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          Por André Dick

          Se o leitor quiser conhecer um apanhado de vários momentos da trajetória de Roland Barthes, há O rumor da língua, com textos de 1964 a 1980, nos quais se percebe a ligação entre áreas de conhecimento a princípio inconciliáveis, mas que se complementam sobretudo em razão do olhar que é lançado sobre elas, falando, mesmo que restrito quase completamente ao campo francês (uma limitação de Barthes), da literatura de modo universal. De Proust a Robbe-Grillet, de Mallarmé a Valéry, de Goethe a Camus, Barthes desenha um painel consistente da literatura. No livro também se encontram textos bastante atuais sobre a ligação entre linguística e literatura, mostrando como as áreas podem caminhar juntas, afinal Barthes desejava constituir uma Semiologia Literária, que, como ele observava, serviria para deslocar as imagens que se tem da linguística e da literatura, colocando-as em constante mutação. Além disso, é o seu livro que melhor apresenta a questão do estruturalismo e sua repercussão na literatura, sobretudo nas seções “Das linguagens” e “Da ciência à literatura”, ao mesmo tempo em que presta tributo, na seção “O amante dos signos”, a autores que foram definitivos para a semiologia que Barthes estudava, entre os quais Kristeva, Benveniste – decisivo, hoje, para se entender a filosofia de Giorgio Agamben – e Jakobson.

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          Se havia uma estrutura na obra de Barthes é que ele sempre foi contrário ao conceito aristotélico da verossimilhança, o que aparece várias vezes não só ao longo de O rumor da língua, mas também de A aventura semiológica, no qual faz um apanhado radical sobre a retórica, da aceitação que um autor muitas vezes quer ter da massa, ideia que vem primordialmente da Poética do filósofo grego. A isso, Barthes opta, nesses dois livros, pela “linguagem do imaginário” e parece compreender o essencial: a linguagem compõe tudo, inclusive o que se denomina “realidade” – esta sendo uma “mímesis da linguagem”. Como um complemento da mímesis sugerida por Aristóteles em sua Poética, Barthes propõe, influenciado por Lacan, a palavra imaginário, que em O neutro, como mencionado, trabalha nas obras de Valéry e Baudelaire.
          Daí que, ao falar na morte do Autor (em O rumor da língua), destacando-se a maiúscula de Autoridade sobre o objeto que escreve, revela tanto a importância do leitor na resolução da obra quanto a valorização do imaginário de cada autor, que não vive sem a leitura, ou seja, sua obra também é fruto de outros livros. No meio literário, com sua predisposição a criar gênios românticos, ou tornar tudo reflexo imediato de uma realidade anterior, sem questionamento de linguagem, essa ideia costuma ser esquecida. Não se trata de extinguir o autor num texto, questão que Barthes reavalia em A preparação do romance II, mas de abrir o seu texto para as leituras que o antecederam e que o sucederão. Com isso, Barthes é um intelectual diferenciado por propor uma crítica literária sem a presença excessiva do Eu, estando preocupado com a dispersão do texto. Para ele, um texto não tem Autor – com a maiúscula idealizada. O autor é um selecionador de leituras, repropondo uma releitura, pelo desejo de escrever com a mesma paixão que sentiu naquele escrito que leu, e não um gênio atingido pela fagulha da inspiração. O “eu” isolado simboliza a repressão, é consequência do domínio retórico de uma voz sobre as demais. Mas o desaparecimento do eu não é a morte do sujeito, como ele vai se referir em “A morte do autor”: é mais uma constatação da multiplicidade de um eu, que, despedaçado, nunca remonta a sua origem, é sempre indefinido e múltiplo. Um eu que já era trabalhado em O grau zero da escrita, em que a posição do escritor é a de viver um eterno conflito com a sociedade, mas sem tê-la como finalidade, como fica claro em Sade, Fourier, Loyola: “A intervenção social de um texto (…) não se mede nem pela popularidade da sua audiência, nem pela fidelidade do reflexo econômico-social que nele se inscreve ou que ele projeta para alguns sociólogos ávidos de recolhê-lo, mas antes pela violência que lhe permite exceder as leis que uma sociedade, uma ideologia, uma filosofia se dão para pôr-se de acordo consigo mesmas num belo movimento de inteligência histórica. Esse excesso tem nome: escritura”.

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          A verdade é que a passagem dessas teorias de Barthes, cultivadas durante a época mais fecunda do estruturalismo, para outros centros acabou prejudicando a recepção delas. São vistas com um olhar mais agônico pelo norte-americano Harold Bloom, o qual, em seu A angústia da influência, faz uma apropriação pela metade das ideias de Barthes. Sua apropriação é estranha, pois, ao mesmo tempo que parece aceitar o olhar de que o texto traz uma multiplicidade de “eus”, ele insiste na voz de um autor ser mais “forte” em relação a outro para constituir uma tradição estabelecida. Assim, é como se os escritores mais fracos fossem simplesmente aqueles que não conseguiram superar os mais fortes, e a escrita, a tentativa de um autor apenas superar o outro, quando ela representa, sobretudo em Barthes, uma tentativa de obter desse outro o “prazer do texto”. Em se tratando de autores “mais fortes”, embora Barthes esqueça de que não quer uma figura central em alguns momentos, ele escreve que desde Mallarmé nada foi criado na literatura francesa, e o simbolista francês é figura decisiva nas análises de Barthes, de O grau zero da escritura, passando por Fragmentos de um discurso amoroso (em que se analisa a paixão de Mallarmé pelo filho Anatole e mesmo o amor é visto como “um lance de dados”) até O neutro e A preparação do romance II. O diferencial é que Barthes não reduz as obras de cada autor a um diálogo consigo mesmas, elevando-as a um patamar superior; pelo contrário, ele procura espalhar o significado da criação. 
          Com interesse e bom humor, Barthes empreende, além disso, ao longo de sua obra, um combate contra a doxa, o poder dominante da retórica e da falsa instituição, paradoxal vindo de um autor que, afinal, foi, como dito no início deste artigo, professor universitário. Mas não um acadêmico no sentido de seguir regras pré-estabelecidas, burocráticas, típica de alguns que, parecendo ser contra o sistema, não percebem a fraqueza e o comprometimento do próprio discurso. Sua paixão pela literatura sobrepujava a retórica, o domínio do professor ou do escritor sobre a classe ou o leitor. Professor e aluno aprendem juntos, como se complementam o leitor e o autor (aprender junto, aqui, é conviver junto). Talvez seja em razão disso que, quando propõe que a morte do autor significa o nascimento do leitor Barthes é alvo de conservadores, pois dessa forma ele malha uma crítica específica, que costuma se julgar o ponto final da obra e se acha capaz apenas de iluminar a obra que analisa – e não se deixa iluminar, restringindo-se à sociologia, à historiografia, à estreita relação entre autor e obra, vinculados sem atrito. Barthes combate o isolacionismo, mas não desfaz sua teoria para agradar às massas e não foge de um dos seus temas prediletos, a paixão. Recorre a ela em Fragmentos de um discurso amoroso, no qual leva ao limite a mistura entre ensaio criativo, reflexão e, por vezes, narrativa, desta vez partindo de uma análise de Werther, de Goethe. As inusitadas observações de Barthes, cujo imaginário se estende de O banquete de Platão a Lacan, mostra um sujeito melancólico e moderno, e sua solidão supera a de Werther, porque se sabe, mesmo com o amor, inesgotável, ou seja, ao invés do suicídio do “herói” de Goethe, Barthes é mais incisivo: ao amor se permite a liberdade do imaginário. Levando-se em conta que esta obra completou 30 anos (foi lançada em 1977), ela surpreende por seu caráter contemporâneo. Não por acaso, Fragmentos é um de seus livros-síntese e seria um dos mais comentados em O grão da voz, volume póstumo com entrevistas do crítico francês, necessário pela visão que oferece do seu percurso, por meio de sua voz escrita, sobretudo a respeito de obras como S/Z, Sade, Fourier, Loyola e Sistema da moda.

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          Incidentes, por sua vez, é uma espécie de Fragmentos de um discurso amoroso mais pessoal. Mostra as jornadas de seu autor, que era homossexual, atrás de um amor, mesmo já se sentindo impossibilitado para vivê-lo. O livro é realista (ou, se seguirmos o que seu autor dizia num ensaio presente em O rumor da língua, é um “efeito de real”), numa mistura entre afeto negado e secura, revelando uma espécie de diário do autor para alguns encontros que revelam sua decepção e recolhimento da realidade, embora a parte inicial lembre mais os escritos de John Cage (que Barthes admirava e do qual lembra em obras como O óbvio e o obtuso). Recolhimento de um autor que se sentia pleno somente no imaginário – ou assistindo a peças de teatro, como comprova o volume Escritos sobre o teatro.
          O processo de sua escrita (o simbólico), em todos os livros, deixa clara a importância de construir uma linguagem utópica (seu tema em Sade, Fourier, Loyola, colocando, de um lado, um autor conhecido pela violência erótica, Sade e de outro, um religioso, Loyola). Barthes raramente é hermético: não faz jogos de pensamento, nem costura demais a reflexão: tudo o que ele escreve parece solto, desestruturado, sendo, no entanto, coerente. É o “saber com sabor”, na análise de Leyla Perrone-Moisés, quando explica na introdução a O rumor da língua: “O saber de Barthes é a sua qualidade de escritor, sua capacidade de introduzir o estranhamento da fórmula artística (surpresa e prazer) no gênero ensaístico que ele pratica e renova: o jogo com os significantes, a polifonia de uma enunciação sutil que trança, em seu texto, várias faixas de onda: inteligência, erudição, ironia, humor, provocação, afeto. Sua sabedoria é o que constitui propriamente sua lição, já que o sabor do escritor pode ser desfrutado, mas nunca ensinado. A lição de Barthes não se apresenta de forma assertiva ou programática. Ela se reduz a algumas propostas básicas que atravessam todas as fases de sua obra, variando na formulação mas mantendo-se firmes como posição assumida diante e dentro da linguagem”. É uma crítica para, além de lida, ser apreciada, como um bom poema ou um bom romance. Nesse sentido, é uma escritura – termo que infelizmente caiu em desuso, tanto que a tradução da Martins Fontes se chama O grau zero da escrita –, como ele escrevia para diferenciar um texto da escrita comum. Uma escritura que tem muito de teatral e de imaginário.
          E, como todo professor, Barthes continua sendo combatido por alguns alunos, como Antoine Compagnon que, em O demônio da teoria (Ed. UFMG), parece realizar um tratado – de forma muito interessante, diga-se de passagem – contra suas ideias acerca da literatura. O mesmo Compagnon, aliás, já havia escrito, no texto “A obstinação de escrever”, em homenagem ao antigo professor: “Barthes era teimoso: não desistia antes de a escrita estar acabada, estar perfeita. Eis aquilo de que eu também tanto gostei nele”. Compagnon, em O demônio da teoria, faz cada um dos ataques com um brilho parecido àquele do antigo professor, mas esbarra num detalhe: quando tenta combater algumas ideias de Barthes que julga superficiais, valorizando as de Aristóteles, ele acerta tornando o pensamento do amigo francês comparável ao do filósofo grego. Em linhas menos generosas, defende o mestre, mesmo ao falar que ele erra. Pois, como disse Barthes, certa vez, lembrando Valéry, sem receio: “Eu decepciono”. É talvez um lugar-comum na trajetória de quem também dizia: “A palavra ‘obra’ já é imaginária”. Imaginária ou decepcionante para quem espera a perfeição, sua obra é indispensável aos apreciadores de uma teoria da literatura que, ao sistema, prefere a criatividade. Como observa Leyla Perrone-Moisés: “As propostas de Barthes podem parecer inócuas; elas não têm a completude reconfortante de um sistema de pensamento, nem a enunciação forte dos que querem convencer e aliciar seguidores. Seu lúcido humor e sua calma impaciência são, entretanto, maneiras elegantes e táticas eficientes para atravessar e subverter os discursos cansados de nosso momento cultural”. Percebe-se, finalmente, por que Barthes, a partir de determinada etapa de sua trajetória, tinha tanta aversão à política e tratava tanto da poesia nas suas aulas finais do Collège de France.

          Por André Dick

          Certa vez, numa entrevista, Haroldo de Campos disse que a obra de Roland Barthes (1915-1980) se caracterizava por ser “singular, personalíssima, dificilmente transmissível hereditariamente a discípulos”. Poucos intelectuais, como este francês, também tiveram uma vida tão conturbada. Depois da morte do pai, quando tinha 11 meses de vida, Barthes, ao lado de sua mãe, atravessou uma infância relativamente pobre. Em razão da tuberculose, que passaria a enfrentar em 1934, ficou recluso num sanatório em períodos diferentes – afastado da “vida real”, o que ganharia contornos em sua obra –, onde leu a maior parte dos autores que o influenciaram (como Sartre, Brecht e Michelet). Nos intervalos de suas internações, teve experiências como professor. Depois de superar a doença nos anos 1940, foi trabalhar como leitor na Universidade de Alexandria, no Egito, quando já se desenhava o crítico que lançaria em sequência alguns títulos, como O grau zero da escritura e Crítica e verdade, que criaram desconforto na intelectualidade francesa acadêmica e conservadora. A polêmica não o afastou do campo do ensino: Barthes foi um dos teorizadores da semiologia (lançou, inclusive, o libello didático Elementos de semiologia, influenciado por Saussure e Peirce), ao mesmo tempo em que ingressava no mundo universitário, na École Pratique des Hautes Études. Atingiu o ponto mais alto, como professor e intelectual francês, ao ser nomeado para o Collège de France, em 1976, para a Cátedra de Semiologia Literária.

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          Já antes desse cargo, porém, Barthes navegava por outros campos e num livro como O prazer do texto tentava utilizar uma visão pós-estruturalista, aplicando a teoria à leitura das obras. Além disso, havia lançado a “autobiografia” fragmentada (e romanceada) Roland Barthes por Roland Barthes e se prepararia para lançar Fragmentos de um discurso amoroso, seu inesperado best-seller e talvez seu livro mais conhecido, sem nenhuma ligação com a teoria cientificista que imaginou ser importante na época do auge da Semiologia.
          Seu caráter múltiplo, porém, não se restringe a esses livros. Guardava interesse pela fotografia (em A câmara clara), pela música (em O óbvio e o obtuso, livro póstumo com reunião de diversos artigos), pela desconstrução da narrativa (em S/Z, bastante influenciado pelas teorias de Derrida e de Julia Kristeva), pela interferência dos signos em nossa percepção cotidiana (em Mitologias, O império dos signos e Sistema da moda), pela mudança no direcionamento crítico (Sobre Racine) etc., sem cair no puro sociologismo histórico, mas criticando esses elementos, como se lidasse com textos literários. Tal posicionamento mostrava um autor demasiadamente múltiplo para a teoria ou para a crítica literária. Contudo, por outro lado, Barthes, por meio desses outros campos de linguagem, enriquece o que pensamos ainda existir: a literatura, que ainda faz dele um destaque nos dias atuais – já longe de 1980, quando faleceu com uma parada respiratória enquanto estava internado devido a um atropelamento.
          Para revivê-lo, o caminho agora é encontrá-lo nas livrarias. Daí a importância da coleção Roland Barthes, coordenada pela professora Leyla Perrone-Moisés para a editora Martins Fontes, que está trazendo a reedição ou a primeira edição de seus livros. Comecemos dando um breve apanhado de quatro deles que contêm ensaios inéditos: o primeiro de teoria, o segundo de crítica, o terceiro sobre o sistema e a moda, e o quarto sobre política.
          O volume recente de inéditos de Teoria recupera um Barthes em mudança. São textos com o sentido de esclarecer o processo no qual se dá a escritura, fazendo ligação entre culturas díspares, contra o monolinguismo e investigando o estruturalismo, a cultura de massa e a cultura superior, além da paixão pelo escrever. Destaque-se a carta de Barthes sobre Derrida (em poucas linhas, Barthes sintetiza a obra desse filósofo, morto em 2004) e uma recuperação da história da escrita, além do ensaio basilar (originalmente, um verbete) sobre o “Texto”. Já nos inéditos de Crítica, encontram-se duas investigações sobre O estrangeiro, de Albert Camus, o ensaio “Masculino, feminino, neutro”, que deu origem a S/Z, e o belo “Mesas-redondas”. De modo geral, os ensaios que formam esse volume parecem enfeixar uma ligação direta com Ensaios críticos e Novos ensaios críticos, na forma e na modulação de tom. O volume sobre Imagem e moda recupera o ensaísta de Sistema da moda (possivelmente seu livro mais cansativo e com um estruturalismo mais ortodoxo), mas apresenta textos inéditos, mais interessantes, sobre o tema. No volume sobre Política, veremos textos com viés mais variado, entre eles uma análise a respeito de Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. Curiosa é uma resenha de Barthes sobre A peste, de Camus, que levou este a reclamar contra seu crítico, numa longa carta, e receber de volta uma resposta curta e arrogante. Importantes, igualmente, são os escritos sobre a China, a utopia, o marxismo, a violência, o antissemitismo, os hippies, além de suas entrevistas, permeadas de bom humor. Com textos mais do início da trajetória de Barthes, mostra que o universo político foi rejeitado mais tarde pelo escritor porque envolve um certo “discurso de verdade: discursos de arrogância, discursos de militância, discursos de autoridade e de certezas”, como escreve Leyla Perrone na introdução de O rumor da língua (abaixo, uma pintura de Roland Barthes).  

              

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          Tais inéditos juntam-se à publicação de seus cursos e seminários O neutro, Como viver junto, A preparação do romance I e A preparação do romance II, organizados a partir de fichas do autor com anotações feitas para as aulas dadas no Collège de France – todos os livros se organizam, por isso, em dias de aula. Apesar de proporcionarem uma leitura mais difícil, pois elíptica, esses livros agradam pela velocidade do pensamento de Barthes. Nele, há uma precisão analógica, feita de idas-e-vindas, que revela uma delicadeza poética no tratamento com as ideias, como se fossem criando uma interação com a classe (a qual o leitor substitui, no caso, mesmo que sem a voz de Barthes, que vem em CDs apenas na edição francesa do livro). Mesmo que o significado escape, o significante poético permanece, o que não é paradoxal em se tratando da escrita de Barthes. Nesses seminários, como nos últimos livros do escritor (Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso), fica melhor esclarecida essa ligação do escritor francês com a humanidade e com o afeto pelo outro. Como escreveu José Guilherme Merquior, num longo ensaio dedicado a Barthes em De Praga a Paris, o francês teve um “papel crucial no movimento (estruturalista)”, sendo uma espécie de “oficial de ligação entre o estruturalismo e o existencialismo”.          
          Numa escala comparativa, O neutro recupera ideias de O grau zero da escrita, no sentido de trabalhar um painel sobre a escritura que busca um ponto de conciliação entre rumos diferentes, nunca escolhendo nenhum deles. O neutro é uma figura de reflexão para Barthes: um neutro via Sartre e Blanchot, que serviria de mote para Derrida, não por coincidência um leitor de Barthes. Existe no neutro uma crítica ao fato de o indivíduo, em seu comportamento social, precisar, não raramente, tomar posição. Ou se mostrar sempre disposto, o que Barthes contesta, referindo-se, nas entrelinhas, ao luto que guardava, na época, pela morte da mãe. A crítica contida em seu conceito guarda laços de parentesco com a cultura oriental, sobretudo com o zen, ao qual o autor recorre em alguns momentos. Para Barthes, o crítico, por exemplo, não tem nenhuma obrigação de tomar partido, muito menos de comentar uma obra se ele não quiser. Ao mesmo tempo, ele contesta a ideia de que ser neutro é um sinal de fraqueza, o que remete à desconstrução de Derrida, que optava pela diferença – a conciliação entre extremos, contra o logocentrismo do pensamento. Nesse sentido, um dos momentos mais interessantes de O neutro é aquele em que Barthes fala da questão do imaginário, recorrendo aos casos de Valéry, Baudelaire e Mallarmé. O imaginário, usado no sentido lacaniano, é entendido por Barthes como uma espécie de “lugar” onde se distendem todas as impressões e leituras do autor, que assume várias máscaras.

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          Já Como viver junto recupera ideias de Fragmentos de um discurso amoroso, do qual trataremos na segunda parte deste artigo, mas sob um viés mais concentrado em relacionamentos culturais, de como o ser humano se adapta a cada meio, a cada convivência, e não investigando tanto o campo amoroso (analisa até Robinson Crusoe, de Willem Dafoe), embora recorra a ele em alguns momentos. Estuda mais o comportamento social que o indivíduo pode revelar (seja sozinho, seja numa comunidade): a maneira como organiza seu quarto, como se alimenta, como lida com determinados sentimentos (desejo, melancolia, morte), analisando tudo como linguagem. Há um certo ar da sistematização que Barthes faz do universo da moda, mas sem o mesmo viés estruturalista cientificista, que era e é difícil de suportar, armadilha na qual ele  caiu poucas vezes (em alguns momentos de S/Z, por exemplo).
          Essa volatização da linguagem se amplia em A preparação do romance I e II, que enfocam o processo que o escritor enfrenta para compor sua obra. Se o primeiro livro é mais dedicado ao haicai, o segundo mostra uma inclinação para o universo poético da modernidade, tendo em mira os poetas Dante, Rimbaud e Mallarmé. Mas, para contar também o processo de criação, acaba passando, com atenção, por Proust e Kafka. É, possivelmente, o que de melhor escreveu Barthes sobre a poesia. Além de recuperar a desistência poética de Rimbaud, o crítico francês trata do Livro sonhado por Mallarmé e faz comentários sobre Vita nova, de Dante. A dicção utilizada nessas explicações, ao mesmo tempo tão orais e tão poéticas, mostra uma apropriação inteligente, por parte de Barthes, do que Jacques Scherer e outros escreveram sobre o projeto irrealizado de Mallarmé. O livro, no entanto, vai além: é impressionante como Barthes costura os elementos pelos quais passa o escritor (sua vida em comunidade ou em solidão, seu desejo de escrever, a relação entre a obra e o mundo). A preparação do romance II traz também o curioso seminário “Proust e a fotografia”, dedicado a analisar fotografias que Nadar tirou de escritores e outras personalidades.
          Esses inéditos e seminários se juntam, na coleção, a outros livros já conhecidos: O grau zero da escrita (embora se preferisse escritura), A aventura semiológica (que faz parte da Coleção Tópicos, também da Martins Fontes), Fragmentos de um discurso amoroso, Sade, Fourier, Loyola, O rumor da língua, O grão da voz (livro de entrevistas) e Incidentes – que serão comentados na continuação deste artigo, a ser publicado na segunda-feira. Destaquem-se, na maioria deles, as apresentações de Leyla Perrone-Moisés, com uma clareza sintética, em que se delineia a trajetória de Barthes, observando suas tendências e metamorfoses dos anos 1950 até os anos 1970, e as traduções muito bem feitas (alternadas entre Leyla Perrone, Ivone Castilho Benedetti e Mario Laranjeira), como as dos livros já mencionados.

          Por André Dick

          O fato de Cabral afirmar, de forma objetiva, que nunca escreveu sobre si mesmo era realmente seu maior fingimento: o poeta gostava era de escrever sobre seus gostos, seu diálogo com poetas, suas experiências, suas lembranças, mas sempre de forma melancólica, que, no seu caso, transparecia na estrutura de seus poemas, considerada “fria” e “calculista”, e na musicalidade contida (o poeta não gostava de ouvir música). João Cabral não escondia que seu sonho inicial era escrever como Drummond. Sua poesia, como lembra Faustino, teria sido impossível sem a existência prévia do mineiro. Depois de ler Sentimento do mundo, escreveu ao mestre, numa carta de 1941, que o livro acentuou sua “solidão de indivíduo, cada dia mais agravada”. E, igual a Drummond, Cabral tentou lançar mão de sua melancolia desde Pedra do sono, seu primeiro livro. Em “Poema” escreve: “Ficarei indefinidamente contemplando / meu retrato eu morto”, em “Poema deserto”: “Eu me anulo me suicido, / percorro distâncias inalteradas”. Na estrofe final de “O fim do mundo”, de O engenheiro, seu segundo livro, escreve: “No fim de um mundo melancólico / os homens leem jornais. / Homens indiferentes a comer laranjas / que ardem como o sol”.
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          Nenhum outro poema, no entanto, talvez exprima essa melancolia do que o poema que segue abaixo, não incluído na obra completa de Cabral, feito para Drummond, quando os dois poetas eram amigos:

          Difícil ser funcionário
          Nesta segunda-feira.
          Eu te telefono, Carlos,
          Pedindo conselho.

          Não é lá fora o dia
          Que me deixa assim,
          Cinemas, avenidas
          E outros não-fazeres.

          É a dor das coisas,
          O luto desta mesa;
          É o regimento proibindo
          Assovios, versos, flores.

          Eu nunca suspeitaria
          Tanta roupa preta;
          Tão pouco essas palavras –
          Funcionárias, sem amor.

          Carlos, há uma máquina
          Que nunca escreve cartas;
          Há uma garrafa de tinta
          Que nunca bebeu álcool.

          E os arquivos, Carlos,
          As caixas de papéis:
          Túmulos para todos
          Os tamanhos do meu corpo

          (…)

          Carlos, dessa náusea
          Como colher a flor?
          Eu te telefono, Carlos,
          Pedindo conselho.

          A amizade entre Cabral e Drummond se movia entre a melancolia, o trabalho da burocracia (“nosso pão e nosso câncer”, segundo Drummond, e poder-se-ia dizer sobretudo “nosso pão”) e a literatura. Como ainda percebe Faustino, embora Cabral tenha mais rigor, sua obra tem “menos intensidade”do que a de Drummond. Essa intensidade menor certamente é uma conclusão da melancolia mais acentuada: enquanto Drummond utilizava, por exemplo, o verso mais longo, Cabral era simétrico – sua simetria é subjetiva e reflexo do desalento, embora, para alguns críticos, isso indique uma desumanização. (Não por acaso, uma relação entre dois melancólicos, como Drummond e Cabral, só poderia terminar, depois de um rompimento, em silêncio.)
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          Castello lembra em sua biografia que Cabral, em 1986, havia sido convidado pelos filhos a voltar para Recife, recusando o convite, pois a maior parte dos amigos estavam mortos: “Não, o passado não me interessa”. O passado interessava – e muito – ao poeta, e se pronunciou, quase que autobiograficamente, a partir de Museu de tudo, em diversos poemas que relembram amigos, chegando ao ponto mais alto em A escola das facas, no qual se recorda ambiente da infância, embora Agrestes seja possivelmente o de origem mais autobiográfica, tratando seguidamente da velhice e da morte. Mas é inegável a imagética nordestina de toda a sua obra: o rio Capibaribe, por exemplo, retorna em muitos escritos, como O cão sem plumas, e o sertão pernambucano, por sua vez, é continuamente lembrado em vários livros.
          Julia Kristeva, em Sol negro, escreve que o homem melancólico vive num espaço imaginário, em que o passado não passa. O passado, na poesia cabralina, não passa e, incapaz de pertencer a sentimentos vagos, dispersos, necessita se cristalizar em palavra mineral (a imagem é dele mesmo). Esta melancolia, no entanto, não é paralisante e se mescla à ironia, ao bom-humor, a uma alegria solar (sobretudo em Paisagens com figuras) e à paixão (seus poemas sobre figuras femininas, como “Estudos para uma bailadora andaluza” e “Paisagem pelo telefone”, são de uma sensibilidade notável). Cabral tornou sua melancolia em elemento para seu papel poético. Há em sua obra uma revisão de descoberta, sobretudo nos poemas quase lúdicos (como “Poema (s) da cabra”, “Jogos frutais”, “O ovo de galinha”, “‘Generaciones y semblanzas’” e “O relógio”), em que parece mesclar um discurso filosófico à nomeação infantil, desautomatizada. Neles, também há um sentimento – melancólico – que surge quando o poeta se volta aos mesmos ambientes, sem poder preenchê-los, pois as lembranças deixam lacunas.  Mesmo a metalinguagem de muitos poemas, como Uma faca só lâmina, ou “O sim contra o sim” (de Serial), mostram uma melancolia incorporada à memória do diálogo artístico. Castello acerta, nesse sentido, ao selecionar fragmentos de poemas que dialogam com etapas da vida do poeta, mostrando como a existência está ligada à escritura e a linguagem não é um objeto autônomo que utiliza o poeta para se expressar. Atribuindo as próprias dúvidas a uma poeta de sua predileção, ele escreve em “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”:

          Sempre evitei falar de mim,
          falar-me. Quis falar de coisas.
          Mas na seleção dessas coisas
          não haverá um falar de mim?

          Não haverá nesse pudor
          de falar-me uma confissão,
          uma indireta confissão,
          pelo avesso, e sempre impudor?

         A coisa de que se falar
         até onde está pura ou impura?
         Ou sempre se impõe, mesmo impura-
         mente, a quem dela quer falar?

         Como saber, se há tanta coisa
         de que falar ou não falar?
         E se o evitá-la, o não falar,
         é forma de falar da coisa?

         Analisando especificamente esse poema, Antonio Carlos Secchin observa que a poesia cabralina é “sutilmente confessional, urdindo uma espécie de autobiografia em terceira pessoa”, sendo “pela marca exaustiva de determinados signos que se vai desenhando o rosto de quem a imprime”. Nesse sentido, Cabral compreendeu de forma rara a linguagem, sendo, ao mesmo tempo, estratégico, e expansivo, ao se educar pela razão, mas também pelo sentimento, transformando sua despersonalização numa personalização diferenciada daquela que ele enxergava como romântica, o que conduz seu trabalho à “imitação da forma” estudada por João Alexandre Barbosa.
          Um questionamento fundamental, hoje, é se João Cabral foi o maior poeta da poesia brasileira. Os grandes poetas acabam tendo pontos em comum. Nesse caso, Flora Süssekind afirma que Cabral apresenta, em sua obra, “(…) pensando na poesia moderna, a diccção simples de Manuel Bandeira, as marcas da prosa no verso, características de Carlos Drummond de Andrade, a compreensão da poesia como construção, como em Joaquim Cardozo, a plasticidade das imagens de Murilo Mendes”. Igualmente, pode-se lembrar a influência (não no sentido agônico de Harold Bloom) na poesia cabralina de outros nomes, como Baudelaire, Mallarmé, Marianne Moore, W. H. Auden, William Carlos Williams, Francis Ponge, Cesário Verde etc. Mas pode haver uma diferença, aquilo a que o poeta francês Paul Valéry em alguns textos seus, chama de ética da recusa. É quanto a tal ética que João Cabral se sai tão forte dentro da tradição, suscitando a fortuna crítica de sua obra.
          Baseado nessa obra que não existiria sem o conhecimento da tradição, sem o interesse pelo diálogo da literatura com outros campos, há, de modo panorâmico, passagens muito curiosas no livro O homem sem alma, de José Castello. Destacam-se aquelas que retratam seus momentos de amizade com poetas que também o instigaram, como Drummond, Bandeira e Vinicius de Morais, além de seus amigos mais próximos Willy Lewin e Joaquim Cardozo. Ainda, o desinteresse de Oswald e Mário de Andrade por seu trabalho.
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          Alguns momentos de sua vida chamam a atenção: a aversão inicial à poesia, o estudo com os irmãos maristas, a experiência como jogador de futebol, a amizade com os empregados da fazenda da família (já sintetizada no poema “Descoberta da literatura”) e a perseguição que sofreu quando acusado de comunismo. Fala-se muito de suas atividades como embaixador, mas, ao invés da burocracia monótona, Castello enfoca os elementos que cercavam Cabral: sua contínua enxaqueca, as amizades com artistas espanhóis (como o pintor Miró e o poeta Joan Brossa) e com políticos (de países onde morou). É interessante acompanhar a história de sua passagem por cidades como Londres, Sevilha, Madri, Quito e Dacar, fazendo com que Castello escreva que Cabral, na carreira como diplomata, tornou-se um “profissional do subterfúgio, em um viajante que veste e despe países e culturas ao longo de seus dias, um trânsfuga que jamais cessa de fugir”. Mas não parece ser por acaso que as cidades que menos aparecem (ou não aparecem) em sua poesia são aquelas em que o clima não lembra Pernambuco: Genebra, Marselha e Londres. A vida no estrangeiro é sempre atenuada pela lembrança de uma paisagem menos fria. Na descrição de sua visita a João Cabral, em Sevilha, no ano de 1956, quando foi levado pelo poeta diplomata, em seu Chevrolet Bel-Air para conhecer Sevilha, Pignatari escreve que o poeta pernambucano/espanhol “inebriava-se com as sedutoras franquias de Sevilha, feito noviço enamorado de toros, flamenco, cante jondo”, levando-o “aos melhores tablados e ao curral de touros antes do sorteio para os espadas, e à mistura de deboche e contra-reforma dos bailaores e das bailaoras suspendendo com os esguios e fluidos corpos os tacos dos sapatos nos tablados”. Difícil imaginar que tais cenários não tenham despertado a criação de poemas como “Estudos para uma bailadora andaluza” e “Sevilha” (ambos de Quaderna), a seção “Ainda, ou sempre, Sevilha” (de Agrestes) ou livros como Sevilha andando.

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          A exemplo do que escreve João Alexandre a respeito de O cão sem plumas (e da obra cabralina): “É a realidade da linguagem, a sua viva e espessa função no plano da invenção poética que permite a maior abertura para a realidade de circunstância que se incorpora ao texto. Ao fazer-se real no espaço do poema, a linguagem cria a realidade, na medida em que esta só faz parte daquele espaço por sua efetivação”.   
          A poesia de João Cabral, no seu diálogo com escritores, pintores e arquitetos, representa fagulhas dispersas de uma vida que vibra. Assim, Cabral segue outro conselho de Drummond: “Desde que estejamos vivos, as experiências se realizarão dentro e fora de nós, e haverá possibilidade de progredir na aventura poética. O essencial mesmo é viver e acreditar na força formidável da vida, que é nosso alimento e nosso material de trabalho”.
          Nesse sentido, pode-se dizer que, nas entrelinhas, O homem sem alma é um exame de uma luta contra a morte, que atormenta o poeta, pois representa o que é vago, o qual, por ser incapaz de encarar, como escreve no poema “Resposta a Vinicius de Moares”, tenta a todo custo evitar. Lembre-se que a biografia de Castello inicia com o poeta indo a um funeral do escritor Francisco de Assis Barbosa na Academia Brasileira de Letras, onde não se sente bem e é socorrido pelo amigo Otto Lara Resende. Nesse sentido, o combate contra esse “vago”, que Castello detalha nesse vital Diário de tudo que encerra o livro, é o que serve de base ao entendimento que fazemos de Cabral: irônico em seus poemas sobre a morte em Agrestes, de um humor-negro que poucos conseguiram traduzir em palavras na tradição brasileira, o poeta é incapaz de encará-la na realidade. Conforme Castello, Cabral admite, no poema-resposta a Vinicius, que seu “gosto pela precisão e pela claridade (…) não é uma escolha intelectual” e sim “o resultado de uma incapacidade para enfrentar o seu oposto: o vago, o indeterminado, o nebuloso”, ou seja, que sua opção pelo concreto é uma “sina” e não uma “opção”. No livro de Castello, o poeta não morre – a primeira edição de João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma foi publicada em 1996, três anos antes de seu desaparecimento. Na realidade, o poeta não morreu dia 9 de outubro de 1999. Ele continua vivo nessa biografia de Castello, uma convite para começar a entendê-lo e mesmo – é o que também se espera – uma porta de entrada para conhecer sua obra completa. E, acima de tudo, uma parte da “força formidável da vida”, mesmo que cercada de melancolia, a que se referiu Drummond em sua carta.

                                                                                               

           Por André Dick

           Em 9 de outubro de 1999 – quase 10 anos atrás –, o Brasil perdeu um de seus maiores poetas: João Cabral de Melo Neto. De 1940, quando estreou na literatura com Pedra do sono, até 1992, quando publicou Poemas sevilhanos, traçando uma obra ao longo de mais de meio século, esse poeta nascido em Recife, firmou, de forma definitiva, no Brasil, uma tradição de poesia difícil,  provinda de Mallarmé e Valéry. Com isso, ganhou denominações comuns a esses poetas franceses. Era visto por alguns críticos, sobretudo quando estreou na literatura, como um poeta hermético, frio, esquemático, individualista etc., que não se interessava pela recepção pública e, por fazer uma poesia construída, mais “racional” (muito em razão do vocabulário que mostrava em O engenheiro, seu segundo livro), era desumano.

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          Tratar os poetas modernos como desumanos procede de muitas leituras, a começar pela obra Estrutura da lírica moderna, de Hugo Friedrich. Nela, o poeta passa a ser desumano quando, ao criar um universo pretensamente inacessível, nega o contato imediato com o público (os “mortais comuns”), com a sociedade de modo geral, além de ignorar a existência de um “ser divino” em si mesmo. Nesse caminho, o poeta adotaria uma pureza, visando a um mundo voltado para a linguagem, ou seja, na visão de Friedrich, afastado da realidade, negando a premissa básica de que o homem é construído, em suas relações, pela linguagem, próximo ou afastado do diálogo social. Para o crítico francês Antoine Compagnon, a tradição moderna ser reduzida a uma “evasão” ou a uma “fuga diante da realidade social” é um “salto brutal”– e poetas como Mallarmé, Baudelaire e Rimbaud, figurantes da teoria reducionista de Friedrich, são mais interessantes do que parecem, assim como Cabral. Com um argumento oposto ao do teórico alemão, Augusto de Campos, em Verso reverso controverso, observa que a possível desumanização da qual Cabral é acusado não é mais do que a “tomada de consciência, por parte do poeta, em plena lucidez, de sua verdadeira função ética e social”.Segundo Augusto, existe “a busca do verdadeiramente humano na linguagem, tomada em si, como fonte de conhecimento e apreensão da realidade”.
          Deve-se lembrar, nesse sentido, que os teóricos da poesia concreta estabeleceram uma aproximação a Cabral, demonstrada através de seus textos iniciais, tomando-o como precursor do que faziam, não havendo ainda essa reflexão mais tardia de Augusto. Mesmo as observações que Haroldo faz em seu ensaio sobre Cabral, “O geômetra engajado”, destacam um poeta que ocupa o “lugar cartesiano da lucidez mais extrema”.O poeta pernambucano tem pontos de contato com a poesia concreta, principalmente o desejo de compor uma poesia crítica, ligando-a aos campos da arquitetura e da pintura. A sua poesia, no entanto, ao mesmo tempo em que concentra a matéria em seus versos, dá a sensação de fixar rótulos às coisas que a cercam, lembrando Wittgenstein: a estrutura verbal imposta ao poema se realiza não por uma sintaxe analógica (própria da poesia concreta) nem por uma concisão (no sentido discursivo), mas por uma sintaxe trabalhada pela quebra constante do verso e do pensamento.
          Em carta de 22 de janeiro de 1957, em resposta a uma carta de Augusto (resposta também dirigida ao grupo Noigandres), Cabral dizia sobre a poesia concreta: “Não participo da aversão que vocês sentem pelo verso: isto é, pela frase, pelo discurso. Não creio que a retórica, por pior que seja, tenha o poder de corromper este aspecto da linguagem e de seu uso possível: o discursivo. O que é possível é introduzir no discurso a preocupação com a estrutura”. Como ele diz no discurso de agradecimento pelo prêmio Neustadt (1992), a poesia é a “exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais”, ao mesmo tempo que é – o que nos interessa aqui – “exploração emotiva do mundo das coisas”. Diante dessas observações, os preceitos para a inclusão cabralina entre os nomes referenciais da teoria concretista – “linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso”– são reunidos a outros elementos, sobretudo a emotividade e a influência mais visível da fala cotidiana, mais visível também na produção dos poetas já “ex-concretos” a partir dos anos 1970. Pode-se afirmar que a poesia concreta ortodoxa, inserindo os signos numa ordem plástica, em que os espaços em branco da página possuíam importância, não adentrava no imaginário de cada objeto como faz Cabral. Todavia, segundo João Alexandre Barbosa, a abstração cabralina não seria o contrário do concreto, “mas a estratégia por intermédio da qual é possível retornar, pela linguagem, ao núcleo, ao concreto, das coisas e do homem”, tendo o homem, por meio de um discurso engendrado, uma relação intrínseca com as coisas que o cercam.

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          Cabral não era um poeta afastado do assim chamado “mundo externo” à literatura, mesmo que desinteressado pelo debate poético público, o que incomodava a Mário Faustino, que chegou a dizer que o pernambucano fazia sua “vanguarda em casa”, embora soubesse que a poesia dele trazia “problemas culturais, políticos, éticos, estéticos”. Cabral não se propôs a ser um guia da poesia brasileira, não só em razão de seu afastamento das rodas literárias – era diplomata do Itamaraty –, mas, sobretudo,  porque não se considerava um autor divino, capaz de conduzir todos os seus contemporâneos, ou sucessores, numa linha específica de rigor, e trazer uma solução sócio-político-cultural para os problemas do mundo. O próprio Drummond lhe escreveu numa carta, em janeiro de 1942, mostrando sua inegável influência sobre o então amigo, que a “reação do público evidentemente interessa, mas não deve impressionar muito o autor”. E ainda: “É certo que sua poesia tem muito hermetismo para o leitor comum, mas se v. a faz assim hermética porque não pode fazê-la de outro jeito, se você é hermético, que se ofereça assim mesmo ao povo”. O conselho é valioso. O auto Morte e vida Severina, por exemplo, é reconhecido pelo grande público, mas sua linguagem não é acessível, ou, como alguns querem, engajada, apesar de sua dicção simples. Ou seja, o poeta evitou, mesmo quando se aproximou da cultura popular, se adequar às exigências ou expectativas de um leitor, embora quisesse atingir um. As adaptações do auto feitas para a TV, para o teatro e para a MPB, pelas mãos de Chico Buarque, estabelecem uma ponte com o público, mas conservam intacta a linguagem do poeta. A questão, porém, é que Cabral costuma ser lembrado como um poeta que descreve, de forma impessoal, lâminas de faca, cactos, cercas de arame farpado, canaviais, engenhos e outros elementos próprios da paisagem do sertão nordestino, além de toureiros e dançarinas espanholas, mantendo o máximo de distância dessas figuras enfocadas. Pouco se fala de sua emoção, que, como ele dizia não é a mesma manifestada pelo romantismo, guiada, segundo ele, pela inspiração ou intuição.
          É isso que nos ajuda a esclarecer sua biografia João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma, escrita por José Castello, lançada pela primeira vez em 1996 e relançada em 2006 pela Bertrand Brasil acompanhada pelo Diário de tudo, em que se registram impressões dos encontros com o poeta, que, por sinal, tinha aversão à biografias (que ligava exatamente a figuras românticas). Castello tenta descobrir as verdadeiras razões para a frieza, mecânica e individualista, que certa poesia sociológica costuma ver no poeta pernambucano. O retrato que ele faz de João Cabral lembra descrições que ele faz de nomes como Clarice Lispector, José Saramago e Ana Cristina Cesar em seu referencial Inventário das sombras. Ao buscar pequenos detalhes no modo de agir desses escritores, Castello acaba definindo, também, um modo de fazer crítica pela interpretação biográfica, isto é, sem fazer crítica efetiva, ele, por meio da descrição existencial do autor, não só apresenta um complemento para a crítica literária, mas apresenta outro tipo de crítica, voltada à existência – que, em razão da influência do estruturalismo ortodoxo, passou a ser negada em estudos.

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          Contando os passos de Cabral, a fim de descrevê-lo como um homem sem alma, Castello tira a mitologia que há em torno do poeta e aborda o homem que, sem alma, quer nos fazer crer que tem sentimentos, por seus gestos e por sua obra poética, por seu corpo, enfim. O “sem alma” é uma referência necessária ao Cabral antirromântico, aquele ao qual Costa Lima se refere em seu ensaio “João Cabral: poeta crítico”.No entanto, é possível pensar que, mesmo Costa Lima querendo aproximar a posição crítica de autores como Schlegel (do primeiro romantismo) à de Cabral, o romantismo a que Cabral se referia é aquele filtrado pela imagem de que a alma desempenha o papel de inspiração, e contra a qual, como observa Castello com clareza se volta: “Diz-se que todo poeta tem contato direto com o imaterial, guarda um coração descontrolado e vive às expensas de forças obscuras que lhe ditam seus versos. O poeta, visto assim, é antes de tudo um porta-voz. Alguém que exerce o posto de lugar-tenente e, ao escrever, representa forças indefinidas e disformes que, de outro modo, não poderiam se expressar. Mesmo decidido a escrever poesia, Cabral se nega desde logo a aceitar esse destino”. Opta, então, pelo “terreno áspero e desespiritualizado da matéria”, tornando-se um “poeta sem alma”.Para Castello, a “alma só o interessa se petrificada pela matéria”. Assim, todo objeto “carrega um fantasma: o homem que o torneou. Em “Pequena ode mineral”, que encerra O engenheiro, Cabral já sintetizava a procura pela materialidade (a carne) por meio do  abstrato (a alma): “Desordem na alma / que se atropela / sob esta carne / que transparece. / / Desordem na alma / que de ti foge, / vaga fumaça / que se dispersa, / / informe nuvem / que de ti cresce / e cuja face / nem reconheces / / Tua alma foge / como cabelos, / unhas, humores, / palavras ditas / / que não se sabe / onde se perdem / e impregnam a terra / com sua morte”.
          Esta “alma atropelada” sob a carne, para Cabral, representa o romantismo, mas já antecipa a moderrnidade. No entanto, sob outro ponto de vista, o “eu construtor” (para alguns, cerebral e, para outros, calculista), direcionado pela linguagem, a que almejava Cabral, contra a inspiração livre, no entanto, pode ser visto também como o “eu romântico”, que tanto poderia ser uma “pessoa arrebatada da linguagem”. (Novalis) quanto aquele no qual “o pensamento que se deve exprimir com lucidez já tem de estar afastado, não ocupar propriamente alguém” (Schlegel). Isto é, no romantismo em questão, o poeta era um mediador para a linguagem. Para Schegel, o mediador é “aquele que percebe em si o divino e, aniquilando-se, abandona a si mesmo para anunciar, comunicar e expor, nos costumes e ações, em palavras e obras, esse divino aos homens”, sendo o artista uma ponte “para todos os restantes” (ou a sociedade). Teria sido Cabral, nesse aspecto, um romântico, que acreditava numa linguagem que compusesse uma obra que existisse à parte de sua vontade pessoal, ou melhor, que o ser humano fosse dar espaço exclusivo a uma linguagem divina autônoma? Castello relembra que ele tinha como objetivo ser crítico e se preparava para isso fazendo poesia. Quando percebeu que a poesia poderia ser uma maneira de fazer crítica, acabou por mesclá-las. Parece que, ao contrário do que Costa Lima apresenta em seu ensaio sobre Cabral já mencionado, o romantismo a que Cabral se referia não era esse que pretendia unir crítica e criação, e sim o que pretendia revolucionar a literatura, em que o “eu” era uma porta-voz da humanidade, sendo quase o alicerce da sociedade. Além disso, Cabral dificilmente concordaria com Novalis, que dizia: “O genuíno poeta (…) permaneceu sempre sacerdote, assim como o genuíno sacerdote sempre poeta (…)”. Na modernidade, como escreve Augusto de Campos, o poeta “utiliza a linguagem, em lugar de ser utilizado por ela”. O grande equívoco é entender que o poeta capaz de reconhecer a linguagem – o moderno enfocado por Friedrich em sua obra – seja menos humano do que aquele romântico, em que a forma se deveria à “liberdade da alma”, ao contato com um sentimento sublime, superior ao de um ser humano comum. A linguagem é um elemento formador de todos e um escritor não existe sozinho, apenas com sua inspiração, seus sentimentos pretensamente superiores e seu vocabulário inovador. Os passos que Castello segue para redesenhar Cabral também desidealizam aquele mito que este talvez tenha construído na maioria das entrevistas e de textos: o de ser formalista ao extremo. Em seu texto “Poesia e composição”, por exemplo, João Cabral associa qualquer poema com elemento biográfico a uma poesia espontânea, inspirada, sem construção. Essa reflexão, claro, é insuficiente.
          A biografia de Castello, para contrariar esse caminho, é perpassada por uma espécie de sentimento filtrado pela razão. Haveria, segundo ela, um João Cabral com sentimento à medida que a despeito de ter praticado uma poesia impessoal, a sua poesia é uma das mais pessoais e subjetivas da poesia brasileira (elementos que ele considerava, de forma equivocada, apenas de poetas que seguiam “o ditado de seu anjo ou de seu inconsciente”. Além de sua obra inicial, mais calcada no surrealismo e no simbolismo, se dar em razão de leituras referencias (Valéry e Murilo Mendes), sua poesia consequente, a partir de Paisagens com figuras, sobretudo, é um contínuo retorno a Pernambuco e uma iluminação sobre os cenários espanhóis, por meio também da pintura, da música e da dança, também em razão de leituras (como as de Jorge Guillén). Estrangeiro, no país das touradas, não importa saber o que Cabral trouxe de sua vivência para a obra. Sua poesia não é confissão, mas tampouco uma negação do que viveu. É preciso rever o conceito de subjetividade, ligado apenas ao romantismo e à escrita automática do surrealismo, e ligá-lo também à poesia construída, no caso a de Cabral.
          E o que surge como explicação para tal escolhas na trajetória do poeta é o elemento da melancolia, que não deve ser considerada uma característica romântica e sim da modernidade. Avesso a sentimentalismos, João Cabral é um poeta essencialmente melancólico, mesmo tendo escrito a Drummond numa carta: “Manejar a melancolia e a morbidez é perigoso porque termina sendo criado um gosto por elas”. Num dos encontros com Castello, um Cabral desanimado lhe diz: “Veja que não estou falando de depressão ou mesmo de tristeza. Talvez a palavra correta nem seja angústia, mas seja melancolia”. O sentimento da melancolia – que Cabral não queria transpor para sua obra – o acompanha, do primeiro ao último livro.

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          Lembremos de Freud, em seu “Luto e melancolia”, no qual escreve, em linhas gerais, que o objeto perdido (uma pessoa, uma cidade, um álbum de retratos) pode evocar um sentimento recalcado. A poesia cabralina, sob esse ponto de vista, é uma imagem congelada: sua saudade de Pernambuco, como embaixador, em diversas cidades, é contínua; sua vivência em paisagens espanholas traz a mesma paisagem desolada, árida, do lugar de origem, o engenho familiar, onde, na infância, lia cordéis para empregados, o que fica claro no poema “Descoberta da literatura”:

          No dia-a-dia do engenho,
          toda a semana, durante,
          cochichavam-me em segredo:
          saiu um novo romance.
          E da feira do domingo
          me traziam conspirantes
          para que os lesse e explicasse
          um romance de barbante.
          Sentados na roda morta
          de um carro de boi, sem jante,
          ouviam o folheto guenzo,
          a seu leitor semelhante,
          com as peripécias de espanto
          preditas pelos feirantes.
          Embora as coisas contadas
          e todo o mirabolante,
          em nada ou pouco variassem
          nos crimes, no amor, nos lances
          e soassem como sabidas
          de outros folhetos migrantes,
          a tensão era tão densa,
          subia tão alarmante,
          que o leitor que lia aquilo
          como puro alto-falante,
          e, sem querer, imantara
          todos ali, circustantes,
          receava que confundissem
          o de perto com o distante,
          o ali com o espaço mágico,
          seu franzino com o gigante,
          e que o acabassem tomando
          pelo autor imaginante
          ou tivesse que afrontar
          as brabezas do brigante.
          (E acabaria, não fossem
          contar tudo à Casa-Grande:
          na moita morta do engenho,
          um filho-engenho, perante
          cassacos do eito e de tudo,
          se estava dando ao desplante
          de ler letra analfabeta
          de corumba, no caçanje
          próprio dos cegos de feira,
          muitas vezes meliantes).
 

          Complementa Castello a partir das imagens do poema: “Cabral é, a um só tempo, leitor e professor. Sentados sobre a roda de um carro de boi e cheios de espanto, os trabalhadores desgustam os versos do cordel que o rapaz recita. Sempre os mesmos crimes, histórias de amor, velhas traições, canalhices, aventuras já sabidas mas ainda assim ouvidas com surpresa. (…) Naquele espaço mágico, contemplado com o poder de narrar, Cabral teme pelos efeitos incontroláveis da força retida nos livros. Descobre, então, o poder da ficção e o limite frágil e perigoso que a separa do mundo real”. Seria ajustar muito a vida à obra? Talvez, mas não se for levado em conta que é comum se afirmar que João Cabral não falava de si próprio, de que uma linguagem autônoma falava por ele, em seus poemas, de que era frio, calculista, sem nenhum tipo de emoção, a biografia de Castello, que, como um poema, torna a realidade num acessório para o imaginário da linguagem, é mais do que reveladora. Como escreve Antonio Candido em “Inquietudes na poesia de Drummond”, numa reflexão que pode ser estendida à obra de Cabral, o “eu é uma espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas que o horroriza à medida que o atrai. O constrangimento (que só poderia tê-lo encurralado no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão libertadora, através da matéria indesejada”. (Continua na quinta-feira)

          Por André Dick

          Numa nota de curso no Collège de France, em 1979-1980, Roland Barthes assinala que o poeta Mallarmé “não diz Morte, mas diz Nada” e acrescenta: “ver o papel de Hegel em seu pensamento”. É o que faremos neste breve ensaio. Em carta a Henri Cazalis, de 14 de maio de 1867, o poeta francês Mallarmé escreveu: “Fiz uma descida bastante longa ao Nada para poder falar com certeza”. Resultado disso foi exatamente a reflexão seguinte:

          De resto, confesso, mas somente a ti, que necessito ainda, tão grandes foram as avarias de meu triunfo, fitar-me nesse espelho para pensar e que se ele não estivesse diante da mesa onde escrevo esta carta, eu voltaria a ser o Nada. Equivale a te comunicar que sou agora impessoal e não mais o Stéphane que conheceste, mas uma aptidão que tem o Universo Espiritual de se ver e de se desenvolver através daquilo que fui eu. 

          A impessoalidade é um preceito, como já vimos, da modernidade, mas cabe aqui dizer que ela representa o Universo Espiritual do qual Mallarmé falava, colocando-o como uma peça do Nada. Mallarmé não chegou a conceituar o Nada. No entanto, como observa Hugo Friedrich, em Estrutura da lírica moderna, na obra do poeta francês, “o absoluto mesmo, que assim se chama porque deve ser desvinculado de tempo, lugar e coisa, uma vez consumada a desvinculação, chamar-se-á o Nada; o Ser puro e o Nada puro tornam-se idênticos (como em Hegel)”.
          Para Friedrich, baseado em Hegel, o Nada representa o “aniquilamento do real”, de uma poesia moderna que não tem “fé e tradição alguma”, constituindo-se numa radicalização da “transcendência vazia” que a persegue. O Nada mallarmeano, no entanto, provém das leituras de Hegel; logo, é um diálogo visível da vida com a obra (com o “real”). Quando o poeta estava profundamente doente, numa crise existencial em 1866, recorreu à leitura de Hegel. Teria sido “curado”, segundo Roland Barthes, pela leitura do filósofo, tendo adquirido uma nova fé, “consciente e ateia”.

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          Não por acaso, o Nada, para ele, seria a outra face do Absoluto, uma ausência que se concretiza na palavra. O Nada é o que leva a dizer: “(…) eu criei a minha obra apenas por eliminação (…). A destruição foi a minha Beatriz”. É interessante notar como Mallarmé recorre à figura da amada de Dante para reafirmar sua modernidade: de criar a sua obra não por acréscimo, mas por destruição – sobretudo daquilo que é inacessível ao Ser.
          O crítico italiano Roberto Calasso afirma que a descida de Mallarmé ao Nada não era tão “tórrida e equívoca” como a de Rimbaud, e não era nem mesmo “perceptível do exterior”, sendo mais um “edifício que se dissolve em escombros enquanto a fachada permanece intacta – e só mais tarde as janelas descobrem que são órbitas vazias a enquadrar o céu por trás delas”. De qualquer modo,  o que impressiona é que esse conhecimento do Nada não faz Mallarmé dissociá-lo da vida, como escreve em carta:

          Sinto-me verdadeiramente fragmentado, e dizer que isso acontece porque tenho uma visão muito…una do Universo! Por outro lado, não é possível sentir nenhuma outra unidade a não ser a da própria vida. Num museu de Londres, há ‘o valor de um homem’: um longo esquife, com numerosos compartimentos, onde se encontram amido, fósforo, farinha, garrafas de água, de álcool – e pedaços grandes de gelatina fabricada. Eu sou um homem assim. (Destaque meu)

          Perceba-se, nessa breve reflexão, a consciência crítica de Mallarmé: mesmo tendo uma pretensa “visão una do Universo”, ele se sente “verdadeiramente fragmentado” e não consegue sentir outra unidade a não ser aquela que a própria vida lhe apresenta. O Nada de Mallarmé, apesar de parecer afastado da realidade, está inserido nela. O seu Absoluto, com isso, é mais moderno do que o de Hegel – para quem o Absoluto, e a descoberta da subjetividade, como assinala Jürgen Habermas, ainda significava sobretudo evasão –, embora também se aproprie dele em muitos termos. A reflexão de Mallarmé é extremamente moderna: sentindo-se um homem comum, afetado por uma angústia que o leva, continuamente, a questionar, ele é um poeta “pós-romântico”. Mallarmé não imagina possuir o “divino” dentro de si: ele não se coloca como porta-voz da humanidade. Daí a importância de sua concepção voltada para o Nada, que representa a precariedade do Ser.
          Retomando os conceitos, para Hegel, o Nada simboliza um começo, do qual o que progride deve existir. Como lembra George Steiner, o Anfang segue em direção ao Ser na medida em que supera (aufhebt) ou se distancia do não-ser. Assim, aniquila-se o Nada em qualquer ato iniciatório, o que, ao mesmo tempo, acaba por preservá-lo – por paradoxal que isso seja. O que isso importa na questão mallarmeana?

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          Ingressar no Ser, para Mallarmé, é um passo primeiro ao Nada. Segundo Hegel, os dois se fundem: “O Ser, o imediato indeterminado, é, de fato, o Nada, nem mais nem menos que o Nada”. Para Hegel, o Ser é “a pura indeterminação e o puro vácuo”. Não há nada nele sobre o que se poderia pensar; se fosse pensado, seria um pensamento vazio. O Nada, por sua vez, “é a simples igualdade consigo mesma, o vazio perfeito, a ausência de determinação e conteúdo”. Hegel ainda afirma que “Intuir ou pensar o nada é (existe) em nosso intuir ou pensar; ou antes, é o intuir e o pensar vazios de si mesmos e o mesmo intuir e pensar que o Ser Puro”, constituindo-se na “mesma determinação ou antes carência da determinação e deste modo é, em geral, a mesma coisa que o Ser puro”. Nesse sentido, Giorgio Agamben, em A linguagem e a morte, observa: “A palavra, que deseja colher a Voz como Absoluto, que quer, pois, estar no próprio lugar originário, deve, portanto, ter já saído dali, assumir e reconhecer o nada que existe na voz e, atravessando o tempo e a cisão que ela revela no lugar da linguagem, retornar a si mesma e, absolvendo-se da cisão, estar afinal lá onde, sem o saber, havia já estado no princípio, ou seja, na Voz”. Para Agamben, “A filosofia é esta viagem, este retorno a partir de si para si mesma da palavra humana que, abandonando a própria morada habitual da voz, se abre ao terror do nada e, simultaneamente, à maravilha do ser e, transformada em discurso significante, retorna final, como saber absoluto, à Voz” (Destaques meus). Vejamos o poema de Mallarmé abaixo:

          Tristesse d’été

          Le soleil, sur le sable, ô lutteuse endormie,
          En l’or de tes cheveux chauffe un bain langoureux
          Et, consumant l’encens sur ta joue ennemie,
          Il mêle avec les pleurs un breuvage amoureux.
 
          De ce blanc Flamboiement l’immuable accalmie
          T’a fait dire, attristée, ô mes baisers peureux,
          “Nous ne serons jamais une seule momie
          Sous l’antique désert et les palmiers heureux!”
 
          Mais ta chevelure est une rivière tiède,
          Où noyer sans frissons l’âme qui nous obsède
          Et trouver ce Néant que tu ne connais pas. 
  
          Je goûterai le fard pleuré par tes paupières,
          Pour voir s’il sait donner au coeur que tu frappas
          L’insensibilité de l’azur et des pierres.

          Tristeza de verão

          O sol, sobre a areia, é uma guerreira adormecida
          No ouro de seus cabelos aquece um banho langoroso
          E, consumindo o incenso em sua face inimiga,
          Mistura às lágrimas um líquido amoroso.

          Desta branca fosforescência a imóvel calma
          Te faz dizer, entristecida, ó meus poucos beijos
          “Nós não seremos jamais uma múmia sem alma
          Sob o antigo deserto e as palmeiras sem seixo”

          Mas a tua cabeleira é um riacho de águas intrépidas
          Onde se afoga sem frio a alma que nos obseda
          E descobre o Nada que não conhece mais.

          Vou provar as lágrimas de suas pálpebras
          Para ver se elas concedem ao coração sem paz
          A insensibilidade do azul e das pedras.

          (Trad. André Dick)

          Quando escreve “l’âme qui nous obsède / Et trouver ce Néant que tu ne connais pas”, percebemos que Mallarmé considera que não se conhece mais o Ser quando a alma nos “obseda”. Pode-se entender como uma espécie de neutralidade. Mallarmé toma o Nada, em suma, como a forma ideal, mas uma forma que o Ser, apesar de adentrar, realmente não conhece. E o Ser de Mallarmé não é puro – pelo contrário: ele, reprocessando leituras, é impuro –, o que não impede o Nada de se estabelecer em sua obra. Mesmo que haja o espelho e que ele possa se enxergar (se não fosse ele, afinal, ele “voltaria a ser o Nada”). O esquema ontológico do poeta francês liga o Nada ao logos porque é precário e o conteúdo, no sentido moderno, é indefinido: “o logos é a sede onde o Nada nasce para sua experiência espiritual”. Mas, na análise proposta por Friedrich, o esquema que circunda o Nada sugere um afastamento completo do real, do objeto real à ausência. Se o Nada leva à transcendência vazia, é sob um aspecto do sublime, afinal o Nada “domina e sobrepuja o espírito como um castigo”, para Friedrich – para o qual isso torna-se um castigo, quando é uma atitude consciente.

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          Perceba-se que o Nada, a que Mallarmé se refere como a verdade, ou seja, o “não-ser” é companheiro das “gloriosas mentiras”. O sujeito só pode se integrar ao Nada – que em Mallarmé é o “não-ser”, ao passo que o vazio representa a “falta” – por meio do Absoluto; o Absoluto é o Nada. O Nada guarda uma ligação sobretudo com o budismo, como o próprio Hegel adianta. Mallarmé dizia não conhecer o budismo quando chegou ao conceito do Nada, mas conhecia de fato Hegel. Este dizia: “Nos sistemas orientais, e essencialmente no budismo, o Nada, o vazio, é notoriamente o princípio absoluto”. Para Sidarta, a vida sempre traz sofrimento. Sendo assim, o suicídio, por exemplo, é inútil, pois leva a uma nova reencarnação, a volta ao mundo das dores. Sua pergunta é de que modo se poderia cortar os laços que unem o eu a esse mundo de perpétuo sofrimento. Os laços que unem nosso ser à materialidade, prometendo felicidades nunca atingidas, devem ser atingidos. O “lado de lá” não traz desejos: apenas o infinito e a paz. Tudo isso não se adquire em uma vida, mas em várias. A verdade budista se constrói sobre quatro fatores: 1) Tudo é dor; 2) A dor nasce do desejo; 3) A dor se extingue com a extinção do desejo; e 4) Para obter a cessação do desejo, é preciso seguir o caminho dos oito passos, que fazem atingir o Nirvana: “opiniões corretas, intenções corretas, motivos corretos, palavras corretas, espaço correto, esforço corrreto, pensamento correto, meditação (êxtase) correta”. É preciso para isso um profundo conhecimento de si próprio, para saber em que pontos do eu nos prende ao desejo. A base do budismo é ateia. Para Sidarta, quando as almas transmigram, não existe um eu constante. O eu seria ilusório, havendo apenas uma sucessão de estados diferentes do Ser. Mallarmé equilibra o Nada e Hegel, sobretudo na crise existencial referida anteriormente, pela qual passou em 1866. Como no budismo, Hegel, ao escrever que Ser e Nada são o mesmo, traz a premissa do budismo: “se existo ou não existo, se esta casa existe ou não existe, se estes cem talheres estão ou não estão em meu patrimônio, dá no mesmo”. É a tentativa de constituir uma “quase filosofia” que leva Mallarmé a se considerar, a partir da crise de 1866, como “impessoal” e querer ingressar no Nada, que é o Absoluto precário que procura para sua poesia – ou seja, um Absoluto moderno. Se o espírito de Mallarmé, portanto, não é aquele religioso, em que o sujeito tenta fazer de si mesmo um intermédio para que o divino se manifeste: ele, modernamente, é um espírito construído, pelas ideias, pelas analogias e leituras. Isso fica bastante claro quando fala de Mallarmé, com a mesma percepção de críticos como Marcel Raymond (que, aliás, Alfonso Berardinelli destaca em determinada altura no seu Da prosa à poesia): a de que o poeta é um desumano, à procura do absoluto. Desse modo, seu absoluto não é aquele que enxerga o crítico italiano Berardinelli:

          A linguagem da busca pelo absoluto produz, em Mallarmé, um absoluto da linguagem, uma linguagem-fortaleza, linguagem-prisão, uma turris eburnea. A língua da poesia se especializa. Cria um antimundo. Funciona como uma máquina, procedendo a uma meticulosa abrasão de todo conceito, imagem e valor herdados. O ato poético passa a ser culto e apologia de si mesmo. Desses pressupostos nasce uma obscuridade que poderíamos definir de “sublime niilismo”. 

          Acredita-se que esse “sublime niilismo” não se adequa ao trabalho de Mallarmé por ele ser mais complexo do que este rótulo. No entanto, Berardinelli pretende extinguir a presença do simbolismo por outro motivo (que não o do domínio do acaso): “Simbolismo e hermetismo nascem da emigração dos poetas para as terras do mistério”. Trazendo Novalis e Coleridge como exemplos, Berardinelli revela o erro de equivalê-los, por exemplo, à modernidade de Mallarmé. Mallarmé, por exemplo, não entra em um “reino do impoético” ou faz um mergulho no ignoto. Não há exemplo melhor do que o de Eliot para retomar o Eu Absoluto interessado por se inserir na sociedade e representar o Outro – ao contrário de Mallarmé. O caminho de Eliot seria oposto a uma estética da inspiração, em que o Eu recorre aos seus próprios sentimentos e à representação direta que se faz das imagens do mundo na obra de arte. Qualquer estética que privilegia a inspiração quer ligar a obra de arte a uma realidade anterior, e a descobrir nela, segundo Delfel, as razões e os assuntos tratados por essa obra. Mallarmé quis se anular – logo, se expôs de uma maneira que a poesia moderna pretende fazer. Quando perguntado sobre suas origens por Camille Mauclair, disse: “Nada será dito, porque nada valeria a pena. E eu só existo – e tão pouco – no papel. E este é branco, de preferência”. Talvez ele não fizesse ideia de como existia também fora do papel.