Por André Dick
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Como lembra Giorgio Agamben, em Infância e história, Aristóteles afirmava que o tempo é o “‘número de movimentos conforme o antes e depois’ e sua ‘continuidade é garantida por sua divisão em instantes (tò nyn, o agora) inextensos, análogos ao ponto geométrico (stigmé). O instante, em si, nada mais é do que a continuidade do tempo (synécheia chrónou), um puro limite que […] simultaneamente, divide passado e futuro”. O instante seria, para o filósofo grego, sempre “outro”, “na medida em que divide o tempo ao infinito, e, contudo, sempre o mesmo, na medida em que une o porvir e o passado garantindo a sua continuidade”. Por sua vez, no capítulo “A revolta do futuro”, do livro Os filhos do barro, o crítico e poeta mexicano Octavio Paz recupera a ideia de que, para a tradição ocidental cristã, o presente é infinito. Segundo ele, tal ideia está enraigada em Dante Alighieri, para quem o “presente fixo da eternidade é a plenitude da perfeição”. Isso, no entanto, não esclarece a leitura que podemos fazer desse presente – tampouco que Alighieri é um autor fiel à tradição cristã, pois o seu presente parece ser mais coerente com a “descoberta incessante da linguagem” da qual fala Giorgio Agamben em Infância e história. No entanto, Paz, por meio dessa consideração, chega ao conceito de que a sociedade medieval cristã imaginava o tempo histórico como um “processo infinito, sucessivo e irreversível”. Desse modo, “esgotado o seu tempo (…), reinará um presente eterno”. Ou seja, a história traria uma sucessão de acontecimentos que conduzem a um Apocalipse ou a um fim harmonioso. A modernidade justamente surge como crítica a esta concepção de eternidade cristã, sendo um sinônimo da própria crítica e procurando identificação com a mudança. Se os atos do homem pela visão medieval cristã eram individualizados, dedicados a uma entidade superior, na modernidade este homem se integra à história; constitui-se, assim, progressivamente, a fusão do homem com a história e não com Deus.
No entanto, a crença da modernidade na marcha para o futuro, para a revolução utópica, no entanto, acabaria por desaparecer, aos poucos, à medida que o futuro passou a ser visto como um “depositário do horror”, na perspectiva de um esgotamento de recursos naturais, da contaminação do globo terrestre, de uma bomba atômica. Paz exemplifica essa passagem para a modernidade com o pensamento marxista, que prometeu a dissolução de classes sociais e apostou numa sociedade universal.
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Em “Sobre o conceito de História”, Walter Benjamin, sustentado por uma leitura marxista, afirma que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’” em que vivemos é a “regra geral”. A partir daí, a tarefa humana passa a ser “originar um verdadeiro estado de exceção”, fortalecendo a luta contra o fascismo (cada vez mais forte à época em que Benjamin escreveu seu texto), dos mais oprimidos contra os pretensamente mais fortes, uma mudança que se dá no “agora”, como uma quebra do tempo que se direciona a um fim, numa linha reta. Esta ideia vai ao encontro da concepção social de Marx (quadro acima). Para o filósofo Walter I. Rehfeld (no ensaio “Princípios da formação de instituições religiosas”, do livro Ensaios filosóficos), “no marxismo o proletariado adquire um grande número de atributos, derivados da figura redentora do ‘Messias’, idealizada no Antigo Testamento: A classe eleita que sofre imerecidamente é destinada a introduzir uma nova ordem no mundo, de vencer, para o Bem, a luta apocalíptica entre o Bem e o Mal, e de atingir o fim absoluto da história pela realização da sociedade final sem classes, da sociedade comunista”. Isso porque, como lembra Rehfeld, “não obstante seu ateísmo combativo, a filosofia da história de Marx está profundamente influenciada por categorias de um pensamento escatológico que se evidencia já claramente nos escritos do Antigo Testamento”.
A partir disso, conforme Giorgio Agamben, em Marx, a história não é mais determinada, como em Hegel, pela negação da negação, mas a partir da “praxis”, da atividade concreta como essência e origem do homem. Ou seja, ela não é mais a “alienação do homem”, mas a sua origem e natureza, o “o ato de origem da história, compreendida como o tornar-se natureza, para o homem, da essência humana e o tornar-se homem da natureza”. Para Heidegger, o Ser-aí (Dasein) se fundava na negatividade, na morte. Afirmava que a historiografia marxista ainda era superior a outras existentes. Conforme o filósofo alemão, “a experiência não é mais o instante pontual e inaferrável em fuga ao longo do tempo linear, mas o átimo da decisão em que o Ser-aí experimenta a própria finitude, que a cada momento se estende do nascimento à morte […] e, projetando-se além de si no cuidado, assume livremente como destino a sua historicidade originária”. O ser humano não “cairia” no tempo, mas sim existiria como “temporalização originária”.
Por sua vez, os estóicos adotariam o cairós, “a coincidência brusca […] na qual a decisão colhe a razão e colhe no átimo a própria vida. O tempo infinito e quantificado é assim repentinamente delimitado e presentificado: o cairós concentra em si os vários tempos (‘omnium temporum in unum collatio’) e, nele, o sábio é senhor de si e imperturbável como um deus na eternidade”. Em Infância e história, Agamben irá afirmar que a história não significa a “sujeição do homem ao tempo linear contínuo, mas a sua liberação deste”. Desse modo, o seu tempo “é o cairós em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade”. Consequentemente, explica Agamben, “ao tempo vazio, contínuo e infinito do historicismo vulgar deve-se opor o tempo pleno, descontínuo, finito e completo do prazer, ao tempo cronológico da pseudo-história deve-se opor o tempo cairológico [dos estóicos] da história autêntica”. Embora talvez Agamben não se alinhe com Gianni Vattimo – para quem, em O fim da modernidade, não existe mais a História, e sim várias histórias, contadas das mais diversas formas –, há em ambas as posições a ideia de que o tempo histórico se dissocia da ideia de que ele é contínuo, de um início até um fim. Se Vattimo separa esta ideia da modernidade, situando-o num universo “pós”, Agamben ainda sustenta mais o raciocínio de que há uma verdadeira historicidade, de que o sujeito faz, no agora, a sua história – o que pode ser visto com reserva, à medida que o indivíduo está inserido num determinado sistema e numa história prévios à sua existência, e fazer história não deve ser ligado sempre a fazer uma “revolução”. Além disso, a “revolução” não pode estar ligada a nada previamente existente – ela precisa ser o elemento combativo contra todas as falhas que julga prejudiciais, não podendo estar associada a nada que age dentro do sistema firmado. Ou não? No entanto, essa concepção é comprometida – porque, como subentende Rehfeld, o marxismo, como conceito ideológico, se encerra em si mesmo: ele promete uma revolução quando quem quer fazê-la quer, muitas vezes, apenas a estagnação, que a ordem das coisas permaneça igual para que possa desempenhar, através de conceitos pretensamente sociais e da superestrutura englobando os mais variados campos sob a ótica socioeconômica, o mais puro culto ao capitalismo.
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Portanto, o homem moderno, destaca Agamben (foto abaixo), também está situado entre o “seu ser-no-tempo, como fuga inaferrável dos instantes, e o próprio ser-na-história, entendido como dimensão original do homem”. A duplicidade da concepção moderna de história – como realidade sincrônica e realidade diacrônica, que não coincidem temporalmente – acaba exprimindo a verdadeira impossibilidade do homem, “que se perdeu no tempo, de apoderar-se da própria natureza histórica”.
A partir de imagens e da construção linguística do poema “O infinito”, de Leopardi, por exemplo, Agamben escreve: “A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição” (Grifos meus). Agamben desenha uma convergência entre filosofia e poesia: numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a experiência poética da dicção – com seu trabalho por meio dos schifters da linguagem – coincide com a experiência da linguagem da filosofia. Adverte Agamben que “a poesia – toda poesia – contém, aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte sempre quem a escuta ou repete de que o evento de linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes” (Grifos meus). Esta linguagem que foi e retornará várias vezes é o que faz da poesia o melhor para se entender a história: a poesia não quer fazer História, e sim descobrir o sujeito preso à divisão dos instantes, sempre em fuga, como Aristóteles, e impossibilitado, como diz Agamben, de se apoderar da própria história. Como escreve o filósofo italiano Gianni Vattimo, em O fim da modernidade, “a história dos eventos – políticos, militares, dos grandes movimentos de ideias – é apenas uma história entre outras”, sendo a História muito mais uma “estória”, um “relato”. Esse relato implica uma história “dos modos de vida, que caminha muito mais lentamente e se aproxima quase de uma ‘história natural’ dos fatos humanos”. No mesmo sentido, Antoine Compagnon, em O demônio da teoria, avalia que mesmo “a história dos historiadores não é mais uma nem unificada, mas se compõe de uma multiplicidade de histórias parciais, de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios”, não tendo o “sentido único que as filosofias totalizantes da história lhe atribuíam desde Hegel”. A história, desse modo, passa a ser um “relato que, como tal, põe em cena tanto o presente quanto o passado; seu texto faz parte da literatura”. Desse modo, a “objetividade ou transcendência da história é uma miragem, pois o historiador está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o objeto história. Sem consciência desse engajamento, a história é somente uma produção ideológica” (Grifos meus). A quem interessa essa produção ideológica é uma pergunta ampla demais para o parâmetro literário que se pretende traçar aqui – mas, através dele, pode-se ter um pouco da noção do que ela implica, nos levando, antes de tudo, ao conceito de realidade, nesse caso sob o ângulo poético.
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Na Poética, Aristóteles aponta a diferença entre história e poesia: a primeira trabalha com o que aconteceu; a segunda, com o que poderia ter acontecido. Ao se negar a realidade, e, portanto, a história direta – movimento feito por certo estruturalismo francês –, o referente é produto de uma semiosis, e não um dado pré-existente. A relação lingüística primária não estabelece mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente, o texto e o mundo, mas entre um signo e outro, entre um texto e outro. A realidade torna-se uma ilusão e a literatura não fala de outra coisa senão de literatura. Mas não era muito diferente disso o que Aristóteles abordava em sua mímesis na Poética:
Desde a infância, os homens têm, inscrita em sua natureza, […] uma tendência à mimeishtai [imitar ou representar] – e o homem se distingue dos outros animais porque é naturalmente inclinado à mimeishtai [imitar ou representar] e recorrer à mimésis em seus primeiros aprendizados.
Ou seja, a mímesis quer representar o conhecimento do homem e a maneira como ele percebe o mundo, o expressa através das palavras, e não exatamente o imita. Barthes não discorda dessa colocação: “Não sendo uma cópia do real, a literatura mais verdadeira é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável”. Ou seja, Barthes sabe que existe uma possível cópia do real, mas ele adota a intersecção entre as coisas (do mundo) e as palavras (da linguagem), trabalhando com o conceito de imaginário de Lacan, que constitui exemplarmente o irreal ou o desreal – já que não sabemos do que falamos quando falamos em “realidade” (ou à vida externa), à medida que, contrário ao que Marx e Engels dizem, em A ideologia alemã, não é ela que determina nossa consciência, mas sim nossa consciência, ou melhor, inconsciência (nas palavras de Lacan), que a determina –, construído pelas leituras do autor. Escreveu Aristóteles:
O poeta é um imitador, como o pintor e qualquer outro artista. E imita necessariamente por um dos três modos: as coisas, tal como eram ou como são; tal como os outros dizem que são, ou o que parecem; tal como deveriam ser. Expressa essa coisas por meio de um discurso que consiste de metáforas […].
Sob esse ponto de vista, Aristóteles tem a mesma compreensão que seria, digamos, oficializada por Barthes e pelos estruturalistas: as coisas como eram ou são (as palavras); tal como os outros dizem que são (que constituiriam, no estruturalismo, o intertexto), ou o “o que parecem” (lembre-se do famoso verso “O poeta é um fingidor”, do português Fernando Pessoa); tal como deveriam ser (criação, recriação, intersecção entre o significado e o significante). Onde fica a história? A história se concentra sobretudo nos livros, na linguagem literária que de certo modo a estrutura.
Aristóteles parece privilegiar a história na dicção poética: “Como o poeta deve proporcionar-nos o prazer de sentir compaixão ou temor por meio de uma imitação, é evidente que estas emoções devem ser suscitadas nos ânimos pelos fatos”, isto é, ele constitui um programa definido, no qual o que escapar à representação fiel de um possível sentimento a atingir o leitor (ou espectador) não é aceitável. Ele quer uma emoção suscitada pelos fatos, e estes se referindo a uma história plausível.
É contra essa ideia de sistema proposta pelo mestre grego que se volta Barthes, contra a ideia de que o verossímil e o inverossímil podem ser antecipados ao ato criativo pleno, que, para o francês, se conduz pela inconsciência do imaginário. No entanto, a semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância, apresenta elementos da Poética de Aristóteles. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva, Bakhtin etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopeia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior).
Os dois se dirigem para lados opostos no momento de avaliar o discurso. Pois o conflito entre eles é muito mais no que se refere à forma. Enquanto isso, Barthes trabalha com a ideia de uma escritura poética moderna, que, em O grau zero da escritura, se contrapõe à literatura clássica: uma poética que trabalha com “estações de palavras” e não com discursos da epopeia, narrando ações de heróis e deuses. A poesia clássica investe no discurso; a poesia moderna, o contraria. Assim, a irrealidade é muito mais presente na poesia moderna – e aqui se coloca também o romance moderno, como é o caso de Werther –, que sobrevive mais de leituras do que de experiências vivenciadas, do que na poesia clássica. Se Aristóteles julgava que se o “poema contém impossibilidades, há uma falta”, e se a mímesis é regulada pelo “verossímil e não pelo verdadeiro; pelas normas do espírito, não pelas da realidade fora do poema”, Barthes viria a afirmar não há verossímil ou inverossímil, pois a literatura trata do impossível; e o espírito referido por Aristóteles (e também por Hegel) vira “leitura concreta” (da letra, da página, simbólica) em Barthes.
Os temas são trazidos do que correntemente se chama “realidade” – afinal, a linguagem das coisas também representa essas coisas –, mas esta já se compõe de discurso anterior à sua existência, ou seja, o que há é um embate entre linguagem utilizada no cotidiano, de forma corrente, e linguagem textual, aquela dos livros. Mas ambas voltam a se misturar, pois é difícil diferenciá-las.
Não cremos que Aristóteles pensasse diferente em sua Poética, ao propor a ideia de que devemos retratar bons ou maus sentimentos não da forma como eles são, mas potencializados para que tenham um contorno artístico. Por isso, há o fracasso final da linguagem. É propriamente do real que a poesia deseja fugir, para constituir uma história que se passa apenas na literatura, no impossível da literatura. Disse Barthes em Aula:
Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutamente: o real. O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável – mas somente demonstrável – pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridiomensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz a literatura, […] aquela que representa o desejo do impossível (Grifos meus).
Propriamente, é o real que a poesia quer negar – e o real não é atingível, porque é o impossível, um resíduo tanto do simbólico (os signos que nos constituem) quanto do imaginário (em que se concentra, conforme Lacan (foto abaixo), o inconsciente do indivíduo). Mas Barthes queria, sobretudo, propor não a extinção do real (o que seria incoerente), mas que a realidade da linguagem (em O prazer do texto, ele falaria em “mímesis da linguagem”), a representação que fazemos da imagem, aproxima-se do impossível, do imaginário; é a representação que fazemos através dos discursos – e ela não pode se ligar tão diretamente de uma possível exterioridade; ela passa primeiro pela linguagem. E o ponto da linguagem é o da memória e repetição, como avalia Agamben, mas sem direção, sem rumo, sem presente nem passado. Por isso, não é que, como avalia Slavoj Žižek (em Arriscar o impossível), não encaramos o real porque ele traumatiza: a linguagem é o próprio “real”, e o trauma que temos ao nos deparar com ela é contínuo – desde a infância –, justamente por isso ela é a nossa história.
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É a noção de que há trabalho com linguagem em qualquer discurso (no caso de Aristóteles, na narratologia), de que os seres humanos disfarçam sentimentos através da representação, de que não há nada completamente verossímil quando a realidade vira linguagem, podendo-se acreditar em coisas inacreditáveis inverossímeis – e ainda vê-las como verossímeis – de que Barthes trata.
Sobre o programa de uma revista, pensado em Infância e história, Agamben assinala, o que contribui para o debate da relação entre poesia e história: “Um dos princípios pragmáticos aos quais a revista deverá ater-se, retomando a definição de Vico que inclui entre os filólogos ‘poetas, historiadores, oradores, gramáticos’, será o de considerar exatamente no mesmo plano disciplinas crítico-filológicas e poesia”. Mas não se trata, segundo Agamben, “de conclamar os poetas a fazerem obras de filologia e os filólogos a escreverem poesia, mas de se colocarem ambos em um lugar em que a fratura da palavra que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia torne-se uma experiência consciente e problemática, e não uma canhestra remoção”. Agamben pede que pensemos “não somente em autores como Benjamin ou Poliziano, Calímaco ou Valéry […], mas também naqueles poetas, como Dante e o autor de Zohar, Hölderlin e Kafka, que, em situações culturais diversas, fizeram da defasagem entre e verdade e transmissibilidade a sua experiência central”. Para Agamben, nessa perspectiva, é à tradução, “considerada como auto crítico-poético por excelência, que deverá ser dada uma atenção toda especial”. Utopicamente, Agamben propõe o projeto de uma “disciplina de interdisciplinaridade”, “na qual convirja, com a poesia, todas as ciências humana, e cujo fim seja aquela ‘ciência geral do humano’ que de vários cantos se anuncia como a tarefa cultural da próxima geração”. Como encaixar, no entanto, esse discurso ao contexto histórico que se apresenta, que deglutiu todas as ideias sobre tempo, sobretudo as que se relacionam à modernidade?
Não parece caber, em primeiro lugar, ao poeta ser porta-voz de uma verdade ou de uma revolução. Em O demônio da teoria, por exemplo, em determinada altura, Antoine Compagnon parece não perceber que o mundo – no qual se incluem o real, a sociedade, o sistema, a ideologia, a retórica vazia – existiria muito bem sem a literatura – pois são elementos caros ao comércio, à relação de interesses, de valores concretos e não irreais. A literatura é, como diria Mallarmé, uma “moeda cara” demais para a realidade: não se pode comprá-la – e, assim, é impossível vendê-la, representá-la através de classes baseadas na unidade do lucro. Não precisaríamos de livros para continuar a ter nossa linguagem, no cotidiano, em nossas representações. A linguagem não se refere apenas à literatura; ela, sim, inexiste sem o real. Mas a linguagem da literatura, que não copia a realidade, apenas a expressa (por figuras de linguagem), pode existir sem precisar dar nada em troca.
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Com isso, é importante lembrar o que Barthes (foto abaixo), no seminário de 1979-1980, dizia: que muito frequentemente as grandes obras só têm com a História uma “relação marginal, secundária, indireta, parcelar”. Assim, a literatura, como a poesia, é sustentada por uma “clientela de desclassificados”, de “exilados sociais” que levam a literatura em sua “minguada bagagem”. Se, como escreve Benjamin, o sujeito do conhecimento histórico é a classe “combatente e oprimida”, na modernidade essa classe se mostra entendida justamente porque sabe que a Revolução só pode acontecer no plano das ideias. O poeta moderno, como observa Octavio Paz, vive no “subsolo na história”, sendo um desterrado. Ele, ao mesmo tempo, não tem lugar na sociedade “porque efetivamente não é ‘ninguém’”, ele “não trabalha nem produz”, daí os poemas não valerem nada, como avaliava Mallarmé: “não são produtos suscetíveis de intercâmbio mercantil”, pois o esforço que se dá na criação não pode ser reduzido ao “valor trabalho”. Levando em consideração que a poesia não pode entrar no intercâmbio de bens mercantis, ela não tem valor. Não está de acordo com o que Marx e Engels escrevem no Manifesto comunista: que a burguesia “não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais” e, desse modo, ela teria transformado “em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da ciência”. É estranho Marx colocar o poeta como um profissional, ainda mais eleito pela burguesia, capaz de receber pelo que ganha – o que, hoje e desde sempre, seria incoerente com a realidade. Mas Marx é aquele que destacou o trabalho não pago, ou a “mais-valia”, que não é pago pelo patrão capitalista. Como subentende Marx, a “mais-valia” não é algo imoral, porque é uma realidade do sistema e o seu beneficiário, o capitalista, apenas se esconde atrás desse sistema. A poesia é uma espécie de “mais-valia”, fora do tempo contado da história, o resíduo do real – mas essa “mais-valia”, ao mesmo tempo, é algo central, é aquilo que realmente foge à exploração do dia-a-dia. Afinal, em “Debates da liberdade de imprensa e de comunicação”, o mesmo Marx diz: “O escritor não considera de nenhuma maneira seus trabalhos como meios. São fins em si mesmos; têm tão pouco de meios para ele que sacrifica sua existência pela existência deles quando é necessário ou, em outras palavras, exatamente como o pregador de uma religião adota como princípio ‘Obedecer a Deus mais que ao homem”, embora ele mesmo esteja enquadrado entre o último, com sua necessidade e desejos humanos”.
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O poeta é este indivíduo, com necessidade e desejos humanos. Como disse Roland Barthes, numa das notas de seu curso no Collège de France, há no interior de uma reflexão marxista um grande recalcado: “a vulgata sempre põe em conflito e Burguesia e o Proletariado; o Recalcado é a Pequena Burguesia”. Barthes se pergunta: “O que ela faz? Como, sobre o quê ela age?”. Barthes lembra: “Marx tinha designado seu papel de pivô, com relação à Revolução de 1848, explicando que a Revolução, triunfante na fase de aliança da Pequena Burguesia com o Proletariado (março), capotou quando essa Pequena Burguesia virou casaca, e se aliou com a Burguesia (junho). A desunião do Proletariado e da Pequena Burguesia (Partido Socialista) custa sempre à esquerda sua vitória”. A Pequena Burguesia quer se manter no meio termo, entre o Proletariado e a Burguesia, mas sempre escolhe esta última – porque, na realidade, não quer nunca ser Proletariado; quer fazer apenas uma pretensa história ideológica, que acaba se perdendo no próprio discurso vazio. O poeta é alguém fora disso; é alguém, como diria Maurice Blanchot, sem discurso, situado no impossível – por isso o incômodo que oferece. É o oposto do que Marx e Engels escrevem em A ideologia alemã: que “A revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria”. Pelo contrário, a verdadeira força motriz desses campos é a crítica, seja qual for a situação. O poeta não está a serviço de nenhum discurso e, por meio de seu trabalho, entende que não é a realidade que condiciona a consciência, e sim que a inconsciência imaginária é o que concretiza o resíduo que há de real. Como afirma Barthes, toda escrita deixa de ser revolucionária – pois toda revolução tende a querer finalizar o movimento da história. Sabendo que história é “memória e repetição”, o poeta busca assinalar as quebras dessa repetição.
Por que isso acontece? Porque a poesia não tem poder. E com isso vem a incapacidade do homem de se apropriar do momento histórico. Por isso, quando Barthes afirma, na sua aula inaugural no Collège de France, que “mudar a língua”, de Mallarmé, equivale a “mudar o mundo”, de Marx, ele parece se equivocar, pois, exatamente por ser a “figura exata da modernidade”, o poeta francês desconfia da revolução porque desconfia de si mesmo – o bastante para que não faça a revolução. Seu “mudar a língua” é mudar, sobretudo, a si mesmo, seu imaginário, impossível, irreal porque apartado da história, pela própria vontade, de qualquer modo. Ele entende que a História não passa de apenas uma versão de algo que não precisa ser necessariamente história, mas fantasia. Resguardado no “subsolo da história”, estão apenas o poeta e sua linguagem. Isso sempre pouco significa para quem acredita ainda na plena revolução do mundo, investida de um poder pretensamente profético (colocando-se no lugar de um Messias verdadeiro), mas que não se corresponde com aqueles em relação aos quais se sente superior, ao valorizar o materialismo histórico e o intercâmbio mercantil como formas de religião. Por isso, chega a ser ingênuo pensar como Slavoj Žižek, quando se pergunta: “Como funciona o real?” e responde: “Tomemos o exemplo muito simples da situação histórica em que surge na oportunidade de dar início a uma revolução. Digamos que essa oportunidade seja perdida e que a história siga um mundo diferente, menos radical. O Real, aqui, é exatamente essa oportunidade perdida: o trauma da traição, do que poderia ter sido”. Žižek imagina que haja um Real que possa ser revolucionado – quando exatamente não pensar numa finalização da história, e sim na sua compreensão, para entender os acertos e erros, poderia ser um ato revolucionário. Compreender, no caso, por que, depois de os oprimidos lutarem contra o fascismo da opinião única, ou o stalinismo que perseguiu tantos poetas na Rússia – como se refere Barthes –, continua sendo uma tática atual de quem conta a história isolar a poesia, capaz de notar a precariedade de qualquer discurso, do restante. O discurso de defender os oprimidos se esconde, às vezes – e isso é o que mais espanta –, por trás de um discurso opressor. A poesia, sob esse ponto de vista, poderia instituir a verdadeira revolução histórica porque não acredita em revolução (nem evolução) histórica e não acredita numa saída radical – sendo ela a radicalidade seminal, tendo consciência do alcance que atinge, sem interessar ao sistema financeiro, ou querer um poder que não possui. Pode-se dizer que isso se relaciona com o já levou Agamben a dizer que há um encanto com o capitalismo. A partir daí, pode-se dizer que há, muitas vezes, um encanto pelo capitalismo disfarçado de revolução socialista, porque o fim é o mesmo: a circulação pelo poder. O poeta acaba por revolucionar a si mesmo, em vez de querer transformar o mundo, com o objetivo de, no fundo, deixá-lo igual. E quando o profeta pequeno burguês souber que não entrou na história ideológica que ele construiu para si mesmo e para os outros? O que ele poderá fazer? A essa pergunta, deixa-se a resposta num impasse – localizado naquele que para sempre não sairá da retórica vazia.