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          Por André Dick

          A mímesis interna dos textos – a maneira como cada autor lida com as imagens do amor que desponta – marca-se sobretudo pela intertextualidade. A obra Vita nova, de Dante, não existiria sem os provençais e a mitologia greco-latina. Na visão de Erich Auerbach, “a obra lança uma luz essencial sobre a vida interior de Dante”. Isso porque mostra “como ele fazia derivar toda a estrutura do seu pensamento do misticismo amoroso do stil novo e indica o lugar que lhe cabe entre os seus companheiros de literatura”. Nesse sentido, segundo Giorgio Agamben, em Estâncias, “não é possível, especialmente, compreender o cerimonial amoroso que a lírica trovadoresca e os poetas do dolce stil novo deixaram em herança para a sociedade ocidental moderna, se não se considerar o fato de que ele se apresenta, desde a origem, como um processo fantasmático”. Esse processo se dá por uma incorporação visual do autor, no caso Dante Alighieri, em sua obra Vita nova, já na Idade Média, da lírica trovadoresca e do dolce stil novo. E essa percepção de Dante, por meio do entendimento de uma tradição, leva à narrativa e ao “processo fantasmático” que compõe, partindo do primeiro encontro com sua amada, sua “musa teologal”, ocorrido por volta de 1274, quando ele tinha nove anos de idade. Há toda uma concepção religiosa medieval nesse primeiro encontro de Dante com Beatriz: é como se ela fosse a salvação de sua alma penada, sofrida, vagando errante pelo mundo. E como se “o espírito animado” o acompanhasse. Para isso, utiliza uma linguagem poética, com metáforas e um sentimento de perplexidade. Ele comenta em seguida, sob o efeito da visão (em tradução de Décio Pignatari, extraída do volume Retrato do artista quando jovem):

          Dali em diante, o Amor tomou conta da minha alma, que logo se dispôs a desposá-lo: em relação a mim, foi ganhando tanta firmeza e poderio, pela virtude que lhe transmitia minha imaginação, que nada mais me restava a não ser atender os seus menores desejos. Ordenava-me, muitas vezes, que eu fosse ver aquela menina-anja: saía à sua procura e muitas vezes a vi, quando menino; sua nobre figura e sua louvável conduta me levavam a dizer as palavras de Homero: “Não parecia filha de gente mortal, mas de um deus”.

          Coloco sem itálico a passagem que mostra exatamente um dos elementos do discurso amoroso: a virtude que transmite a imaginação do indivíduo à pessoa amada, no caso, uma “menina anja”. E, para comprovar que o relato de Dante não é apenas de sua memória pessoal, ele evoca as palavras de Homero para falar da beleza e da louvável conduta de Beatriz. Mas, antes de tudo, a paixão amorosa surge quase como um incidente corriqueiro (Dante olha a praça e, de repente, enxerga a mulher comparável a uma deusa, Afrodite).

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         O segundo encontro aconteceria nove anos depois (número simbólico para Dante), quando a “menina anja” surgiu novamente diante de Dante:

          […] passando por uma rua, volveu os olhos para a direção onde eu me encontrava a tremer: graças, porém, à sua gentileza inefável, que hoje é louvada na vida eterna, cumprimentou-me tão virtuosamente que, naquela saudação, julguei ver todas as expressões da santidade. Era, sem dúvida, meio-dia, quando me atingiu aquela saudação tão doce; e, como era a primeira vez que as suas palavras se moviam em direção aos meus ouvidos, fui tomado de um tal langor que, como um inebriado, afastei-me da companhia das pessoas e me recolhi a um canto ermo dos meus aposentos, onde pudesse pensar na mais que gentil.
 
          Veja-se que Beatriz – uma figura já louvada na vida eterna, pois o livro é a “memória” de Dante – lhe trazia “todas as expressões da santidade” apenas pelo ato de saudá-lo. Já recolhido ao seu quarto, Dante imaginaria, tomado por um “doce sono”, uma “névoa cor de fogo, em meio à qual discerni a figura de um senhor de aspecto amedrontador a quem o visse, mas que, no entanto, coisa extraordinária, dava demonstrações de uma alegria interna; muitas coisas dizia com suas palavras, das quais eu entendia apenas algumas poucas – entre elas, as seguintes: ‘Eu sou o seu senhor’”. Essa visão trazia nos braços o corpo de Beatriz, apertando, numa das mãos, “uma coisa que ardesse em fogo”, e ele lhe disse: “Olhe o seu coração”. Beatriz parecia comer o coração que a figura trazia nas mãos. A alegria do vulto então se transformaria em choro e amargura, e o senhor se afastaria, acordando Dante. Este vulto reaparece ao longo de Vita nova, instigando Dante a compor poemas sobre seu sofrimento ou dando conselhos sobre Beatriz. Como escreve Giorgio Agamben, “não é um corpo externo, mas uma imagem interior, ou melhor, o fantasma impresso, através do olhar, nos espíritos fantásticos, que é a origem e o objeto do enamoramento; mas só a elaboração atenta e a desmedida contemplação desse fantástico simulacro mental eram consideradas capazes de gerar uma autêntica paixão amorosa”. Após essa visão, Dante então escreve seu primeiro soneto:

          A toda alma gentil ou que no peito
          sinta vibrar os versos que ora digo,
          solicito que fale-me a respeito,
          saudando o amor, nosso comum amigo.

          Já era aquela hora em que, ao leito,
          se recolhem todos, menos o céu antigo,
          com seus astros, quando me vi sujeito,
          ao vulto de um Amor quase inimigo.

          Afetava alegria, ao comprimir
          meu coração na mão, tendo nos braços
          minha senhora, em panos, a dormir.

          Depois a despertava e ela, aos pedaços,
          o coração se punha a consumir.
          Chorando, o Amor se volve sobre os passos.

          Partindo dessa imagem de Beatriz, segundo Agamben, em Estâncias, “a descoberta medieval do amor por obra dos poetas provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto, simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto significa que o fantasma é, também, o sujeito e não simplesmente o objeto do eros.”. Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma “nova pessoa”, “na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto”. Esse fantasma, no caso de Dante, é Beatriz – é a “imagem do Outro” a que remete Paz.  

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          Há um diálogo de Dante obviamente com o imaginário, com o fantasma incorpóreo a que se refere Giorgio Agamben. No entanto, mais do que isso, há um congelamento de Dante na linguagem que ele descobre na infância: Beatriz é a imagem que deixa Dante no eterno momento de descoberta da linguagem, que remete ao que Giorgio Agamben escreve em Infância e história. Beatriz representa a sua busca incessante pela linguagem, e é o que o acompanha. Agamben, diga-se de passagem, investiga a infância dessa constituição do “eu” e relembra a imagem do “fantasma” dos poetas medievais, em Infância e história
          Agamben procura constantemente, com isso, localizar elementos que possam explicar que o sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto como uma espécie de representante da humanidade é uma figura passada; a linguagem de cada um pertence à comunidade com quem convive. A infância instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, sistema de signos e discurso. O sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano.
          A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se “um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância”. A infância em questão, no entanto, não assinala apenas um período, mas “coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito”.  Desse modo, Dante compõe não só Vita nova, mas a sua obra dita mais importante, a Divina comédia. A figura de Beatriz, que o ajuda a descobrir, no caso, a sua linguagem, se transforma numa referência – é o “processo fantasmático” que estende a infância para dentro do sujeito, a imagem do Outro dentro de si mesmo.

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          Essas visões, próprias a um autor de Idade Média, sem saber que sua escrita representa uma antecipação da modernidade, acabam fazendo com que a obra revele sua própria construção, à medida que o autor a conta a partir de uma possível experiência pessoal. Mas essa experiência, moderna, só sobrevive a partir do diálogo com o ambiente que cerca Dante e o que o antecede, que é a tradição, e sua própria descoberta da linguagem. Como observa Giorgio Agamben, “só na cultura medieval é que o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto de amor, e o lugar próprio de Eros se desloca da visão para a fantasia”. É esse Eros que se desloca da visão para a fantasia que mais se apresenta na Vita nova dantesca – e acaba dialogando com a fantasia que a própria tradição traz consigo. Por isso, a modernidade ser uma fantasia tão definitiva.

          Por André Dick

          Os latinos e gregos tinham uma atração por descrever a figura feminina (sobretudo poetas como Catulo, Marcial e Ovídio, este em A arte de amar, e Platão, em O banquete). Este desejo ressurgiu com força na literatura dos provençais, quando cada poeta tinha uma musa (no caso de Arnaut Daniel, a célebre Laura),  e, consequentemente, na Idade Média, com o Renascimento, influenciando a obra de Dante, a partir de Vita nova.

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          Como observa Haroldo de Campos, “a ‘biografia literária’ de Dante, além de enredada no desdobrar-se erótico-metafísico de uma sobredominante metáfora escritural, fica também indissoluvelmente ligada à sua passagem pela ‘bossa nova” do tempo, o dolce stil nuovo, marcando-se alternativamente, pela influência do stizzoso (agastadiço, temperalmental) e melancólico Cavalcanti (o poeta do spleen toscano)”. O dolce stil nuovo pregava o amor cortês, e teve seu auge no século XIII. Nesse sentido, George Steiner é preciso: “Boa parte da poesia da Vita nova dialoga ou desafia outros virtuoses do soneto e da vinheta satírica. Em certos trechos, padrões de rima e versos inteiros são tomados de empréstimo e permutados”. Como na Divina comédia, para Steiner, Dante faz “um alistamento que revela uma apaixonada prodigalidade do sujeito e um impulso de criatividade tão veemente que parece requerer a representação de um eco, seu espelhamento em outros artistas igualmente reativos”. Expondo a relação com predecessores e seus contemporâneos, Dante, conforme Steiner, faz com que todos participem da “ficção real composta pelo sujeito criativo”. Afinal, mesmo o “mais ‘original’ dos artistas, no sentido mais rigoroso de toda noção de ‘originalidade’, é polifônico”. Desse modo, Dante já inicia Vita nova com uma fantasia em potencial: “Naquela parte do livro da minha memória, antes da qual pouco se poderia ler, se encontra uma rubrica que diz: Incipit Vita nova”. Afirmar “Minha memória”, diante da tradição da qual parte Dante, mostrando, ao mesmo tempo, uma recriação e um diálogo com outros autores, é um argumento irreal – mas por isso verdadeiro, porque admite dialogar com uma tradição que o antecede. Daí Dante ser tão moderno – como vem afirmando, no Brasil, em estudos e livros (a exemplo de Por que ler Dante), o crítico Eduardo Sterzi –, mesmo sem sê-lo no sentido estrito.
          O romantismo, no século XVIII, época em que Goethe, por exemplo, escreveu Werther, constituía-se numa potencialização do Eu, fazendo uma crítica à divindade cristã, “seus santos e seus demônios, crítica de suas igrejas e de seus sacerdotes”. Mas não destruiu a ideia de Deus, e sim a imagem do “deus cristão”. Deus deixou de ser uma pessoa e passou a ser um conceito. O ser humano é que queria se sentir divino; conhecemos, pelos escritos de Novalis, por exemplo, o quanto o romantismo aspirava a uma “escrita sagrada” e à ideia de que o homem fosse Deus. Como escreve Charles Rosen, Deus deveria ser entendido como “simplesmente o uso imediato que cada escritor podia ter no momento para Ele: a resolução do processo dinâmico da vida, o domínio do inconsciente e do incognoscível, a humanidade realizando-se como Espírito Absoluto”.  Ou, como continua Rosen: “um movimento profundamente secularizante, uma tentativa de apropriar-se do que restava de uma cultura religiosa moribunda e restabelecê-la numa forma secular, no mais das vezes substituir a religião pela arte”. A poesia se tornaria o fundamento da linguagem, podendo salvar – uma ideia romântica – o insalvável: a sociedade. Octavio Paz define bem as diferenças entre as concepções vigentes na Idade Média e no romantismo: “Para a Idade Média, a poesia era uma serva da religião; para a idade romântica, a poesia é sua rival e, mais ainda, é a verdadeira religião, o princípio anterior a todas as escrituras sagradas”. 

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          Na Idade Média, o poeta transmutaria as ideias religiosas em formas e imagens, como fez Dante, por exemplo, na imensa Divina comédia, ou transformando sua musa Beatriz numa espécie de santa e de amor inatingível. No entanto, com esse movimento, Dante, no fundo, era um agnóstico: contra a linha que o considera uma representação para correntes religiosas declinarem sobre os círculos infernais, cabe avaliar que ele criou um universo a partir de seu imaginário.
          Mas Dante, embora tenha vivido na Idade Média, não é menos romântico e moderno que Goethe, por exemplo, em Werther, ainda que, reitere-se, um moderno não no sentido estrito. Erich Auerbach dá uma pista: “Vita nova é imprestável como fonte de informações sobre a vida de Dante. Os eventos que nela figuram, encontros, viagens, conversações não podem ter acontecido como estão nos relatos, e é impossível tirar deles dados biográficos”.  Daí T. S. Eliot ter dito que o pequeno livro de Dante é uma mistura de “alegoria” e “biografia”. Não é a personalidade do poeta-narrador que é importante. O que importa é a “causa final”, tópico comum na crítica de Eliot, para quem a “fuga da personalidade” era a caracterização mais forte da personalidade – nesse sentido, Dante investe no imaginário como Goethe. Baseado na linha dos poetas provençais – que elegiam a musa a se cultuar –, mais especificamente no miglior fabbro Arnaut Daniel, ele compôs seu Vita nova para Beatriz, como Arnaut Daniel dedicou vários poemas a Laura.
          A própria Beatriz, como pondera Harold Bloom, na linha do crítico Charles Williams, independente de ter mesmo existido, é a maior criação de Dante. Nesse ponto, Bloom compara a figura de Beatriz com a de Dulcinea del Toboso, a amada de Dom Quixote. Assim, deve-se ver que o “mito de Beatriz, embora seja a invenção central de Dante, só existe dentro de sua poesia”.  “Segundo Dante, Beatriz é muito mais que uma revelação pessoal ou individual. Ela veio inicialmente ao seu poeta, Dante, mas através dele chega aos que o leem”. E afirma ainda que “Beatriz emana do orgulho de Dante, mas também de sua necessidade”. De qualquer modo, acreditemos que existiu realmente uma Beatriz, de família muito rica, e que ela foi o objeto de paixão de Dante.
          Isso não transforma, por exemplo, a percepção de Harold Bloom, ao analisar a Divina comédia, para quem Dante só procura a si mesmo, o que é uma aposta arriscada do crítico americano, já que este reflete no poeta italiano a hipóstase do Eu solitário, do Autor supremo. Dante, no entanto, visualiza o Outro (Beatriz) como um escape de si mesmo, mas não só: Beatriz é seu reflexo para que deixe de lado sua potência narcísica, ingressando no jogo do imaginário. Jorge Luis Borges viu o encontro entre Dante e Beatriz como ilusório, afinal, para ele “Beatriz existia infinitamente para Dante; Dante existia muito pouco, e talvez nem existisse para Beatriz. Nossa piedade, nossa veneração nos fazem esquecer essa lamentável desarmonia, que era inesquecível para Dante”.  Ele iria potencializar essa escolha pelo Outro na Divina comédia, mas o desaparecimento elocutório do que Mallarmé falava na modernidade, por exemplo, e antes dele Rimbaud (no conceito “Je est un autre”), Dante já assumia como proposta em Vita nova. Dante tinha a consciência crítica de representar o amor, mas uma representação não medieval e sim moderna.

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          Fragmentado como Goethe faria Werther, Dante, ao compor Vita nova, compõe também para o leitor: este lê o livro como quem também lê um ensaio crítico sobre a obra sendo composta. Barthes faz uma análise crítica, como vimos, sobre o romance Werther, de Goethe, que, por sua vez, é uma obra típica do romantismo, mas uma obra já extremamente moderna: fragmentada, em forma de diário, ela não fica a dever para os comentários críticos dos irmãos Schlegel e de Novalis – nos quais, aliás, busca embasamento para o tema do amor. O narrador, Werther, expõe, em cartas, seu amor, como fazia Dante, numa espécie de diário que é Vita nova. Por isso, para Roland Barthes, Vita nova é uma “obra-maquete”: “se apresenta como sua própria experimentação: ela encena uma produção ou, em todo o caso, um dispositivo para produzir efetivamente (e não apenas a veleidade de produzir)”. A sua “narrativa leva ao poema (se bem que tenha sido escrita, ao que parece, depois deste) e o poema se coroa, retroativamente, com a exposição retórica de sua composição (produção)”. 
          Essa é a distância entre Werther e Dante (que é um personagem de si mesmo): a consciência sobre o sofrimento. Werther é incapaz de olhar seu sofrimento a distância: Dante não só o olha como compõe a gênese do amor por Beatriz. Ambos fazem do sofrimento sua obra, mas Dante parece mais moderno que Goethe, ao assumir que é uma persona e não o autor (algo que Goethe não faz, por se esconder atrás de Werther). Dante é persona de si mesmo; Goethe quer ainda outra persona para si mesmo.
          Como escreve Paz, o que se adequa à visão de Dante e Goethe da figura amorosa, o poema, que equivaleria à linguagem, “não alude à realidade; pretende – e às vezes consegue – recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade”.  Desse modo, as imagens se dariam num processo: a figura amorosa seria um “momento da realidade”. Da visão do autor surgiria uma “nova realidade”. O escritor, assim, através das imagens, nos diz algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e esse algo, ainda que pareça um disparate, nos revela de fato o que somos.  Através da imagem do Outro – como escreve Paz, “O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro” –, o autor se encontra consigo mesmo. (Continua)

          Por André Dick

          Não é possível entender a literatura moderna sem passar pela obra crítica de Schlegel, Novalis, dentre outros autores importantes para a realização de uma teoria da literatura. Mas por que muitos afirmam – acima de tudo, os críticos literários, os teóricos, literatos – que a modernidade teria começado com os românticos? Essa ideia se encontra nos questionamentos de muitos autores, mas é preferível deixá-la num campo ao mesmo tempo fechado e abrangente: temos, por exemplo, a visão elaborada por Octavio Paz em O arco e a lira, que ajuda a definir a poética crítico-criativa da modernidade. Ao contrário de Walter Benjamin, que reinterpretou a crítica como arte dos românticos, Paz focaliza suas tendências e expansões, à medida que trata o romantismo como modelo definidor de uma etapa anterior à das vanguardas. Por outro lado, a interpretação de Benjamin é uma extensão das ideias iniciadas e não totalmente realizadas pelos românticos. Ambos os autores, Paz e Benjamin, de qualquer modo, servem como parâmetro teórico para designar o que seria um poeta-crítico, porque valorizam o estudo da tradição desde os primeiros textos de quem a avaliou mais efetivamente.
           O romantismo de Iena seria o ponto inicial, isto é, o Logos da poesia moderna, modernista? Walter Benjamin, em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, investiga como os românticos transformaram a crítica numa obra de arte: é dentro dela que os românticos querem estar, ou pelo menos sentirem que estão: fazendo uma obra de arte, e que esta obra esteja ao nível da obra que criticam. O romantismo não vai longe dessa ideia de que a criação está ligada essencialmente à natureza que compõe o invíduo, sem ligação com Deus. Movimento antiburguês, contrário também à religião corrente, dominante em meados do século XIX, tinha como objetivo mostrar que o indivíduo estava acima de qualquer crença. Este movimento produz, no limite que pode tanto condená-lo quanto torná-lo importante e aberto à uma nova linhagem de consciência, uma espécie de revolução da linguagem. Não é, porém, o final. Se as vanguardas subsequentes do romantismo possuíam a mesma transgressão, a mesma revolta contra a burguesia, o romantismo, por sua vez, não contestou a arte como forma de expressão: o poeta existia para estar ligado ao mundo, ao universo das pessoas. Nas vanguardas, entre as quais se incluem o simbolismo e o surrealismo podem ser inseridos, isso não acontecia: a evasão do homem perante a mudança do tempo (da tecnologia recém-criada) levavam-no à solidão. No entanto, ele comunicava, através da violência verbal, o que não existia no romantismo, que pretendia uma comunhão, se não com o que contestava, pelo menos com o ser humano, que poderia compreendê-lo. As vanguardas, por sua vez, não visavam à compreensão. Por isso, apontar os românticos como figuras desinteressadas em agradar, por terem um pensamento crítico mais profundo, pertencentes a uma imóvel modernidade (para muitos, existente apenas no romantismo), parece levar a um caminho problemático.

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           O poeta ou o crítico romântico não possuía dúvidas a respeito de sua importância e da sua obra. Ou seja, estava longe de agir como o poeta verdadeiramente moderno – envolto por dúvidas e por isso crítico. Num dos capítulos mais importantes de Os filhos do barro, “O ocaso da vanguarda”, Octavio Paz manifesta a linha de pensamento de todo seu livro. Ao perceber e apontar semelhanças entre o romantismo e as vanguardas, considera ambos “movimentos juvenis”, “rebeliões contra a razão, suas construções e seus valores”, além de afirmarem que “o corpo, suas paixões e suas visões – erotismo, sonho, inspiração – ocupam lugar primordial” e de serem “tentativas de destruir a realidade visível para achar ou inventar outra – mágica, sobrenatural, super-real”. Além disso, em ambos a modernidade se afirma e, ao mesmo tempo, busca sua anulação. Conforme Paz, futuristas, dadaístas, ultraístas e surrealistas sabiam que a negação que faziam do romantismo era um ato romântico que se inscrevia na mesma tradição que concebera o até então visto como inimigo. Uma tradição que nega a si mesma para continuar, a “tradição da ruptura” nega o passado para, em contrapartida, confirmá-lo. A vanguarda, na posição de ruptura, encerra a “tradição da ruptura”. A diferença é que, enquanto para os românticos “a voz do poeta era a voz de todos”, para os modernos “é de ninguém”. Desse modo, o poeta se mantém atrás da voz da linguagem, “a voz de ninguém e de todos”, a voz da “Outridade”, neologismo criado por Paz para designar uma intertextualidade crítica.
           O movimento de vanguarda em língua inglesa traz resíduos de uma recuperação dos ideais dos simbolistas. Ezra Pound e T. S. Eliot, não por acaso dois poetas-críticos, em seus primeiros livros, são influenciados por poetas de um simbolismo relegado a segundo plano, Tristan Corbière e Jules Laforgue (Pound viria a incluí-los em seu ABC da literatura). Em 1913, Guillaume Apollinaire publicaria Alcools e, em 1918, Calligrammes. Em 1920, sinais da vanguarda podiam ser encontrados no pequeno livro de William Carlos Williams, intitulado Kora in hell, improvisations. Em 1922, Eliot lançaria sua obra-prima The waste land e Pound, em 1924, seus primeiros Cantos. No campo da prosa (ou “poesia prosaica” ou “prosa poética”), James Joyce traria a público seu clássico Ulysses, em 1922. Tais obras coincidiam com o surgimento do surrealismo em terras europeias. Como atesta Paz, “a literatura do Ocidente é uma rede de relações”.
           Em seu ensaio “Tradição e talento individual” (1917), Eliot, poeta-crítico que ajudou a definir os limites da modernidade, trata o passado como uma presença necessária, constatando uma dívida dos poetas novos com os poetas antigos, mas não numa concepção linear de tempo e sim sob uma perspectiva de poética sincrônica, que influenciaria os poetas concretos em seus estudos e teorias, em meados do século XX. Para Eliot, portanto, a tradição precisa ser reconquistada: “Ela não pode ser herdada e, se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço”, envolvendo o “sentido histórico,” implicando a “percepção, não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença”. Eliot busca a multiplicidade nas leituras de autores clássicos, para constituir um grupo referencial que possa alimentar não só sua obra, nem sua tradição do New criticism, mas também o próprio diálogo cercado pelo entendimento de que não há obra particular, mas um conjunto de relações. Ele se baseia na ideia de que nenhum poeta e/ou artista pode ter uma significação completa sozinho. Para Eliot, o significado e apreciação que fazemos de um poeta “constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos”. Bem observa Leyla Perrone-Moisés que Eliot “afirma o melhor do passado no presente, propondo uma recuperação de todos os tempos num tempo atual”.
          O modernismo anglo-americano prefere restaurar a destruir, de modo que se constitui numa volta à tradição, passando a ser uma outra versão da vanguarda europeia, enquanto o simbolismo francês e o “modernismo” hispano-americano haviam sido outras versões do romantismo. Ao lado de Eliot e Pound, outros poetas formaram não uma corrente, mas uma geração de grande nível, em que se incluem E. E. Cummings, Wallace Stevens, Marianne Moore e William Carlos Williams, exercendo um trabalho de crítica através de suas obras poéticas — crítica no sentido de acréscimo à tradição por meio de obras criativas.
           O tempo, para ficarmos com os poetas que Paz destaca pela visão crítica, histórica e, o mais importante, criativa, é o da crítica, que vem de Baudelaire, é filtrada por Rimbaud (Verlaine, porventura), ganha aspectos talvez mais próximos da modernidade com Mallarmé e é analisada a fundo, num caminho quase geométrico, de espaçamento, não de contenção, por Valéry, na entrada do século XX. A arte moderna, como analisa Paz, é moderna porque é crítica. Adota, para utilizar uma designação de Leyla Perrone-Moisés, tanto uma “crítica-escritura”, em que a figura do crítico se mescla com a do poeta e as duas práticas se superpõem, quanto incorpora a posição de um escritor-crítico, presente em Altas literaturas, que está ciente de que pertence a uma tradição de autores e pode fazer dela seu diálogo num plano sincrônico, escolhendo aqueles que podem proporcionar a sua obra um elemento de criação, assim como os contemporâneos que possam fazer frente a obras menos criativas.

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          Os poetas modernos costumam ser vistos como escritores frios depois das obras de Stéphane Mallarmé e Paul Valéry, à medida que, para eles, a poesia é uma tentativa de ir na contramão da linguagem corrente. Para alguns, esta característica incomoda: a poesia tornou-se mais crítica, um campo aberto para experimentos, não apenas para o verso habitual, monocórdio.
           Paul Valéry e Mallarmé foram exemplos claros de poetas-críticos (como seria na classificação de Leyla Perrone-Moisés) já do simbolismo — embora ambos não se restrinjam a esse movimento. Atento aos conselhos do mestre de Valvins, Mallarmé, Valéry talvez tenha feito uma obra crítica maior, em termos de qualidade, que sua obra meramente poética-criativa. Agindo entre esses extremos, com uma desenvoltura bastante coerente com o mestre que teve, entre os campos da análise e da criação, dentro da análise, já fazia a criação, e vice-versa. Talvez seja uma síntese para a separação que faz Leyla Perrone-Moisés em Texto, crítica, escritura (onde analisava o crítico-escritor, definindo-o como alguém que, através da análise, usava a criatividade, fazendo uma escritura-recriação) e o escritor-crítico, aquele que partia de suas escolhas críticas para a criação, embora muitas vezes eles se misturem, em Altas literaturas. Isso porque através da crítica é possível chegar a uma criação – e não apenas esta representar o que é uma crítica-escritura ou proporcionar uma escritura-crítica. Os escritos de Valéry sobre Mallarmé já lhe garantem um lugar entre os poetas que se utilizam da criticidade para acrescentar à criatividade. Mas nem todos são críticos-criativos. Há os críticos somente críticos. Muitas vezes, sua escrita, ao mesmo tempo, não desperta nenhuma criatividade, uma ponte sequer para a criação: fecha-se sobre si mesma. O melhor poeta-crítico parece ser aquele que consegue selecionar a tradição em sua análise.

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           Quando nos referimos a alguns poetas da modernidade, o fazemos numa comparação com a obra de Dante. Em seus Cantos, Pound queria reproduzir as etapas da Divina Comédia; em Signantia quasi coelum, Haroldo de Campos dá os mesmos passos da obra maior de Dante, aliado a uma consciência faustiana da escritura; em Ulysses, a caminhada trôpega de Leopold Bloom é a síntese infernal de Joyce para a vida moderna. Mais do que um poeta, Dante foi um personagem dos seus próprios versos e de suas histórias (para não esquecermos a Vita nova), além de um poeta que pensou criticamente sua poesia: não por acaso, por meio de seus poemas e livros há a figura de escritores (como Virgílio, na Divina comédia). Grande orador, participou ativamente da vida política de Florença mesmo que não tenha desejado oniricamente uma ligação amorosa com a figura feminina, síntese do rastro de sua existência: Beatriz. De suas rimas pedrosas ao resto de sol e poeira sobre suas memórias, Dante coletou o que poderia se chamar de “pedras da memória” de sua primeira visão Há um laço que o mantém, a partir desse pressuposto, ao que Roland Barthes nomeia “grau zero da escritura”, (que ganharia tonalidade mais específica em Michel Foucault), e é a questão básica sobre a qual Dante trabalhou ao longo de sua suma poética, o que o torna, antes da própria modernidade, um dos autores que mais pensou criticamente sua obra. Sua crítica está na própria poesia que escreveu, embora não tivesse consciência disso, porque não podemos encaixar Dante como um poeta moderno no sentido estrito da palavra. No entanto, sobretudo em Vita nova, ele desempenha um papel essencial para se entender o que seria a poesia moderna. (Continua)

          Por André Dick

          O poeta e ensaísta Pádua Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, em 1971. O primeiro livro que publicou, O palco e o mundo (Lisboa: & etc/Edições Culturais do Subterrâneo, 2002), desenvolve, em suas entrelinhas, um pensamento antropofágico. O segundo, Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), tem um tom maior de contestação social. Torna-se imprescindível, a partir disso, destacar a dedicatória de seu livro de estreia, em que o autor ignora a ‘escola poética’ Desvairismo, criada por Mário de Andrade em seu “Prefácio interessantíssimo” de Pauliceia desvairada, e se diz a favor do inconformismo, com letra minúscula. Movimento semelhante se dá em relação à uma possível tradição na qual o livro se insere. Pádua Fernandes utiliza um hibridismo entre prosa e poesia que se insere em uma linhagem de autores que tentaram, pelo menos de forma mais visível, esse caminho. Para não falarmos nos conhecidos clássicos (franceses, sobretudo, a exemplo de Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire), só aqui no Brasil teríamos, nesse campo, os exemplos de Oswald, Guimarães, Haroldo de Campos, Leminski e Hilda Hilst, destacando-se Fluxo-floema. O palco e o mundo possui um ritmo controlado, mas, ao mesmo tempo, foge ao convencional. Seu trabalho possui um “domínio de pensamento sobre as palavras”, característica que Octavio Paz, em O arco e a lira, vislumbra na prosa. Em seu segundo livro, Pádua procura um diálogo mais forte com o universo contemporâneo, com todos os seus problemas, mas sem esquecer de um discurso enviesado.

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           Literatura e outras artes

          A ligação da literatura com outras artes (a pintura, a música e a dança, principalmente) extraliterárias está presente sobretudo em O palco e o mundo. Não há, por meio disso, o sentido de procurar a mera representação ingênua da realidade, mas sim a desorganização (para reconstruir) do retrato que a vida real nos dá, por meio de fragmentos, sensações, sentimentos dúbios, desintegradores da linguagem – o que se marca presença também em Cinco lugares da fúria. Como Pádua escreve, “arte não é uma imitação da natureza, mas uma natureza ela mesma”, daí uma explicação de o palco vir antes do mundo na ordem do título. Trata-se de um movimento pensado sem excessos de linguagem, o que poderia acontecer, ainda mais que o livro adota um “exercício de liberdade de pensamento” (sem querer, consequentemente, dominar o acaso), como observa o poeta português Alberto Pimenta no prefácio.

          O livro da modernidade

          A figura do pintor é corrente em O palco e o mundo, pois ele, mais do que os personagens que encenam o texto que é escrito, para ser lido ou silenciado, por Fernandes, representa uma determinada solidão diante da cena. Ou, sob outro ângulo, de passagem a ser ainda realizada e (lembre-se a calcografia), construída em forma de Livre aleatório. Este, claro, contém uma presença de Mallarmé, como no poema dedicado a Waltercio Caldas, um dos mais criativos de O palco e o mundo: “um livro com todas as páginas iguais / não: um livro com todas as páginas iguais, porém apagadas / isto é: um livro com todas as páginas iguais, todas apagadas, mas em diferentes graus de esvaecimento”, cuja negatividade é representativa da consciência moderna, caracteriza-se também pelo distanciamento espacial entre os versos, pela busca aleatória de uma página diferente num livro com páginas iguais, num confronto entre esquecimento e lembrança. Deste, resta “uma só” e enriquece ainda mais a chamada literatura, cuja configuração não pode ser reduzida à tese de um professor caracterizando o palco em que é encenada, acabando por não se prender apenas à palavra escrita. O poeta, em busca de uma dicção que possa ressaltar suas ideias, parece saber que o “grau da página” não seria bem o “grau zero da escritura”, de Roland Barthes, se assemelharia mais quanto à decomposição da origem textual. Esta sempre seria feita de resíduos, com a consciência de seu desaparecimento, do desgaste destrutivo da linguagem moderna, em que o livro busca se sintetizar por meio de uma única página. Recordando talvez Borges da premissa sugerida pelo Livro de areia, já em outro poema, há uma perda da referida totalidade do enunciador, desse “grau da página”, quando Pádua, através de “palavras impossíveis”, distribui alguns versos como grãos, entre a fala (o “dizer”) e o silêncio (“não se diz”), querendo o leitor que pode dar sentido à obra. No poema inédito que enviou ao Invenção, Pádua procura analogias sociais com o animal do título.
 

          A vaca

          I

          Nos olhos da vaca,
          o céu vermelho.

          A vaca está morta.
          Os chifres não.

          O céu vermelho.
          A vaca poderia lambê-lo,
          sorver todo o sangue
          e salvar o céu.

          Mas a vaca está morta.

          Seria uma solução,
          não houvera chifres.

          II

          O vermelho pinga
          dos olhos da vaca
          e abre um rio
          que afoga as ruas.

          Cinzas eram os prédios,
          calçadas e becos,
          mas não depois
          da morte da vaca.

          A vaca era uma vaca,
          ameaçava a sociedade.

          Prédios e esquinas
          erguem-se contra o rio.

          Alguém ergueu o punhal
          quando a vaca foi assassinada?
          Ou a morte foi mera
          consequência da arquitetura?

          III

          Jujubas são feitas da vaca.
          Crianças comem-nas.

          A vaca
          replicava as proteínas,
          girava as hélices duplas,
          retorcia o nada.

          As crianças giram,
          retorcem-se, replicam
          os antropófagos
          lambuzando-se
          do nada.

          Você é o que come,
          dizem os vegetarianos.

          IV

          No campo o cadáver improdutivo da vaca.

          Retalhá-lo, para que os vermes beijem o sol?
          Queimá-lo, para que as cinzas esterilizem o território?
          Abrir-lhe buracos para penetrar na podridão imensa,
          nela fundar colônias, devastar florestas
          chegar ao útero
          e descobrir que estava grávida do labirinto?

          Saíram de dentro da vaca.
          Olharam os campos. Nenhum espaço
          que já não fosse o labirinto.

          V

          O jogador enrola-se na bandeira do país,
          deita na grama
          e promete faminto a vitória.

          O jogador empanturra-se de grama
          verde como a bandeira de seu país
          e descobre que a vitória é uma vaca.

          Ele muge. Assim
          declama corretamente
          os dizeres da bandeira do país

          enquanto abre as pernas
          para os dez touros;
          lambe a vitória nos vinte chifres.

          VI

          Réquiem para a vaca.
          Quem o cantaria?
          Mozart mugia mal.
          Lacrymosa

          Repousai em paz
          com o sêmen dos necrófilos,
          com a pá dos profanadores.
          Quid sum miser

          Réquiem para a vaca.
          Ninguém o cantaria.
          Verdi não ruminava,
          não sabia imitar as mandíbulas da terra
          que recebe os corpos amorosa.
          Kyrie eleison

          Repousai ainda em paz;
          o ventre visitado pelos necrófilos
          será aberto pela pá dos profanadores.
          Nasceremos todos de vós.
          Rex tremendae

          A ira de deus.
          Mas no túmulo da vaca
          é dele o corpo que apodrece.
          Libera me

          VII

          Morta,
          a vaca está de volta.
          Procura vítimas.

          Por André Dick

          Jacques Derrida afirma no livro Limited inc, resultado de um debate que teve com o norte-americano John R. Searle, que a intenção nunca é totalmente de cada sujeito, ou seja, é sempre dividida com o discurso adaptado do Outro. Quem faz o discurso? Como Paul Celan escreve no discurso “O meridiano”, “Cada coisa, cada indivíduo é, para o poema que se dirige para o Outro, figura desse Outro”. No entanto, a teoria de Derrida sobre a ausência de intenção, trabalhada nos anos 1980, não é nova. Em Jacques Lacan, já temos a ideia, no seu caso sob o ponto de vista psicanalítico, de que o discurso próprio depende do Outro. E muitos críticos, sobretudo a partir do estruturalismo, têm essa consciência de diálogo crítico entre textos, provinda de Bakhtin. Enquanto, por exemplo, Roland Barthes dizia que o texto é um “tecido de entrelaçamento perpétuo”, Kristeva escreveu que cada texto era uma “rede de textos”.
          Este conceito é vital para se entender a importância do poema seminal de Mallarmé, Um lance de dados, para a formação da poesia moderna: a página em branco. Nesse sentido, o poema Um lance de dados representa tanto a criação do poeta, que se deparou com o desamparo do Nada, diante da morte do filho, Anatole (para quem fez outros poemas), quanto a interpretação crítica que lhe segue. “Não lhe parece uma loucura?”, perguntou Mallarmé a Valéry quando lhe mostrou o poema.

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          Em seu ensaio “A inútil poesia de Mallarmé”, Leyla Perrone afirma que o poema de Mallarmé – uma espécie de partitura literária, em que as palavras adquirem novo sentido conforme seu tamanho e sua topologia no papel e oferecem direções de leitura diferentes – não é tão bem aceito quanto, por exemplo, um de Victor Hugo ou Castro Alves – ela cita especificamente esses dois autores – por não apresentar uma poesia de fundo social. Comentando que alguns alunos desprezaram o poema durante uma aula, Leyla Perrone avalia que isso justamente mostra como as pessoas têm resistência a um poema que seja fruto de reflexão crítica. Como a obra de um Fernando Pessoa, em que o “eu” (ele existe?) escreve pensando, não para o povo, em praça pública, como se estivesse discursando. Leyla analisa que Um lance de dados não tem, como qualquer bom poema, uma utilidade na vida real. Escreve Leyla: “A função do poeta moderno, assumida exemplarmente por Mallarmé, é opor-se a esse comércio aviltante, e propor a utopia de outras trocas linguageiras. Seu trabalho consiste em ‘dar um sentido mais puro às palavras da tribo’, fazer com que elas, em vez de funcionar apenas como valores de representação da realidade, instaurem uma realidade de valor”. E completa, com razão: “As torres de marfim em que se fecharam os poetas da modernidade foram uma reação, nunca um reacionarismo. Sua atitude (a de Mallarmé) não era de fuga, mas de protesto contra uma sociedade utilitarista, uma ciência arrogante e uma literatura naturalista”.
          Mallarmé dispõe, através das letras e palavras, gravadas no papel impresso, em diversos tamanhos, um variado esqueleto tipográfico para suas palavras, e questiona quem é afinal o autor de um poema, através do lugar da página em branco. Se aquele que vive por trás da criação ou aquele que se deixa transfigurar em palavra. Como lembra Michel Foucault, o empenho de Mallarmé foi de “encerrar todo discurso possível na frágil espessura da palavra, nessa tênue e material linha negra traçada a tinta sobre o papel”. Sob esse ponto de vista, o poema de Mallarmé representa a legitimização desse pensamento de que a poesia é resultado de uma passagem pela crítica, não estritamente a teórica, mas aquela que carrega reflexão sobre sua própria estrutura. Com base nesse conceito, Um lance de dados torna-se a representação da tradição da ruptura imaginada por Paz, aquela representada pela Modernidade. Temos a tradição (o Simbolismo) e a ruptura (as vanguardas). Como reitera José Lino Grünewald, em O grau zero do escreviver, o poema de Mallarmé aponta para o início da verdadeira poesia moderna, com o seu radicalismo racional/estrutural. Jamais os ismos (dentre os quais o Futurismo e o Dadaísmo) do início do século XX, para Grünewald, corresponderam à mensagem do poeta francês. 

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          Dois movimentos brasileiros estão ligados à revolução poética de Mallarmé: o Modernismo de 22 e a poesia concreta dos anos 1950. O Modernismo de Oswald e Mário de Andrade analisa o poeta francês com elogios, por parte de Oswald, e críticas, por parte de Mário. O importante é que dessa mesma geração Manuel Bandeira foi um dos poetas que mais entenderam Mallarmé, tanto que escreveu textos sobre ele, um dos quais apresentado na Academia Brasileira de Letras. Sincronia absoluta, visto este conceito por Jakobson e Pound (para quem, como Sartre, a poesia estava mais para as artes plásticas e para a música do que para a literatura). Essa primeira recepção de Mallarmé é lembrada pelos poetas concretos em sua teoria, baseada basicamente, se esquecermos um pouco as outras referências suas, no Um lance de dados e nos Cantos poundianos. Mas, se voltarmos a Sousândrade, do Romantismo, e a Pedro Kilkerry, do Simbolismo, recuperados por Augusto e Haroldo de Campos para os leitores contemporâneos, eles já demonstravam uma leitura crítica sobre a poesia – Sousândrade, mesmo antes de Mallarmé, lidava, em “O inferno de Wall Street”, com o espaço da página, com a disposição da palavras, e Kilkerry chegou a traduzir poemas de Mallarmé e Baudelaire, e a tradução, sendo uma forma de crítica, o levou à modernidade. Um lance de dados colaborou para romper fronteiras, porque traz um pensamento crítico legítimo para todos que se interessam pela abertura de um espaço na literatura: sua ligação com outros campos, das artes plásticas à música. No espaço latino-americano mais amplo, temos o exemplo de Octavio Paz, que, com seu Blanco, tentou fazer um poema experimental na linha de Um lance de dados.
          Dessa ligação do poema Um lance de dados com a poesia concreta, chega-se a outra ligação (desta vez, de forma mais ligeira, apenas para o leitor percebê-la): do poema com o universo da crítica literária. Escreve novamente Leyla no artigo “Que fim levou a crítica literária?”, de 1996: “A atual crise da crítica começou há cerca de um século e está ligada à ‘exquise crise’ da literatura detectada e aguçada por Mallarmé, crise que se inscreve num contexto filosófico maior: crise do sujeito, crise da representação, crise da razão, crise da metafísica, crise dos valores, crise do humanismo, enfim crise de tudo aquilo em que se esteavam a instituição literária e o exercício da crítica”. O poema de Mallarmé levou a que críticos como Roland Barthes, Jacques Derrida, Julia Kristeva, Hugo Friedrich, Maurice Blanchot, Michel Butor, Michel Foucault o utilizassem sobretudo para as teorias (são várias, embora não com o mesmo nome) da “morte do autor”. E há sua influência do universo da música, por se constituir numa espécie de partitura, com suas palavras representando os altos e baixos de uma sinfonia.

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           Além disso, Um lance de dados também é importante como objeto manuseável. Trata-se de um poema-livro, mostrando a importância do objeto em que se insere o poema. Essa importância encontrará porto nas obras de alguns poetas brasileiros como o grupo do movimento. Partem todos da ideia do fragmentado Le livre, no qual Mallarmé sonhava – utopia das utopias – colocar todos os livros do universo num único volume – e do qual Um lance de dados foi o exemplo, digamos assim, acabado. Como ele respondeu a Jules Huret, numa entrevista de 1891, “Tudo existe para acabar num belo livro”.
          Mas, finalmente, Um lance de dados é resultado de um trabalho subjetivo – que apenas circunda o livro, nunca se mostra completamente nele e se estende a outros livros, inacabados, antes ou depois de sua realização. Conforme Paul Auster observa no ensaio “O filho de Mallarmé”, de A arte da fome, comentando os estudos de Jean-Pierre Richard sobre o projeto inacabado Pour un tombeau d’Anatole, Mallarmé, incapaz de ter seu filho de volta, “devota seu pensamento a ele”. Transmutaria Anatole em palavras e prolongaria a vida dele. “Ele iria ressuscitá-lo, pois o trabalho de construir uma tumba – uma tumba de poesia – obliteraria a presença da morte. Para Mallarmé, a morte é a consciência da morte, e não o ato físico de morrer. Dado que Anatole era jovem demais para entender seu destino, era como se ainda não tivesse morrido. Ele continuava vivo no pai e somente quando o próprio Mallarmé morresse ele morreria também.” Isso é revelador. Manter uma pessoa viva só se dá através da linguagem. O túmulo de Anatole é composto por Mallarmé, e este desaparece para dar voz ao filho, isto é, no momento em que escreve é o próprio filho. Em Um lance de dados, que se tornou a versão “acabada” de Le livre, o poeta, também tocado pela ausência do filho (embora nunca se fale nisso, apenas em relação aos poemas que Mallarmé compôs diretamente para Anatole), para mostrar o abismo em que a palavra está infundada, como avalia Michel Foucault, “não cessa de apagar-se na sua própria linguagem, a ponto de não mais querer aí figurar senão a título de executor numa pura cerimônia do Livro, em que o discurso se comporia por si mesmo”. “[…]o que fala, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra – não o sentido da palavra, mas seu ser enigmático e precário.”
          A palavra na página em branco é a tentativa de expor seu imaginário em grau pleno, sua mais intensa subjetividade, a tentativa de compreender o Nada que já se estabeleceu sem volta – e por isso desaparecer. Ao compreender isso, o poeta está se ficcionalizando. Mas essas passagens não se completam: elas convivem em atrito, e daí surge a produção textual moderna.  Por isso, Blanchot aponta que “o que fala em nome da imagem, ‘ora’ fala ainda do mundo, ‘ora’ nos introduz no meio indeterminado da fascinação; ‘ora’ nos concede o poder de dispor das coisas em sua ausência e pela ficção, retendo-nos assim num horizonte rico de sentido”. Como Blanchot escreve a respeito de Kafka, Mallarmé, em relação ao filho, “escreve para poder morrer” e “morre para poder escrever”, situando-se no “tempo da ausência de tempo”, “sempre presente” e “sem presença”. “A linguagem”, afinal, é “a vida que carrega a morte e nela se mantém”. A ligação de Mallarmé com Anatole configuraria a mímesis? Não parece. O olhar do poeta desaparece, sob a máscara poética: na escrita, é como se ele tivesse morrido e dado lugar ao filho – e isso não se realiza na realidade, só na escritura, da qual se desprende toda ausência capaz de apagá-lo como autor e organizá-lo como um quebra-cabeça sem origem e sem término. Num dos poemas ao filho, Mallarmé escreve:

          morte – sussurra de leve
          – não sou ninguém –
          nem sei quem sou
          (pois os mortos não
          sabem que estão
          mortos –, nem mesmo que morrem
          – para crianças
          pelo menos
          – ou

          heróis – mortes
          repentinas)

         pois de outro modo
         minha beleza é
         feita de últimos 
         momentos –
         lucidez, beleza
         rosto – do que teria sido

         eu, sem mim mesmo

         (Trad. André Dick)

         O problema de localizar a mímesis como entendimento do sujeito é silenciar a voz alheia para destacar uma voz única, no fundo (da inconsciência) inexistente. A morte do sujeito ocorre exatamente quando se pensa que seu discurso acontece apenas porque ele exerce um poder sobre a escritura – a dóxa –, ou que ele evita, quando quer, que o alheio surpreenda seu olhar.
          Deste olhar, à proximidade do fim, avistando as estrelas no céu de Valvins, onde Mallarmé passava os fins de semana, longe dos alunos que debochavam dos versos de seu poema “O azul” (“O azul! O azul! O azul! O azul!”), resgata-se a imagem do tempo de esperança de outro poeta, do arco-íris branco que Goethe vislumbrou numa viagem recomendada pelo médico à sua cidade natal, Frankfurt. Para Goethe, o fenômeno meteorológico, onde os raios do arco-íris não têm cores, mostrando apenas um rastro de brancura no céu, eram o sinal de uma nova puberdade, mesmo se sentindo velho e doente. Logo depois dessa viagem conheceria o amor de sua vida. Isso em 1813. Em 1827, ele imaginaria uma Weltliteratur, reunindo as grandes obras-primas da Literatura Universal. Outro arco-íris branco, o da página, foi a puberdade de Mallarmé, a única forma de rever seu filho perdido em meio ao Nada da Literatura. Quando Anatole estava prestes a morrer, o autor escreve: “Meu garotinho doente sorri do seu leito, como uma flor branca lembrando o sol desaparecido”. Seu gesto de negar a “moeda corrente” da literatura foi o preço para que ficasse como peça negativa de um tempo que não morreu, mas que permanece sobretudo em Um lance de dados e nos fragmentos perdidos de sua obra em que ele se mostra “eu, sem mim mesmo”.