica do trabalho que lhes reservava tarefas simples e repetitivas. O operário fordista é duplamente massificado, pela reincidência diuturna a que é submetido num processo produtivo estandardizado e pela negação de suas características pessoais, subjetivas.
Essa sociedade, entretanto, está em reviravolta, embora ainda homogênea, a essência da sua forma de organizar a produção é empurrada cada vez mais para a periferia do núcleo propulsor do novo capitalismo.
Cesar defende a idéia que estamos transitando da sociedade industrial, fordista, para a sociedade pós-industrial, pós-fordista, e o trabalho, o sujeito do trabalho e a subjetividade manifesta no trabalho passam por mutações significativas. Assim como a Revolução Industrial foi o gérmen de um novo tempo, a sociedade pós-industrial anuncia uma tendência que tende a tornar-se hegemônica.
A marca distintiva, que caracteriza a sociedade pós-industrial ou pós-fordista, é a emergência da economia do imaterial e do trabalho imaterial. O trabalho imaterial ainda não se apresenta hegemônico quantitativamente, mas já o é qualitativamente. Poder-se-ia afirmar que se encontra hoje em posição semelhante à que estava o trabalho industrial há 150 anos Na sociedade pós-industrial, o conhecimento, a comunicação e a cooperação, ativados sobretudo pela Revolução Informacional, mas não apenas, passam a ser considerados os principais recursos demandados ao sujeito do trabalho, algo que na sociedade industrial era renegado. A nova forma de organizar o trabalho colocou no centro do processo produtivo os recursos imateriais. A lógica do capital é apropriar-se desses recursos que se desenvolvem como qualidades subjetivas e subordiná-las ao seu projeto.
Trabalho imaterial e Subjetividade pós-industrial: apropriação total e alienação e/ou possibilidades?
O caráter “revolucionário” do trabalho imaterial, segundo Hardt, Negri, Virno e Gorz, entre outros, repousa no fato de que as formas centrais de cooperação produtiva já não são criadas apenas pelo capitalista como parte do projeto para organizar o trabalho, mas, emergem das energias produtivas do próprio trabalho, ou seja, o sujeito do trabalho joga um papel decisivo como parte integrante da própria forma de organizar o trabalho.
A principal fonte do valor reside agora na criatividade, na polivalência e na força de invenção dos assalariados e não apenas no capital fixo, a maquinaria. A capacidade de interação, de iniciativa, de disponibilidade, de ativação, é requerente no modo de ser no trabalho das empresas, e o trabalhador não deve se contentar em reproduzir as capacidades predeterminadas e prescritas para o posto de trabalho que ocupa, mas sim desenvolver-se como um produto que continua ele mesmo a se produzir.
Se na sociedade industrial, o trabalho situa-se fora do operário e encerrada a jornada, o trabalho fica na fábrica; agora, o trabalho subsume toda a pessoa, invade todo o seu ser, não é mais exterior, mas foi interiorizado, é constitutivo ao operário. O tempo do não trabalho confunde-se ao tempo do trabalho, ocorrendo uma mudança na relação do sujeito com a produção e o seu próprio tempo. O plus do trabalhador ativado por seus recursos imateriais é considerado central no novo modo produtivo e essencial na organização da força de trabalho. O modo produtivo pós-industrial requer o engajamento do trabalhador, que ele hipoteque sua subjetividade no trabalho.
Estes fatos fazem com que na sociedade pós-industrial, assiste-se a uma transformação do sujeito na sua relação com o trabalho. Sob a hegemonia qualitativa do trabalho imaterial, tendo em sua base o conhecimento, a comunicação e a cooperação, emerge uma outra subjetividade, que ao mesmo tempo em que é requerida pelo capital, apresenta traços de certa autonomia. O valor do trabalho, na sociedade pós-industrial, apresenta-se cada vez mais de forma biopolítica. O capital investe cada vez mais no indivíduo e não no coletivo, investe na crescente individualização do trabalho, explora as capacidades cognitivas de cada um, e o singular assume o caráter do diferencial nos ganhos de produtividade.
Por isso se afirma que o capital investe na bios – na vida – do trabalhador e, também por isso, se afirma que a resposta à dominação pode ser biopolítica no sentido foucaultiano, ou seja, as mesmas capacidades ativadas pelo capital podem voltar-se contra ele. Esclarecendo: se por um lado é na bios – na vida do trabalhador – que o capital investe procurando ativar os recursos imateriais próprios de cada operário na perspectiva que esses recursos sejam disponibilizados ao capital, por outro, eles também assumem um caráter permanente de produção de si, isto é, essa mesma subjetividade prescrita pelo capital, também resulta em “produção de si”, e nesse sentido é portadora de elementos que podem abrir caminhos para a transformação do próprio sujeito do trabalho.
Quer-se dizer que a nova forma de organizar o trabalho abre a possibilidade da conquista de uma autonomia maior, uma vez que os recursos imateriais, disponibilizados no processo produtivo são também ganhos e aquisição dos próprios trabalhadores. Como destaca Negri, o valor do trabalho, na sociedade pós-industrial, apresenta-se de forma biopolítica, no sentido de que “viver e produzir tornaram-se uma só coisa, e o tempo de vida e o da produção se hibridaram sempre mais”. César defende a idéia de que a forma de organizar o trabalho, na sociedade pós-industrial/pós-fordista, traz dentro de si o antagonismo que pode fundar as novas lutas sociais. O trabalhador pós-fordista, ao entrar no processo de produção, não se apresenta apenas como possuidor de sua força de trabalho hetero-produzida – ou seja, capacidades predeterminadas impostas pelo empregador –, mas como um produto que continua, ele mesmo, a se produzir.
Produção de capital e produção da vida social: o comum e a multidão(?)
A produção de capital é hoje em dia também produção da vida social. Na medida em que o capital instiga o trabalhador a disponibilizar todos os seus recursos (lingüísticos, de comunicação, de interação, de cooperação) com o objetivo de subordiná-los à sua lógica, tem-se também um processo inverso. Esses mesmos recursos servem aos trabalhadores para o seu crescimento pessoal e para o enriquecimento de suas relações sociais, logo, assim, como servem ao capital, criam mecanismos de resistência a ele, afirma César.
Por outro lado, são os recursos imateriais – o conhecimento, a comunicação e a cooperação, que dão conteúdo ao comum, isto é, a multiplicidade de atividades sempre mais cooperativas dentro do processo de produção. Como afirmam Negri e Hardt, “o aspecto central do paradigma da produção imaterial que precisamos apreender é a sua relação íntima com a cooperação, a colaboração e a comunicação – em suma, sua fundamentação no comum”. O comum seria aquilo que pode ser identificado em cada trabalhador, mas também no conjunto deles, aquilo que é partilhado.
É esse comum que é explorado pelo capital, que se manifesta como “expropriação por parte do capital do excedente expressivo e da cooperação do trabalho vivo”. Esse mesmo comum, entretanto, acionado pelo capital, pode ser a base de outra lógica: o comum não apenas como fundamento do capital, mas como sustentáculo de um projeto de emancipação dos trabalhadores naquilo que diz respeito aos seus interesses. É no comum que se encontra a base de exploração, mas ao mesmo tempo, a subjetividade de resistência que se configura na multidão.
O comum é a base da multidão. É a multiplicidade de subjetividades que dá conteúdo à multidão. A multidão designa um sujeito social ativo, que age com base naquilo que as singularidades têm em comum. Segundo Negri e Hardt “é um sujeito social internamente diferente e múltiplo cuja constituição e ação não se baseiam na identidade ou unidade (nem muito menos na indiferença), mas naquilo que tem em comum”. Embora se mantenha múltipla e internamente diferente, a multidão é capaz de agir em comum.
Tendo presente, os elementos descritos, o que César defende a partir da sua tese é que dois séculos de Revolução Industrial possibilitaram que se compusesse uma subjetividade do sujeito do trabalho que desaguou na constituição da classe operária e em determinadas formas de luta. Agora, acredita-se que as mutações do capital levarão a classe a uma outra configuração e a um outro patamar de lutas. Sugere-se que a classe assumirá a identidade de multidão.
Depois da exposição, a tese defendida por César resultou em diferentes debates que puderam ser minimamente aprofundados pelos presentes, em função do tempo e podem continuar aqui. Eu tendo a “acreditar” na perspectiva da multidão, e vocês, todas e todos, o que pensam? Vamos seguir a reflexão? (Postado por Lucas Luz com base no texto que foi base da fala do palestrante enviado por ele ao IHU).