Por André Dick
A mímesis interna dos textos – a maneira como cada autor lida com as imagens do amor que desponta – marca-se sobretudo pela intertextualidade. A obra Vita nova, de Dante, não existiria sem os provençais e a mitologia greco-latina. Na visão de Erich Auerbach, “a obra lança uma luz essencial sobre a vida interior de Dante”. Isso porque mostra “como ele fazia derivar toda a estrutura do seu pensamento do misticismo amoroso do stil novo e indica o lugar que lhe cabe entre os seus companheiros de literatura”. Nesse sentido, segundo Giorgio Agamben, em Estâncias, “não é possível, especialmente, compreender o cerimonial amoroso que a lírica trovadoresca e os poetas do dolce stil novo deixaram em herança para a sociedade ocidental moderna, se não se considerar o fato de que ele se apresenta, desde a origem, como um processo fantasmático”. Esse processo se dá por uma incorporação visual do autor, no caso Dante Alighieri, em sua obra Vita nova, já na Idade Média, da lírica trovadoresca e do dolce stil novo. E essa percepção de Dante, por meio do entendimento de uma tradição, leva à narrativa e ao “processo fantasmático” que compõe, partindo do primeiro encontro com sua amada, sua “musa teologal”, ocorrido por volta de 1274, quando ele tinha nove anos de idade. Há toda uma concepção religiosa medieval nesse primeiro encontro de Dante com Beatriz: é como se ela fosse a salvação de sua alma penada, sofrida, vagando errante pelo mundo. E como se “o espírito animado” o acompanhasse. Para isso, utiliza uma linguagem poética, com metáforas e um sentimento de perplexidade. Ele comenta em seguida, sob o efeito da visão (em tradução de Décio Pignatari, extraída do volume Retrato do artista quando jovem):
Dali em diante, o Amor tomou conta da minha alma, que logo se dispôs a desposá-lo: em relação a mim, foi ganhando tanta firmeza e poderio, pela virtude que lhe transmitia minha imaginação, que nada mais me restava a não ser atender os seus menores desejos. Ordenava-me, muitas vezes, que eu fosse ver aquela menina-anja: saía à sua procura e muitas vezes a vi, quando menino; sua nobre figura e sua louvável conduta me levavam a dizer as palavras de Homero: “Não parecia filha de gente mortal, mas de um deus”.
Coloco sem itálico a passagem que mostra exatamente um dos elementos do discurso amoroso: a virtude que transmite a imaginação do indivíduo à pessoa amada, no caso, uma “menina anja”. E, para comprovar que o relato de Dante não é apenas de sua memória pessoal, ele evoca as palavras de Homero para falar da beleza e da louvável conduta de Beatriz. Mas, antes de tudo, a paixão amorosa surge quase como um incidente corriqueiro (Dante olha a praça e, de repente, enxerga a mulher comparável a uma deusa, Afrodite).
O segundo encontro aconteceria nove anos depois (número simbólico para Dante), quando a “menina anja” surgiu novamente diante de Dante:
[…] passando por uma rua, volveu os olhos para a direção onde eu me encontrava a tremer: graças, porém, à sua gentileza inefável, que hoje é louvada na vida eterna, cumprimentou-me tão virtuosamente que, naquela saudação, julguei ver todas as expressões da santidade. Era, sem dúvida, meio-dia, quando me atingiu aquela saudação tão doce; e, como era a primeira vez que as suas palavras se moviam em direção aos meus ouvidos, fui tomado de um tal langor que, como um inebriado, afastei-me da companhia das pessoas e me recolhi a um canto ermo dos meus aposentos, onde pudesse pensar na mais que gentil.
Veja-se que Beatriz – uma figura já louvada na vida eterna, pois o livro é a “memória” de Dante – lhe trazia “todas as expressões da santidade” apenas pelo ato de saudá-lo. Já recolhido ao seu quarto, Dante imaginaria, tomado por um “doce sono”, uma “névoa cor de fogo, em meio à qual discerni a figura de um senhor de aspecto amedrontador a quem o visse, mas que, no entanto, coisa extraordinária, dava demonstrações de uma alegria interna; muitas coisas dizia com suas palavras, das quais eu entendia apenas algumas poucas – entre elas, as seguintes: ‘Eu sou o seu senhor’”. Essa visão trazia nos braços o corpo de Beatriz, apertando, numa das mãos, “uma coisa que ardesse em fogo”, e ele lhe disse: “Olhe o seu coração”. Beatriz parecia comer o coração que a figura trazia nas mãos. A alegria do vulto então se transformaria em choro e amargura, e o senhor se afastaria, acordando Dante. Este vulto reaparece ao longo de Vita nova, instigando Dante a compor poemas sobre seu sofrimento ou dando conselhos sobre Beatriz. Como escreve Giorgio Agamben, “não é um corpo externo, mas uma imagem interior, ou melhor, o fantasma impresso, através do olhar, nos espíritos fantásticos, que é a origem e o objeto do enamoramento; mas só a elaboração atenta e a desmedida contemplação desse fantástico simulacro mental eram consideradas capazes de gerar uma autêntica paixão amorosa”. Após essa visão, Dante então escreve seu primeiro soneto:
A toda alma gentil ou que no peito
sinta vibrar os versos que ora digo,
solicito que fale-me a respeito,
saudando o amor, nosso comum amigo.
Já era aquela hora em que, ao leito,
se recolhem todos, menos o céu antigo,
com seus astros, quando me vi sujeito,
ao vulto de um Amor quase inimigo.
Afetava alegria, ao comprimir
meu coração na mão, tendo nos braços
minha senhora, em panos, a dormir.
Depois a despertava e ela, aos pedaços,
o coração se punha a consumir.
Chorando, o Amor se volve sobre os passos.
Partindo dessa imagem de Beatriz, segundo Agamben, em Estâncias, “a descoberta medieval do amor por obra dos poetas provençais e estilnovistas é, deste ponto de vista, a descoberta de que o amor tem como objeto não diretamente a coisa sensível, mas o fantasma; é, portanto, simplesmente a descoberta do caráter fantasmático do amor. Mas, dada a natureza medial da fantasia, isto significa que o fantasma é, também, o sujeito e não simplesmente o objeto do eros.”. Diante disso, não há um contato com a corporeidade, mas com a imagem, uma “nova pessoa”, “na qual se abolem os confins entre subjetivo e objetivo, corpóreo e incorpóreo, o desejo e seu objeto”. Esse fantasma, no caso de Dante, é Beatriz – é a “imagem do Outro” a que remete Paz.
Há um diálogo de Dante obviamente com o imaginário, com o fantasma incorpóreo a que se refere Giorgio Agamben. No entanto, mais do que isso, há um congelamento de Dante na linguagem que ele descobre na infância: Beatriz é a imagem que deixa Dante no eterno momento de descoberta da linguagem, que remete ao que Giorgio Agamben escreve em Infância e história. Beatriz representa a sua busca incessante pela linguagem, e é o que o acompanha. Agamben, diga-se de passagem, investiga a infância dessa constituição do “eu” e relembra a imagem do “fantasma” dos poetas medievais, em Infância e história.
Agamben procura constantemente, com isso, localizar elementos que possam explicar que o sagrado está ligado ao profano, ou seja, o artista visto como uma espécie de representante da humanidade é uma figura passada; a linguagem de cada um pertence à comunidade com quem convive. A infância instaura na linguagem a cisão entre língua e discurso, entre o semiótico e o semântico, sistema de signos e discurso. O sujeito da linguagem é fundamento da experiência e do conhecimento, e a origem transcendental da linguagem se localiza, portanto, na infância do homem, a pura língua do discurso humano.
A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se “um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância”. A infância em questão, no entanto, não assinala apenas um período, mas “coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito”. Desse modo, Dante compõe não só Vita nova, mas a sua obra dita mais importante, a Divina comédia. A figura de Beatriz, que o ajuda a descobrir, no caso, a sua linguagem, se transforma numa referência – é o “processo fantasmático” que estende a infância para dentro do sujeito, a imagem do Outro dentro de si mesmo.
Essas visões, próprias a um autor de Idade Média, sem saber que sua escrita representa uma antecipação da modernidade, acabam fazendo com que a obra revele sua própria construção, à medida que o autor a conta a partir de uma possível experiência pessoal. Mas essa experiência, moderna, só sobrevive a partir do diálogo com o ambiente que cerca Dante e o que o antecede, que é a tradição, e sua própria descoberta da linguagem. Como observa Giorgio Agamben, “só na cultura medieval é que o fantasma emerge ao primeiro plano como origem e objeto de amor, e o lugar próprio de Eros se desloca da visão para a fantasia”. É esse Eros que se desloca da visão para a fantasia que mais se apresenta na Vita nova dantesca – e acaba dialogando com a fantasia que a própria tradição traz consigo. Por isso, a modernidade ser uma fantasia tão definitiva.