Arquivos da categoria ‘Invenção’

          Por André Dick

          1

           Como lembra Giorgio Agamben, em Infância e história, Aristóteles afirmava que o tempo é o “‘número de movimentos conforme o antes e depois’ e sua ‘continuidade é garantida por sua divisão em instantes (tò nyn, o agora) inextensos, análogos ao ponto geométrico (stigmé). O instante, em si, nada mais é do que a continuidade do tempo (synécheia chrónou), um puro limite que […] simultaneamente, divide passado e futuro”. O instante seria, para o filósofo grego, sempre “outro”, “na medida em que divide o tempo ao infinito, e, contudo, sempre o mesmo, na medida em que une o porvir e o passado garantindo a sua continuidade”. Por sua vez, no capítulo “A revolta do futuro”, do livro Os filhos do barro, o crítico e poeta mexicano Octavio Paz recupera a ideia de que, para a tradição ocidental cristã, o presente é infinito. Segundo ele, tal ideia está enraigada em Dante Alighieri, para quem o “presente fixo da eternidade é a plenitude da perfeição”. Isso, no entanto, não esclarece a leitura que podemos fazer desse presente – tampouco que Alighieri é um autor fiel à tradição cristã, pois o seu presente parece ser mais coerente com a “descoberta incessante da linguagem” da qual fala Giorgio Agamben em Infância e história. No entanto, Paz, por meio dessa consideração, chega ao conceito de que a sociedade medieval cristã imaginava o tempo histórico como um “processo infinito, sucessivo e irreversível”. Desse modo, “esgotado o seu tempo (…), reinará um presente eterno”. Ou seja, a história traria uma sucessão de acontecimentos que conduzem a um Apocalipse ou a um fim harmonioso. A modernidade justamente surge como crítica a esta concepção de eternidade cristã, sendo um sinônimo da própria crítica e procurando identificação com a mudança. Se os atos do homem pela visão medieval cristã eram individualizados, dedicados a uma entidade superior, na modernidade este homem se integra à história; constitui-se, assim, progressivamente, a fusão do homem com a história e não com Deus.
          No entanto, a crença da modernidade na marcha para o futuro, para a revolução utópica, no entanto, acabaria por desaparecer, aos poucos, à medida que o futuro passou a ser visto como um “depositário do horror”, na perspectiva de um esgotamento de recursos naturais, da contaminação do globo terrestre, de uma bomba atômica. Paz exemplifica essa passagem para a modernidade com o pensamento marxista, que prometeu a dissolução de classes sociais e apostou numa sociedade universal.

PD*26555755

           2

           Em “Sobre o conceito de História”, Walter Benjamin, sustentado por uma leitura marxista, afirma que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’” em que vivemos é a “regra geral”. A partir daí, a tarefa humana passa a ser “originar um verdadeiro estado de exceção”, fortalecendo a luta contra o fascismo (cada vez mais forte à época em que Benjamin escreveu seu texto), dos mais oprimidos contra os pretensamente mais fortes, uma mudança que se dá no “agora”, como uma quebra do tempo que se direciona a um fim, numa linha reta. Esta ideia vai ao encontro da concepção social de Marx (quadro acima). Para o filósofo Walter I. Rehfeld (no ensaio “Princípios da formação de instituições religiosas”, do livro Ensaios filosóficos), “no marxismo o proletariado adquire um grande número de atributos, derivados da figura redentora do ‘Messias’, idealizada no Antigo Testamento: A classe eleita que sofre imerecidamente é destinada a introduzir uma nova ordem no mundo, de vencer, para o Bem, a luta apocalíptica entre o Bem e o Mal, e de atingir o fim absoluto da história pela realização da sociedade final sem classes, da sociedade comunista”. Isso porque, como lembra Rehfeld, “não obstante seu ateísmo combativo, a filosofia da história de Marx está profundamente influenciada por categorias de um pensamento escatológico que se evidencia já claramente nos escritos do Antigo Testamento”.
          A partir disso, conforme Giorgio Agamben, em Marx, a história não é mais determinada, como em Hegel, pela negação da negação, mas a partir da “praxis”, da atividade concreta como essência e origem do homem. Ou seja, ela não é mais a “alienação do homem”, mas a sua origem e natureza, o “o ato de origem da história, compreendida como o tornar-se natureza, para o homem, da essência humana e o tornar-se homem da natureza”. Para Heidegger, o Ser-aí (Dasein) se fundava na negatividade, na morte. Afirmava que a historiografia marxista ainda era superior a outras existentes. Conforme o filósofo alemão, “a experiência não é mais o instante pontual e inaferrável em fuga ao longo do tempo linear, mas o átimo da decisão em que o Ser-aí experimenta a própria finitude, que a cada momento se estende do nascimento à morte […] e, projetando-se além de si no cuidado, assume livremente como destino a sua historicidade originária”. O ser humano não “cairia” no tempo, mas sim existiria como “temporalização originária”.
          Por sua vez, os estóicos adotariam o cairós, “a coincidência brusca […] na qual a decisão colhe a razão e colhe no átimo a própria vida. O tempo infinito e quantificado é assim repentinamente delimitado e presentificado: o cairós concentra em si os vários tempos (‘omnium temporum in unum collatio’) e, nele, o sábio é senhor de si e imperturbável como um deus na eternidade”. Em Infância e história, Agamben irá afirmar que a história não significa a “sujeição do homem ao tempo linear contínuo, mas a sua liberação deste”. Desse modo, o seu tempo “é o cairós em que a iniciativa do homem colhe a oportunidade favorável e decide no átimo a própria liberdade”. Consequentemente, explica Agamben, “ao tempo vazio, contínuo e infinito do historicismo vulgar deve-se opor o tempo pleno, descontínuo, finito e completo do prazer, ao tempo cronológico da pseudo-história deve-se opor o tempo cairológico [dos estóicos] da história autêntica”. Embora talvez Agamben não se alinhe com Gianni Vattimo – para quem, em O fim da modernidade, não existe mais a História, e sim várias histórias, contadas das mais diversas formas –, há em ambas as posições a ideia de que o tempo histórico se dissocia da ideia de que ele é contínuo, de um início até um fim. Se Vattimo separa esta ideia da modernidade, situando-o num universo “pós”, Agamben ainda sustenta mais o raciocínio de que há uma verdadeira historicidade, de que o sujeito faz, no agora, a sua história – o que pode ser visto com reserva, à medida que o indivíduo está inserido num determinado sistema e numa história prévios à sua existência, e fazer história não deve ser ligado sempre a fazer uma “revolução”. Além disso, a “revolução” não pode estar ligada a nada previamente existente – ela precisa ser o elemento combativo contra todas as falhas que julga prejudiciais, não podendo estar associada a nada que age dentro do sistema firmado. Ou não? No entanto, essa concepção é comprometida – porque, como subentende Rehfeld, o marxismo, como conceito ideológico, se encerra em si mesmo: ele promete uma revolução quando quem quer fazê-la quer, muitas vezes, apenas a estagnação, que a ordem das coisas permaneça igual para que possa desempenhar, através de conceitos pretensamente sociais e da superestrutura englobando os mais variados campos sob a ótica socioeconômica, o mais puro culto ao capitalismo.

          3

          Portanto, o homem moderno, destaca Agamben (foto abaixo), também está situado entre o “seu ser-no-tempo, como fuga inaferrável dos instantes, e o próprio ser-na-história, entendido como dimensão original do homem”. A duplicidade da concepção moderna de história – como realidade sincrônica e realidade diacrônica, que não coincidem temporalmente – acaba exprimindo a verdadeira impossibilidade do homem, “que se perdeu no tempo, de apoderar-se da própria natureza histórica”.
          A partir de imagens e da construção linguística do poema “O infinito”, de Leopardi, por exemplo, Agamben escreve: “A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição” (Grifos meus). Agamben desenha uma convergência entre filosofia e poesia: numa espécie de hermenêutica, o filósofo avalia que a experiência poética da dicção – com seu trabalho por meio dos schifters da linguagem – coincide com a experiência da linguagem da filosofia. Adverte Agamben que “a poesia – toda poesia – contém, aliás, com respeito a esta, um elemento que já adverte sempre quem a escuta ou repete de que o evento de linguagem em questão já foi e retornará infinitas vezes” (Grifos meus). Esta linguagem que foi e retornará várias vezes é o que faz da poesia o melhor para se entender a história: a poesia não quer fazer História, e sim descobrir o sujeito preso à divisão dos instantes, sempre em fuga, como Aristóteles, e impossibilitado, como diz Agamben, de se apoderar da própria história. Como escreve o filósofo italiano Gianni Vattimo, em O fim da modernidade, “a história dos eventos – políticos, militares, dos grandes movimentos de ideias – é apenas uma história entre outras”, sendo a História muito mais uma “estória”, um “relato”. Esse relato implica uma história “dos modos de vida, que caminha muito mais lentamente e se aproxima quase de uma ‘história natural’ dos fatos humanos”. No mesmo sentido, Antoine Compagnon, em O demônio da teoria, avalia que mesmo “a história dos historiadores não é mais uma nem unificada, mas se compõe de uma multiplicidade de histórias parciais, de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios”, não tendo o “sentido único que as filosofias totalizantes da história lhe atribuíam desde Hegel”. A história, desse modo, passa a ser um “relato que, como tal, põe em cena tanto o presente quanto o passado; seu texto faz parte da literatura”. Desse modo, a “objetividade ou transcendência da história é uma miragem, pois o historiador está engajado nos discursos através dos quais ele constrói o objeto história. Sem consciência desse engajamento, a história é somente uma produção ideológica” (Grifos meus). A quem interessa essa produção ideológica é uma pergunta ampla demais para o parâmetro literário que se pretende traçar aqui – mas, através dele, pode-se ter um pouco da noção do que ela implica, nos levando, antes de tudo, ao conceito de realidade, nesse caso sob o ângulo poético.

       agamben-perfil

          4

          Na Poética, Aristóteles aponta a diferença entre história e poesia: a primeira trabalha com o que aconteceu; a segunda, com o que poderia ter acontecido. Ao se negar a realidade, e, portanto, a história direta – movimento feito por certo estruturalismo francês –, o referente é produto de uma semiosis, e não um dado pré-existente. A relação lingüística primária não estabelece mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente, o texto e o mundo, mas entre um signo e outro, entre um texto e outro. A realidade torna-se uma ilusão e a literatura não fala de outra coisa senão de literatura. Mas não era muito diferente disso o que Aristóteles abordava em sua mímesis na Poética:

          Desde a infância, os homens têm, inscrita em sua natureza, […] uma tendência à mimeishtai [imitar ou representar] – e o homem se distingue dos outros animais porque é naturalmente inclinado à mimeishtai [imitar ou representar] e recorrer à mimésis em seus primeiros aprendizados.

          Ou seja, a mímesis quer representar o conhecimento do homem e a maneira como ele percebe o mundo, o expressa através das palavras, e não exatamente o imita. Barthes não discorda dessa colocação: “Não sendo uma cópia do real, a literatura mais verdadeira é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável”. Ou seja, Barthes sabe que existe uma possível cópia do real, mas ele adota a intersecção entre as coisas (do mundo) e as palavras (da linguagem), trabalhando com o conceito de imaginário de Lacan, que constitui exemplarmente o irreal ou o desreal – já que não sabemos do que falamos quando falamos em “realidade” (ou à vida externa), à medida que, contrário ao que Marx e Engels dizem, em A ideologia alemã, não é ela que determina nossa consciência, mas sim nossa consciência, ou melhor, inconsciência (nas palavras de Lacan), que a determina –, construído pelas leituras do autor. Escreveu Aristóteles:

          O poeta é um imitador, como o pintor e qualquer outro artista. E imita necessariamente por um dos três modos: as coisas, tal como eram ou como são; tal como os outros dizem que são, ou o que parecem; tal como deveriam ser. Expressa essa coisas por meio de um discurso que consiste de metáforas […].

          Sob esse ponto de vista, Aristóteles tem a mesma compreensão que seria, digamos, oficializada por Barthes e pelos estruturalistas: as coisas como eram ou são (as palavras); tal como os outros dizem que são (que constituiriam, no estruturalismo, o intertexto), ou o “o que parecem” (lembre-se do famoso verso “O poeta é um fingidor”, do português Fernando Pessoa); tal como deveriam ser (criação, recriação, intersecção entre o significado e o significante). Onde fica a história? A história se concentra sobretudo nos livros, na linguagem literária que de certo modo a estrutura.
          Aristóteles parece privilegiar a história na dicção poética: “Como o poeta deve proporcionar-nos o prazer de sentir compaixão ou temor por meio de uma imitação, é evidente que estas emoções devem ser suscitadas nos ânimos pelos fatos”, isto é, ele constitui um programa definido, no qual o que escapar à representação fiel de um possível sentimento a atingir o leitor (ou espectador) não é aceitável. Ele quer uma emoção suscitada pelos fatos, e estes se referindo a uma história plausível.
           É contra essa ideia de sistema proposta pelo mestre grego que se volta Barthes, contra a ideia de que o verossímil e o inverossímil podem ser antecipados ao ato criativo pleno, que, para o francês, se conduz pela inconsciência do imaginário. No entanto, a semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância, apresenta elementos da Poética de Aristóteles. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva, Bakhtin etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopeia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior).
          Os dois se dirigem para lados opostos no momento de avaliar o discurso. Pois o conflito entre eles é muito mais no que se refere à forma. Enquanto isso, Barthes trabalha com a ideia de uma escritura poética moderna, que, em O grau zero da escritura, se contrapõe à literatura clássica: uma poética que trabalha com “estações de palavras” e não com discursos da epopeia, narrando ações de heróis e deuses. A poesia clássica investe no discurso; a poesia moderna, o contraria. Assim, a irrealidade é muito mais presente na poesia moderna – e aqui se coloca também o romance moderno, como é o caso de Werther –, que sobrevive mais de leituras do que de experiências vivenciadas, do que na poesia clássica. Se Aristóteles julgava que se o “poema contém impossibilidades, há uma falta”, e se a mímesis é regulada pelo “verossímil e não pelo verdadeiro; pelas normas do espírito, não pelas da realidade fora do poema”, Barthes viria a afirmar não há verossímil ou inverossímil, pois a literatura trata do impossível; e o espírito referido por Aristóteles (e também por Hegel) vira “leitura concreta” (da letra, da página, simbólica) em Barthes.
          Os temas são trazidos do que correntemente se chama “realidade” – afinal, a linguagem das coisas também representa essas coisas –, mas esta já se compõe de discurso anterior à sua existência, ou seja, o que há é um embate entre linguagem utilizada no cotidiano, de forma corrente, e linguagem textual, aquela dos livros. Mas ambas voltam a se misturar, pois é difícil diferenciá-las.
          Não cremos que Aristóteles pensasse diferente em sua Poética, ao propor a ideia de que devemos retratar bons ou maus sentimentos não da forma como eles são, mas potencializados para que tenham um contorno artístico. Por isso, há o fracasso final da linguagem. É propriamente do real que a poesia deseja fugir, para constituir uma história que se passa apenas na literatura, no impossível da literatura. Disse Barthes em Aula:

          Desde os tempos antigos até as tentativas de vanguarda, a literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê? Direi brutamente: o real. O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável – mas somente demonstrável – pode ser dito de vários modos: quer o definamos, com Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridiomensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz a literatura, […] aquela que representa o desejo do impossível (Grifos meus).

          Propriamente, é o real que a poesia quer negar – e o real não é atingível, porque é o impossível, um resíduo tanto do simbólico (os signos que nos constituem) quanto do imaginário (em que se concentra, conforme Lacan (foto abaixo), o inconsciente do indivíduo). Mas Barthes queria, sobretudo, propor não a extinção do real (o que seria incoerente), mas que a realidade da linguagem (em O prazer do texto, ele falaria em “mímesis da linguagem”), a representação que fazemos da imagem, aproxima-se do impossível, do imaginário; é a representação que fazemos através dos discursos – e ela não pode se ligar tão diretamente de uma possível exterioridade; ela passa primeiro pela linguagem. E o ponto da linguagem é o da memória e repetição, como avalia Agamben, mas sem direção, sem rumo, sem presente nem passado. Por isso, não é que, como avalia Slavoj Žižek (em Arriscar o impossível), não encaramos o real porque ele traumatiza: a linguagem é o próprio “real”, e o trauma que temos ao nos deparar com ela é contínuo – desde a infância –, justamente por isso ela é a nossa história.

                              jacques_lacan_1901-1981

          5

          É a noção de que há trabalho com linguagem em qualquer discurso (no caso de Aristóteles, na narratologia), de que os seres humanos disfarçam sentimentos através da representação, de que não há nada completamente verossímil quando a realidade vira linguagem, podendo-se acreditar em coisas inacreditáveis inverossímeis – e ainda vê-las como verossímeis – de que Barthes trata.
          Sobre o programa de uma revista, pensado em Infância e história, Agamben  assinala, o que contribui para o debate da relação entre poesia e história: “Um dos princípios pragmáticos aos quais a revista deverá ater-se, retomando a definição de Vico que inclui entre os filólogos ‘poetas, historiadores, oradores, gramáticos’, será o de considerar exatamente no mesmo plano disciplinas crítico-filológicas e poesia”. Mas não se trata, segundo Agamben, “de conclamar os poetas a fazerem obras de filologia e os filólogos a escreverem poesia, mas de se colocarem ambos em um lugar em que a fratura da palavra que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia torne-se uma experiência consciente e problemática, e não uma canhestra remoção”. Agamben pede que pensemos “não somente em autores como Benjamin ou Poliziano, Calímaco ou Valéry […], mas também naqueles poetas, como Dante e o autor de Zohar, Hölderlin e Kafka, que, em situações culturais diversas, fizeram da defasagem entre e verdade e transmissibilidade a sua experiência central”. Para Agamben, nessa perspectiva, é à tradução, “considerada como auto crítico-poético por excelência, que deverá ser dada uma atenção toda especial”. Utopicamente, Agamben propõe o projeto de uma “disciplina de interdisciplinaridade”, “na qual convirja, com a poesia, todas as ciências humana, e cujo fim seja aquela ‘ciência geral do humano’ que de vários cantos se anuncia como a tarefa cultural da próxima geração”. Como encaixar, no entanto, esse discurso ao contexto histórico que se apresenta, que deglutiu todas as ideias sobre tempo, sobretudo as que se relacionam à modernidade?
          Não parece caber, em primeiro lugar, ao poeta ser porta-voz de uma verdade ou de uma revolução. Em O demônio da teoria, por exemplo, em determinada altura, Antoine Compagnon parece não perceber que o mundo – no qual se incluem o real, a sociedade, o sistema, a ideologia, a retórica vazia – existiria muito bem sem a literatura – pois são elementos caros ao comércio, à relação de interesses, de valores concretos e não irreais. A literatura é, como diria Mallarmé, uma “moeda cara” demais para a realidade: não se pode comprá-la – e, assim, é impossível vendê-la, representá-la através de classes baseadas na unidade do lucro. Não precisaríamos de livros para continuar a ter nossa linguagem, no cotidiano, em nossas representações. A linguagem não se refere apenas à literatura; ela, sim, inexiste sem o real. Mas a linguagem da literatura, que não copia a realidade, apenas a expressa (por figuras de linguagem), pode existir sem precisar dar nada em troca.

          6

          Com isso, é importante lembrar o que Barthes (foto abaixo), no seminário de 1979-1980, dizia: que muito frequentemente as grandes obras só têm com a História uma “relação marginal, secundária, indireta, parcelar”. Assim, a literatura, como a poesia, é sustentada por uma “clientela de desclassificados”, de “exilados sociais” que levam a literatura em sua “minguada bagagem”. Se, como escreve Benjamin, o sujeito do conhecimento histórico é a classe “combatente e oprimida”, na modernidade essa classe se mostra entendida justamente porque sabe que a Revolução só pode acontecer no plano das ideias. O poeta moderno, como observa Octavio Paz, vive no “subsolo na história”, sendo um desterrado. Ele, ao mesmo tempo, não tem lugar na sociedade “porque efetivamente não é ‘ninguém’”, ele “não trabalha nem produz”, daí os poemas não valerem nada, como avaliava Mallarmé: “não são produtos suscetíveis de intercâmbio mercantil”, pois o esforço que se dá na criação não pode ser reduzido ao “valor trabalho”. Levando em consideração que a poesia não pode entrar no intercâmbio de bens mercantis, ela não tem valor. Não está de acordo com o que Marx e Engels escrevem no Manifesto comunista: que a burguesia “não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais” e, desse modo, ela teria transformado “em seus trabalhadores assalariados o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da ciência”. É estranho Marx colocar o poeta como um profissional, ainda mais eleito pela burguesia, capaz de receber pelo que ganha – o que, hoje e desde sempre, seria incoerente com a realidade. Mas Marx é aquele que destacou o trabalho não pago, ou a “mais-valia”, que não é pago pelo patrão capitalista. Como subentende Marx, a “mais-valia” não é algo imoral, porque é uma realidade do sistema e o seu beneficiário, o capitalista, apenas se esconde atrás desse sistema. A poesia é uma espécie de “mais-valia”, fora do tempo contado da história, o resíduo do real – mas essa “mais-valia”, ao mesmo tempo, é algo central, é aquilo que realmente foge à exploração do dia-a-dia. Afinal, em “Debates da liberdade de imprensa e de comunicação”, o mesmo Marx diz: “O escritor não considera de nenhuma maneira seus trabalhos como meios. São fins em si mesmos; têm tão pouco de meios para ele que sacrifica sua existência pela existência deles quando é necessário ou, em outras palavras, exatamente como o pregador de uma religião adota como princípio ‘Obedecer a Deus mais que ao homem”, embora ele mesmo esteja enquadrado entre o último, com sua necessidade e desejos humanos”.

         barthes_roland4

          7

          O poeta é este indivíduo, com necessidade e desejos humanos. Como disse Roland Barthes, numa das notas de seu curso no Collège de France, há no interior de uma reflexão marxista um grande recalcado: “a vulgata sempre põe em conflito e Burguesia e o Proletariado; o Recalcado é a Pequena Burguesia”. Barthes se pergunta: “O que ela faz? Como, sobre o quê ela age?”. Barthes lembra: “Marx tinha designado seu papel de pivô, com relação à Revolução de 1848, explicando que a Revolução, triunfante na fase de aliança da Pequena Burguesia com o Proletariado (março), capotou quando essa Pequena Burguesia virou casaca, e se aliou com a Burguesia (junho). A desunião do Proletariado e da Pequena Burguesia (Partido Socialista) custa sempre à esquerda sua vitória”. A Pequena Burguesia quer se manter no meio termo, entre o Proletariado e a Burguesia, mas sempre escolhe esta última – porque, na realidade, não quer nunca ser Proletariado; quer fazer apenas uma pretensa história ideológica, que acaba se perdendo no próprio discurso vazio. O poeta é alguém fora disso; é alguém, como diria Maurice Blanchot, sem discurso, situado no impossível – por isso o incômodo que oferece. É o oposto do que Marx e Engels escrevem em A ideologia alemã: que “A revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria”. Pelo contrário, a verdadeira força motriz desses campos é a crítica, seja qual for a situação. O poeta não está a serviço de nenhum discurso e, por meio de seu trabalho, entende que não é a realidade que condiciona a consciência, e sim que a inconsciência imaginária é o que concretiza o resíduo que há de real. Como afirma Barthes, toda escrita deixa de ser revolucionária – pois toda revolução tende a querer finalizar o movimento da história. Sabendo que história é “memória e repetição”, o poeta busca assinalar as quebras dessa repetição.
          Por que isso acontece? Porque a poesia não tem poder. E com isso vem a incapacidade do homem de se apropriar do momento histórico. Por isso, quando Barthes afirma, na sua aula inaugural no Collège de France, que “mudar a língua”, de Mallarmé, equivale a “mudar o mundo”, de Marx, ele parece se equivocar, pois, exatamente por ser a “figura exata da modernidade”, o poeta francês desconfia da revolução porque desconfia de si mesmo – o bastante para que não faça a revolução. Seu “mudar a língua” é mudar, sobretudo, a si mesmo, seu imaginário, impossível, irreal porque apartado da história, pela própria vontade, de qualquer modo. Ele entende que a História não passa de apenas uma versão de algo que não precisa ser necessariamente história, mas fantasia. Resguardado no “subsolo da história”, estão apenas o poeta e sua linguagem. Isso sempre pouco significa para quem acredita ainda na plena revolução do mundo, investida de um poder pretensamente profético (colocando-se no lugar de um Messias verdadeiro), mas que não se corresponde com aqueles em relação aos quais se sente superior, ao valorizar o materialismo histórico e o intercâmbio mercantil como formas de religião. Por isso, chega a ser ingênuo pensar como Slavoj Žižek, quando se pergunta: “Como funciona o real?” e responde: “Tomemos o exemplo muito simples da situação histórica em que surge na oportunidade de dar início a uma revolução. Digamos que essa oportunidade seja perdida e que a história siga um mundo diferente, menos radical. O Real, aqui, é exatamente essa oportunidade perdida: o trauma da traição, do que poderia ter sido”.  Žižek imagina que haja um Real que possa ser revolucionado – quando exatamente não pensar numa finalização da história, e sim na sua compreensão, para entender os acertos e erros, poderia ser um ato revolucionário. Compreender, no caso, por que, depois de os oprimidos lutarem contra o fascismo da opinião única, ou o stalinismo que perseguiu tantos poetas na Rússia – como se refere Barthes –, continua sendo uma tática atual de quem conta a história isolar a poesia, capaz de notar a precariedade de qualquer discurso, do restante. O discurso de defender os oprimidos se esconde, às vezes – e isso é o que mais espanta –, por trás de um discurso opressor. A poesia, sob esse ponto de vista, poderia instituir a verdadeira revolução histórica porque não acredita em revolução (nem evolução) histórica e não acredita numa saída radical – sendo ela a radicalidade seminal, tendo consciência do alcance que atinge, sem interessar ao sistema financeiro, ou querer um poder que não possui. Pode-se dizer que isso se relaciona com o já levou Agamben a dizer que há um encanto com o capitalismo. A partir daí, pode-se dizer que há, muitas vezes, um encanto pelo capitalismo disfarçado de revolução socialista, porque o fim é o mesmo: a circulação pelo poder. O poeta acaba por revolucionar a si mesmo, em vez de querer transformar o mundo, com o objetivo de, no fundo, deixá-lo igual. E quando o profeta pequeno burguês souber que não entrou na história ideológica que ele construiu para si mesmo e para os outros? O que ele poderá fazer? A essa pergunta, deixa-se a resposta num impasse – localizado naquele que para sempre não sairá da retórica vazia.

          Por André Dick

          O professor João Adolfo Hansen, mestre e doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo (USP), onde leciona, possui diversos livros publicados, entre os quais citamos A sátira e o engenho (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), O o: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas (São Paulo: Hedra, 2000) e a obra por ele organizada Antônio Vieira. Cartas do Brasil (São Paulo: Hedra, 2003). Nesta entrevista concedida ao Invenção, Hansen fala sobre seu livro Alegoria: construção e interpretação da metáfora (São Paulo: Hedra; Campinas: Unicamp, 2006) e de seus demais projetos. Trata-se de um dos críticos literários mais instigantes da atualidade, capaz de fazer análises instigantes sobre autores como Guimarães Rosa, Antônio Vieira, Gregório de Matos, Dante Alighieri, João Cabral de Melo Neto e Mallarmé.

       joao-adolfo-hansen

Invenção Em seu livro sobre a alegoria, o senhor faz a diferenciação entre a alegoria dos poetas e a dos teólogos. Poderia falar sobre quais seriam as características de cada uma?

João Adolfo Hansen – A chamada “alegoria dos poetas” é uma técnica verbal usada desde os gregos antigos. Corresponde ao procedimento retórico de substituir o sentido próprio dos discursos pelo sentido figurado, ou seja, substituir palavras de sentido próprio por metáforas que, por serem continuadas, constituem a alegoria. Como técnica retórica, é um procedimento construtivo, próprio da elocução.

Quanto à “alegoria dos teólogos”, é um método cristão, hermenêutico ou interpretativo, inventado pelos Padres da Igreja no início do Cristianismo e retomado por teólogos escolásticos. Pressupondo que Deus existe e que é eterno e atual em todos os tempos históricos, o método estabelece relação de concordância entre homens, coisas e eventos do Velho Testamento e do Novo, demonstrando que aquilo que é latente como um anúncio profético, no Velho, fica patente como uma realização no Novo. No caso, os teólogos não interpretam as palavras dos textos bíblicos, mas os homens, as coisas e os acontecimentos empíricos, como um “simbolismo das coisas”, supondo que Deus os usa como “causas segundas” ou instrumentos da sua Vontade. Por exemplo, o homem Moisés, no Velho Testamento, é considerado o antitipo do homem Jesus Cristo, no Novo, que é o tipo. Por exemplo, o sacrifício de Isaac por Abraão e a substituição de Isaac pelo cordeiro, no Velho Testamento, antecipa o sacrifício de Cristo que é “cordeiro de Deus”, no Novo. Isaac e Moisés, os homens, prefiguram o homem e deus Cristo, que realiza o que eles anunciaram. Assim, um acontecimento como a travessia do Mar Vermelho por Moisés anuncia a água do batismo. Do mesmo modo, os hebreus ficam 40 anos no deserto e antecipam os 40 dias que Jesus fica no deserto etc.

Assim, enquanto a alegoria verbal (dos poetas) é uma técnica retórica apenas humana de ornamentar discursos com palavras humanas (por isso se chama allegoria in verbis, alegoria nas palavras), a alegoria dos teólogos corresponde ao método de interpretar a presença da Providência divina nas coisas, pessoas e acontecimentos da história humana, por isso se chama allegoria in factis, alegoria nos fatos/feitos ou alegoria factual.

Invenção – Na sua visão, como se dá a alegoria em dois autores que estudou com destaque, Antônio Vieira e Guimarães Rosa? É possível avaliar neles um discurso alegórico mesclando poesia e teologia? E poderia dizer como a alegoria é trabalhada por Gregório de Matos, que o senhor estudou em A sátira e o engenho?

João Adolfo Hansen – Em Vieira, a retórica é uma auxiliar da teologia, regrando as técnicas da oratória sacra. Vieira é escolástico e interpreta os textos da Bíblia e dos doutores da Igreja como prefigurações dos acontecimentos, homens e coisas do Império Português do século XVII. Do mesmo modo, quando compõe a profecia do V Império, opera com os métodos da alegoria factual, ou a alegoria dos teólogos, dando forma retórica à interpretação dos acontecimentos da Bíblia e do seu tempo nos sermões e em suas obras proféticas, História do Futuro e Clavis Prophetarum. Quanto a Rosa, é um escritor moderno; não pressupõe Deus como Causa do tempo histórico e da sua linguagem. Mas opera alegoricamente, com alegorias verbais, inventando personagens e figuras cuja significação admite interpretação mitológica e metafísica, em níveis metafóricos do sentido, como se a experiência deles revelasse algo substancial, como é o caso de Diadorim e Hermógenes, em Grande sertão: veredas, ou de Pedro Orósio, em O recado do morro etc.

Em Gregório de Matos, a alegoria é verbal, como técnica aplicada à produção de mistos estilísticos satíricos que significam vícios e viciosos. Mas a sátira usa, prefencialmente, o discurso de sentido próprio, porque sua função é agredir claramente. Às vezes, no entanto, usa alegorias. Por exemplo, em um poema atribuído a Gregório que imita outro, “Os gatos”, de Quevedo, os animais sobre os telhados de Salvador figuram várias espécies de ladrões.

                                                         joao-adolfo

Invenção – O senhor destaca, por exemplo, a utilização de “O o”, em Guimarães, como se a letra fosse a inicial de uma palavra alegoricamente significativa. Ainda: o senhor, em entrevista à IHU On-Line, afirma que Guimarães “inventa essa língua [dos seus livros], que ele dizia ser a ‘língua que se falou antes de Babel’, por meio de procedimentos técnicos”. Guimarães buscaria uma linguagem pura, divina?

João Adolfo Hansen – Rosa, como outros grandes inventores modernos – penso em Mallarmé e Joyce – recusa-se a escrever na língua degradada dos meios de comunicação do século XX. Julga a ciência racionalista e árida. E também recusa a noção instrumental de linguagem, noção corrente, de que a língua é um meio para representar coisas fora dela. Sua poética prevê a necessidade de reescrever a própria língua que dá forma a suas histórias, como ficção de uma língua que libera as línguas recalcadas na língua fundindo tudo – como ele dizia, “do esquimó ao tártaro”. A língua que ele inventa é a ficção do que ainda não foi dito, ou seja, uma língua utópica, que ultrapassa as fronteiras nacionais como alegoria de uma língua futura. Como sabe, os personagens de Rosa costumeiramente são crianças, bêbados, loucos, iletrados e analfabetos. A língua fictícia que ele inventa para dar forma ao que seus personagens vivem faz que tenham experiências irredutíveis à lógica binária de Verdadeiro/Falso. A experiência deles é indizível, praticamente, e acontece nos textos de Rosa como algo efetuado pela linguagem e na linguagem, como se fosse algo substancial fora dela ou anterior a ela. Nesse sentido, é uma experiência “divina”, não necessariamente experiência do Deus cristão, pois corresponde à experiência do leitor com o que Rosa chamava de “o quem das coisas”.

Invenção – O senhor fala numa poesia com fundamentos na alegoria teológica. Dante seria o principal autor neste sentido? Obras centrais dele, como Divina comédia e Vida nova, seriam verdadeiras alegorias direcionadas ao divino?

João Adolfo Hansen – Sim, Dante. No tempo dele, a Escolástica fazia a distinção entre sentido literal e sentido espiritual. Santo Tomás de Aquino, por exemplo, faz a diferença entre simbolismo de palavras e simbolismo de coisas. Escreve que o sentido literal (e literal então significa cum litteris, com letras ou palavras) pode ser sentido literal próprio e sentido literal figurado. Em ambos os casos, sentido apenas humano, como sentido verbal produzido por palavras apenas humanas. Quanto ao sentido espiritual, é o que se acha na Bíblia, com níveis: alegórico, tropológico ou moral e anagógico ou dos fins últimos. Esse sentido e esses níveis só se acham no livro sagrado e só podem ser interpretados por teólogos. O que faz Dante é compor a Divina comédia como figuração poética do sentido espiritual. Dante visita o Além, onde todo o sentido da história humana está completado. Curtius propôs que Dante quis rivalizar poeticamente com a teologia. Em seus estudos sobre a Comédia, Charles Singleton afirmou, como Auerbach, que as alegorias de Dante têm estrutura tipológica de “isso e aquilo” – Beatriz é ao mesmo tempo a mulher florentina empírica, Bice Portinari, e a Teologia, assim como Virgílio é ao mesmo tempo o poeta romano do tempo de Augusto e a Razão. Não apenas alegorias verbais, “isso por aquilo”, as palavras “mulher” ou “Beatriz” valendo pela significação /Teologia/, os termos “poeta” ou “Virgílio” valendo pela significação /Razão/ etc. Como “isso e aquilo” simultâneos, têm existência no poema como o que efetivamente foram, mulher histórica florentina e poeta romano autor da Eneida e das Bucólicas. Suas ações no Inferno, no Purgatório e no Paraíso não são, enfim, simples ficções, como metáforas ou alegorias verbais usadas para transmitir abstrações ou sentidos ocultos, como ocorre, por exemplo, na história do mítico Orfeu, pois têm valor de acontecimentos reais, como acontece com os homens da Bíblia segundo os teólogos. Para Dante, Virgílio e Beatriz foram, quando vivos, figuras reveladoras da verdade, como umbrae futurarum, “sombras das coisas futuras”. No Além, são a figura completada do que a sua figura terrena anunciou.

                  dante-afresco

Invenção – Numa entrevista sobre Vieira, o senhor fala: “Talvez também fosse preciso distinguir e lembrar, por exemplo, que a oralidade é, no caso, uma voz que repete o ditado de uma Palavra essencial que é Letra, escrita num texto sagrado em línguas sagradas, hebraico, grego, latim, a Bíblia, e em outros textos canônicos autorizados que a repetem no comentário. Nesse sentido, a voz de Vieira dirige-se aos ouvidos de um público empírico que, no caso do Brasil, era em sua maioria analfabeto. Mas esse público devia ‘ler’, no som e no sentido das palavras, a Letra escrita da Verdade que era novamente revelada pelo padre como presentificação da Presença”. O que seria especificamente a “presentificação da Presença”, levando em conta o seu estudo sobre a alegoria? E poderia nos falar sobre a relação entre escrita e voz na obra de Vieira?

João Adolfo Hansen – Segundo Vieira e a Contra-Reforma, essa “presentificação” da Presença divina é a iluminação da consciência da audiência pela luz natural da Graça. Vieira prega obedecendo ao decreto do Concílio de Trento, de 1546, que determinou contra as teses da sola scriptura  e da lex peccati de Lutero que a pregação seria oral e que o pregador seria iluminado pelo Espírito Santo ao falar. Com a sola scriptura, Lutero propõe que o clero e os ritos da Igreja católica são dispensáveis, pois o fiel deve ler a Bíblia solitariamente. Com a tese da lex peccati, a lei do pecado, que o pecado original corrompe a natureza humana, que fica e é incapaz de discernir o bem do mal quando age. O Concílio proibiu a posse e a leitura da Bíblia, determinando que a evangelização seria feita oralmente por pregadores qualificados. No ato da fala, a justeza e a justiça do discurso evidenciariam a presença da luz natural da Graça lhes aconselhando o juízo. 
É preciso lembrar que Vieira escreveu os sermões que pregou desde 1630 a partir de 1679 até, pelo menos, 1684. Isso significa que a escrita produz a forma oral que ele afirma ter dito antes. Evidentemente, a escrita substitui o que na fala do sermão era a actio, a dramatização da voz e do corpo do padre. Nesse sentido é que ele diz que os sermões impressos são “cadáveres”. Seria interessante pensar que ele pode ter adaptado o sentido do sermão que falou, por exemplo, em 1645, às novas circunstâncias do momento em que o escreveu, por exemplo, em 1682.

Invenção – Em determinado trecho de Alegoria, o senhor escreve que, para Walter Benjamin, “nomear, no modo alegórico ‘barroco’, consiste em introduzir em tudo o luto e a morte”. O senhor veria o discurso de Vieira situado fora desse barroco, já que afirma, em entrevista à IHU On-Line, que “o ‘Barroco’ e ‘Barroco brasileiro’ são invenções neokantianas, romântico-positivistas, do final do século XIX e do século XX”, ou apenas ele não estaria adequado a essa interpretação benjaminiana?

João Adolfo Hansen – Benjamin pressupõe a metafísica cristã quando diz o que você cita. Da perspectiva cristã, o sentido da história humana está acabado e completado na eternidade desde sempre, mas para os homens esse completamento ainda é um futuro incerto, pois a história humana continua sendo o que é, confusão, violência, destruição. Na interpretação de Benjamin, o chamado “homem barroco” vive o luto e a melancolia de viver o tempo, que passa e transforma todo projeto humano em morte e ruína; além disso, cristãmente a história terrena é só figura do sentido que já está completo na eternidade. Por isso, a presença da morte é intensa na vida associada ao entendimento da história como ruína.  Quando fala de “barroco”, quase sempre Benjamin está se referindo a textos de autores alemães protestantes, que no século XVII negam que a Graça esteja presente nos homens depois do pecado original. Eles são, vamos dizer assim, “pessimistas” quanto ao sentido da vida, ao valor do vivem e fazem etc. No Brasil, quando se generaliza o estudo de Benjamin aplicando-o a textos de autores portugueses e espanhóis católicos, como Vieira e Gracián, ocorrem muitos anacronismos, pois os católicos são tratados como se fossem luteranos, calvinistas, anglicanos, anabatistas etc., ou seja, como se negassem a luz natural da Graça. Veja Vieira, por exemplo, e o que diz no sermão da Epifania, de 1662: Deus criou o mundo sozinho, na primeira vez, mas a criação ainda não está completa e os homens são “causas segundas” ou instrumentos Dele para o acabamento da história. Eles não estão abandonados pela Graça. Ou seja, comparado com as coisas protestantes, o catolicismo é “otimista”, pois propõe que há um sentido na história que é possível ajudar a construir por meio das boas obras e boas palavras.

Mas certamente Vieira não é “barroco” no sentido de Benjamin, que é o sentido dado ao termo nas histórias literárias caudatárias do idealismo alemão do século XIX. O que eu disse é que, quando se estudam historicamente as práticas do século XVII, não é preciso pensar dedutivamente com etiquetas como “barroco”, pois elas determinam que Vieira, Gregório, Quevedo, Góngora, Cervantes, Gracián etc. etc. sejam pensados como se fossem idealistas alemães, kantianos ou hegelianos etc. O que eu propunha, quando falei do anacronismo do uso de “barroco”, é que seria mais pertinente estudar as próprias práticas, determinando a significação e o sentido delas por meio de categorias e conceitos contemporâneos delas.

                                       antonio_vieira

Invenção – Considerando a poesia moderna brasileira, poderíamos identificar, por exemplo, na poesia de João Cabral a alegoria, visto que ele costuma ser considerado um poeta da concreção, que utiliza uma linguagem direta, para alguns antimetafórica?

João Adolfo Hansen – Evidentemente, é possível ler poemas de Cabral como se fossem alegorias de outras coisas. Para isso, seria preciso evidenciar os níveis de sentido próprio e sentido figurado dos textos. Ou, ainda, a ocasião da publicação deles. E, ainda, como a recepção os determina como “alegóricos”. Como Cabral evita a metáfora, também evita a alegoria. Ele não diz, por exemplo, que o Capibaribe é um cão sem plumas; ele diz que é como um cão. E a comparação desse “como” impede, justamente, a alegoria.

Invenção – O senhor pode falar um pouco a respeito de suas leituras de Derrida – que ficam mais claras no seu estudo seminal sobre Grande sertão: veredas? Até que ponto o pensamento filosófico dele ainda é importante?

João Adolfo Hansen – É importante antes de tudo por pensar. É importante por pensar os fundamentos da metafísica ocidental, propondo que as substâncias que ela pressupõe e afirma como origem, fundamento, identidade, unidade, sentido etc. são construções históricas particulares e arbitrárias. Ele pensa o impensado, por exemplo, no seu texto sobre a “animalidade” do animal. E nos ajuda a pensar nossa situação histórica, por exemplo no seu texto sobre o fantasma de Marx. Para mim, um texto fundamental dele, que li há mais de 30 anos, continua sendo A farmácia de Platão, em que desmonta a metafísica dos Diálogos platônicos, evidenciando os procedimentos técnicos aplicados pelo filósofo para produzir a Verdade em sua luta política contra outros que classifica como “sofistas” etc.

Invenção – Sob que ponto de vista é possível estudar literatura, filosofia e religião (como por meio dos textos de Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e Ignácio de Loyola) – mistura muito presente em suas análises, sobretudo em Alegoria –, levando-se em conta que, para alguns críticos, a literatura independe de outros campos?
        
João Adolfo Hansen
– Esses estudos são pertinentes, evidentemente. No caso da literatura ou do que se entende por literatura, são importantes por exemplo quando você estuda um texto anterior ao século XVIII iluminista que inventou a autonomia das artes, a literatura e a autonomia da literatura. Por exemplo, se estuda Vieira ou Dante, a filosofia escolástica é fundamental para entender a significação e o sentido dos textos que não são literatura em seu tempo. Fornecem categorias, conceitos, procedimentos técnicos etc., sendo fundamentais para definir o regime de historicidade dos textos. Evidentemente, e justamente por isso, a historicidade dos regimes temporais, a escolástica é anacrônica e dispensável para ler Drummond ou Clarice Lispector ou um autor contemporâneo, como Milton Hatoum, que pressupõem outras determinações.

                                               sio10_renoir_001i

Invenção – Há uma citação do poema “Salut”, de Mallarmé, no primeiro capítulo do seu livro Alegoria. Poderia falar um pouco sobre como vê a alegoria de modo geral na obra do poeta francês e como ela se corresponde com o simbolismo ou a modernidade?
               
João Adolfo Hansen
– Diria que a poesia dele é alegórica da ausência de totalidade e totalização da experiência histórica no mundo capitalista dominado pelo valor-de-troca da mercadoria. Mallarmé se recusa a usar o que chama de “moeda corrente da fala”, as palavras como se dão nos usos cotidianos. Para isso, propõe-se a inventar outra língua, cuja referência é “nada”. Fazendo isso, ele dá continuidade, por exemplo, ao verso de Baudelaire: Tout pour moi devient allégorie, no poema “Le cygne”: Tudo para mim devém alegoria. Baudelaire se referia às ruínas modernas, sabendo que na sociedade de classes a exploração do trabalho as produz.

Nesse sentido, lembraria que, na segunda metade do século XIX e no século XX, as artes passaram a significar pelo negativo a falta de sentido da experiência da história. A deformação, a feiúra, o resíduo, o fragmento, o desafinado, a abstração etc. foram modos e formas da recusa da representação realista da realidade burguesa. Nesse sentido, as artes ficaram alegóricas. Há uma anedota legal: conta-se que o general nazista, que visitou a exposição de Guernica, em Paris, em 1942, e que julgava a arte moderna coisa de degenerados de raças inferiores, perguntou a Picasso: – Foi o Sr.que fez isso? E Picasso: – Não. O Sr.

A grafia para nada

Em 19 maio, 2009 Comentar

          Por Victor da Rosa         

          Nascido em Florianópolis (SC), em 1984, Victor da Rosa é um dos poetas que vêm surgindo nos últimos anos com um olhar voltado à ligação entre literatura, música, cinema e artes plásticas em geral. Mestrando em Literatura, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escreve ensaios sobre literatura e artes visuais desde 2004, publicando com regularidade no Caderno de Cultura do Diário Catarinense e nos periódicos digitais de cultura e arte Centopeia (www.centopeia.net) e Zunái (www.revistazunai.com.br).
          Em 2007, foi curador de três eventos de arte contemporânea: Fim de partida (individual de Cláudio Trindade), no Espaço ARCO, Florianópolis; Réquiem (happening com cinco artistas), no Espaço ARCO; e Desvio para o vento, exposição coletiva com sete artistas, na Fundação Hassis, Florianópolis. É um dos organizadores do Bloomsday de Florianópolis e da Galeria do referido site Centopeia, que realiza pequenas exposições em espaço virtual, mantendo ainda um blog (www.victordarosa.blogspot.com). Ou seja, Victor da Rosa é um poeta que se preocupa tanto com a realização de seu trabalho verbal quanto com sua influência no espaço visual, assim como artistas que admira, a exemplo de Joan Brossa e John Cage.  No texto abaixo, ele fala, de forma poética, sobre o Barthes pintor, e dá continuidade ao dossiê do blog sobre o escritor francês. Victor, gentilmente, permitiu a republicação do texto, que podia ser visto anteriormente em sites como Zunái e Net Processo – Arte Contemporânea.

                                    barthes-gravura-dois

          O escritor Roland Barthes se dizia um “pintor de domingo”. Segundo seu biógrafo, Louis-Jean Calvet, Barthes começa a se dedicar à pintura após uma viagem que faz ao Marrocos e Japão, no início da década de 70, pois descobre nesses países uma prática de escrita que arremessa o sujeito na pura fruição da materialidade, na superfície sem fundo das coisas, enfim, uma prática que não “caia diretamente na armadilha da linguagem” – nesses países, escreve Calvet, o escritor “descobrira uma espécie de prolongamento da escritura, transmutação dos movimentos da mão que formam letras: a caligrafia”.
          Barthes chegou a realizar duas exposições em vida, em 1976 e 1977, e deixou em torno de 150 “grafias”, datadas e numeradas – “desenho? pintura, grafismo? O que faço não tem nome; é mais da ordem do colorir, do grafite”, escreve Barthes, em pequeno texto presente em um de seus inéditos recentemente publicado no Brasil, Imagem e Moda. Costumava desenhar sobre os papéis de carta do Collège de France, talvez em intervalos de cursos, momentos de descanso, e ficava surpreso quando as visitas se mostravam interessadas em suas composições. “É muito fácil fazer”, dizia, “basta deixar correr o lápis sobre a folha do papel”. Entretanto, não hesitava em imprimir reproduções nas capas de alguns de seus livros e falar sobre elas em ensaios e seminários.

                                                                             * * * * *

          Em seu livro Roland Barthes por Roland Barthes, o escritor também imprimiu algumas reproduções, geralmente com pequenos comentários ao lado – “… o significante sem significado”, “desperdício”, “a grafia para nada”. A grafia, em Barthes, pode ser lida como uma prática de isenção de sentido, um puro deslizamento na superfície mesmo do papel, na cor – “se eu fosse pintor, pintaria somente cores: esse campo também me parece liberado da Lei”. Barthes pinta – ou seria melhor dizer: traça, rabisca, encena? – não para construir sentido e provocar interpretação, mas para fazê-lo vacilar, torná-lo vazio mesmo, pois atrás de sua superfície só existe um gesto, o corpo que produz movimento, pulsão de desejo: enfim, a encenação de um esquecimento.
          O desperdício, o dispêndio, é também o gesto possível para uma teoria do prazer. O traço de Barthes, dessa maneira, é puro gasto de energia, movido somente pela pulsão do corpo – tudo aquilo que derrama, que suspende, e se perde, “que cai sobre alguma coisa”. Sua pintura é a queda suave da cor sobre o papel, seu desperdício e seu prazer – “Onde ler a ideia de uma sexualidade feliz, (…) suave, sensual? Na pintura, ou ainda melhor: na cor”. Pois a cor, para o escritor, é também uma ideia – uma ideia sensual.
          A teoria do prazer, em Barthes, é uma teoria da materialidade, da cor e do traço – onde o texto, tecido e superfície, trabalha através de um entrelaçamento infinito, sem nunca chegar até qualquer ponto de apoio: nenhuma verdade é oculta. Em Barthes, não há profundidade, mas intensidade e calor – fricções na superfície, pois só existe superfície. Daí é possível ver suas grafias como “atos de linguagem”, e não como representação, sentido – não há enigmas a decifrar, interpretações a fazer. Diz o escritor, em O prazer do texto: “(…) aquilo que o prazer suspende é o valor: significado: a (boa) Causa”, pois “o prazer do texto é isto: o valor passado ao grau suntuoso do significante”. Seus grafismos são, dessa maneira, a fuga de uma boa Causa.

                                                  o-neutro1

                                                                           * * * * *

          Os traços de Barthes são letras que se desenham no papel, se derramam, e nesse intervalo entre uma coisa e outra deixam de produzir suas características iniciais, tocando o indiferente – “pintura, grafismo?”. Numas das figuras que aparecem em seu Roland Barthes por Roland Barthes, e que também ilustra a capa do Neutro (acima), alguns traços se insinuam e podem ser reconhecidos como letras mesmo: a letra “C”, ou a letra “E”, porém figuram esvaziadas de qualquer possibilidade de significação. A letra, assim, só cintila enquanto traço, erotismo, desenho: enquanto puro correr da mão que desliza, e não procura agarrar nada.
          Trata-se mesmo de uma suspensão de qualquer fronteira que pudesse separar letra e visualidade. Barthes, cada vez mais, procurava tensionar estas linguagens, jogar uma contra a outra, confundi-las, levá-las ao limite e ao silêncio, pois qualquer possibilidade de nomeação dessa prática é suspensa – seus tensionamentos, porém, são quase silenciosos, discretos, derramados, “sem agressividade”.
          Em seu ensaio sobre o artista Cy Twombly, um de seus últimos ensaios, Barthes escreve: “Também nos grafismos de TW a escritura é reconhecida; chega a apresentar-se como escritura. As letras formadas, no entanto, já não fazem parte de nenhum código gráfico, assim como os grandes sintagmas de Mallarmé já não fazem parte de nenhum código retórico”. A letra, em Twombly, não é mais letra, não é mais nada. Não seria esta a potência que a arte produz, e também sua sedução – suspender todos os códigos, a cultura, as fronteiras, para, somente dessa maneira, construí-los novamente, inventá-los?
          Penso que nesse ponto é possível vislumbrar uma política em Barthes – pois sua teoria do prazer é também uma resposta ao Pai Político, como escreve em seu O prazer do texto: “o texto é (deveria ser) essa pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político”. O gesto de Barthes é algo que está ligado mais com uma força de suspensão e desestabilização dos códigos – algo, enfim, que poderia ser imaginado como uma “política da suspensão”, do “prazer”, ou até como uma “política da linguagem”.

           roland_barthes-pintura-quatro4

                                                                             * * * * *

          O nada é também uma força, uma potência, pulsão. O nada, diferente das imagens e estereótipos que são criados em torno dele, atua e produz – e aqui eu deveria dizer, logo em seguida, ele não atua, não produz. As grafias de Barthes são pontos de fuga na linguagem, pois a produção acontece nessa dobra que é quase fora de códigos, que é entre códigos – principalmente de seus códigos, enquanto escritor, pois a pintura que faz já poderia ser percebida dentro de uma tradição. Dessa maneira, Barthes escreve sobre seus grafismos: “Essa prática de amador sem dúvida tem muitas motivações: (…) pode ser a vontade de estender o exercício de meu corpo, de ‘mudar de mão’ (mesmo sendo sempre a direita); (…) talvez também o alívio (o repouso) de poder criar alguma coisa que não caia diretamente na armadilha da linguagem, na responsabilidade fatalmente vinculada a toda frase: uma espécie de inocência, em suma, de que o ato de escrever me exclui.”
          Trata-se de certo frescor da linguagem que Barthes procura, até uma irresponsabilidade (frescor que, de alguma maneira, procurou em toda sua trajetória – pois se fosse para desenhar uma linha da trajetória teórica de Barthes, esta linha seria feita de muitos desvios, silêncios, retornos, fugas). Sua experiência com grafismos pode ser lida, dessa maneira, como um tensionamento com a própria prática de escritor – tensionamento que provoca justamente os desvios, a descontinuidade: uma catástrofe delicada.
          As grafias de Barthes, por fim, são gestos sem palavras. A cada traço, é como se Barthes se lançasse no espaço vazio da linguagem onde só é possível voltar modificado, outro, pois no instante em que o escritor marca a folha branca do papel, está marcando também a si. É como se lançasse no silêncio, procurasse o nada: um traço na ausência.

          Para Pedro de Souza

            Por André Dick

            leyla-perrone-moises-22

            Segundo Leyla Perrone-Moisés, a importância de Roland Barthes (1915-1980) para uma compreensão da cultura é fundamental. Por essa e outras razões, ela organiza a Coleção Roland Barthes para a Martins Fontes. Nela, já foram lançadas obras como O rumor da língua, O grão da voz, Sade, Fourier, Loyola, Fragmentos de um discurso amoroso, além de O neutro, Como viver junto e A preparação do romance – Volumes I e II – que reúnem aulas dadas pelo autor no Collège de France. Na entrevista a seguir, publicada originalmente na IHU On-Line número 270, de 25 de agosto de 2008, Leyla considera que “Barthes estudou várias manifestações culturais da sociedade, e deixou textos sobre várias delas” e, ainda, que “diferentemente dos sociólogos, o que lhe interessava não eram os fenômenos sociais por eles mesmos, mas o modo como estes eram expressos”.
          Nesta entrevista, ela fala também sobre a ligação de Barthes com Derrida, filósofo que lhe indicou o fim do estruturalismo ortodoxo. Para a crítica brasileira, Barthes, “assim como se cansou do projeto totalizador da semiologia, aborreceu-se progressivamente com o dogmatismo do discurso político militante”. Barthes também se sentia honrado quando o chamavam de escritor. Por isso, como afirma Leyla, sua “escrita é precisa, original e saborosa como a dos verdadeiros escritores” e “hoje podemos dizer tranquilamente que Barthes foi um grande escritor, afirmação que lhe parecia abusiva”. Leyla ainda comenta sobre a contestação que Barthes fazia à mímesis aristotélica e sobre os livros Sobre Racine e O sistema da moda.
          Leyla Perrone-Moisés possui, pela Universidade de São Paulo (USP), graduação em Letras Neolatinas e doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa). É coordenadora do Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados da USP, desde 1988, e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP desde 1996. Publicou, entre outros, os livros Roland Barthes – O saber com sabor (São Paulo: Brasiliense, 1983), Flores da escrivaninha (São Paulo: Companhia das Letras, 1990), Inútil poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro (3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001), Texto, crítica, escritura (3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005) e Vira e mexe, nacionalismo (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).

IHU On-Line – Em todos os livros da Coleção Roland Barthes, organizada pela senhora, há uma grande atenção dada, em suas introduções, aos elementos que os formaram, inclusive nos inéditos, em que há os vários interesses do escritor: por literatura, política, teatro, música, moda. Barthes, mais do que um crítico, foi um crítico de cultura, no sentido mais amplo, uma vez, que como a senhora já disse, ele não tinha um lugar definido?
Leyla Perrone-Moisés
– De fato, ele foi um crítico de cultura, no sentido amplo. Formado em sociologia, Barthes estudou várias manifestações culturais da sociedade, e deixou textos sobre várias delas. Mas ele era um homem da linguagem e, diferentemente dos sociólogos, o que lhe interessava não eram os fenômenos sociais por eles mesmos, mas o modo como estes eram expressos. Ele acreditava que, nas formas linguageiras, podíamos ler os sentidos e a ideologia que fundamentam a sociedade.

IHU On-Line – Na introdução de O rumor da língua, realiza-se uma análise sobre as fases atravessadas por Barthes. No auge do estruturalismo, Barthes parecia querer atingir uma “ciência da literatura” e, mais tarde, após Derrida, teria tomado um caminho mais flexível. Barthes foi, como Derrida, filósofo presente também em seus estudos, um dos responsáveis por “encerrar” com o estruturalismo digamos mais ortodoxo? Há uma espécie de volta, por exemplo, aos elementos biográficos, em suas aulas inéditas reunidas em A preparação do romance?

Leyla Perrone-Moisés – Derrida  criticou o estruturalismo antes que Barthes o fizesse. Desde A escritura e a diferença (1967),  ele apontou o idealismo do signo linguístico saussureano, no qual se inspirava o estruturalismo. Barthes se desgostou pouco a pouco da “ciência da literatura”, e rompeu com esse projeto em O prazer do texto (1973). Não foi apenas em seus últimos cursos que ele reformulou as teses de sua fase semiológica.
Quanto à recuperação da biografia dos escritores, ele já havia proposto o estudo dos “biografemas” em Sade, Fourier, Loyola (1971), e aplicado esta proposta a ele mesmo, em Roland Barthes por Roland Barthes (1975).
Barthes não foi diretamente influenciado por Derrida, mas tinha muitas afinidades com o filósofo. Tratei das relações intelectuais e afetivas entre ambos no texto intitulado “Aquele que desprendeu a ponta da cadeia”, publicado em Jacques Derrida: pensar a desconstrução (Org. Evando Nascimento São Paulo: Estação Liberdade, 2005).

                                barthes-por-barthes1

IHU On-Line – No seu livro Aula, Barthes dá uma espécie de resposta aos acontecimentos de Maio de 68, haja vista que ele foi considerado um conservador pelos alunos, como a senhora lembra na introdução feita ao volume de inéditos Política. 40 anos depois, como analisa o pensamento mais voltado à política de Barthes. Ele estaria sintetizado em seus artigos e aulas, como aquelas reunidas no livro O neutro?

Leyla Perrone-Moisés – Na introdução a que você se refere tratei longamente das conflituosas relações de Barthes com a política. Ele não abandonou, até o fim da vida, a fundamentação marxista de suas posições. Mas, assim como se cansou do projeto totalizador da semiologia, aborreceu-se progressivamente com o dogmatismo do discurso político militante que, segundo ele, produzia uma doxa diversa da doxa social burguesa, mas igualmente autoritária. Por temperamento, Barthes não era um revolucionário, mas um anarquista.

IHU On-Line – Barthes é um autor atemporal, mas que viveu seu tempo: estão em sua obra experiências como o contato com a cultura oriental, com o cinema francês dos anos 60, com uma guinada antiacadêmica etc. Num dos seus ensaios sobre a obra de Barthes, ele teria vivido, no fim de sua vida, “a triste época da ‘morte das ideologias’, da desconfiança nos signos, da saturação das mensagens reduzidas ao simples estado de ruído”. Na sua opinião, Barthes anteviu uma era que se aprofundou nessa perda de referências?

Leyla Perrone-Moisés – Eu não diria que Barthes é “um autor atemporal”, porque ele era muito consciente do caráter histórico e provisório de qualquer discurso, inclusive do seu. Eu diria que ele é “um autor de longa duração”, já que, quase quarenta anos depois de sua morte, a maior parte de suas propostas teóricas se mantém atual.
Com a agudeza de visão que o caracterizava, ele viu os sinais da chamada “pós-modernidade”, e deixou vários registros dessa intuição. Certamente não teria lhe agradado viver uma época de perda de referências, porque toda a sua obra foi pautada em determinados valores éticos e estéticos da modernidade.

O imaginário de Lacan via Barthes

Ele já se interessava pela psicanálise antes de ler Lacan, mas o fato de este afirmar que “o inconsciente é uma linguagem” o atraiu para sua obra. Entretanto, como fez com vários pensadores de outras áreas, Barthes usou os conceitos de Lacan de modo pessoal e pouco ortodoxo. Para o psicanalista, o “imaginário” é o campo do auto-engano e da neurose. Barthes resgatou o imaginário como fonte da criação artística, e reivindicou a exploração se seu próprio imaginário nos cursos que proferiu no Collège de France.

                                     barthes-meia-luz1

IHU On-Line – Em Altas literaturas, a senhora fala do escritor que também atua como  crítico. Em livros como Fragmentos de um discurso amoroso, Incidentes e Roland Barthes por Roland Barthes, o crítico francês, que se sentia honrado quando alguém o chamava de escritor, apresenta, fascinado que era por Proust, um lado romancista, recortando fragmentos de sua história, ou ela apenas entreviu essa passagem e é difícil avaliá-lo sob tal perspectiva?

Leyla Perrone-Moisés – Barthes foi escritor enquanto ensaísta. Sua escrita é precisa, original e saborosa como a dos verdadeiros escritores. A partir de seu momento histórico, e depois dele, as distinções genéricas rígidas foram abandonadas na prática da literatura e, atualmente, o ensaio está plenamente integrado em muitas obras de ficção. Por isso, hoje podemos dizer tranquilamente que Barthes foi um grande escritor, afirmação que lhe parecia abusiva.
No fim de sua vida, saudoso da grande literatura do passado, concebeu o projeto de escrever um romance. Mas ele era demasiadamente crítico para poder voltar a um gênero que reconhecia como plenamente realizado no passado. Para ele, escrever um romance seria fazer uma obra como a de Proust, e esta já estava feita. Num colóquio dedicado a Barthes em março deste ano, em Paris, foi exposta uma tese interessante. A de que A preparação do romance  é uma obra conceitual, como aquelas produzidas nas artes plásticas. A obra (o romance) foi substituída pela descrição de seu projeto e de sua fatura, descrição que se torna ela mesma obra de arte

A presença poética em Barthes

Barthes se dedicou muito mais ao estudo da prosa de ficção do que à poesia. Em O grau zero da escrita,  ele manifestava certo desconforto com a poesia moderna, que lhe parecia inóspita. Mas ele reconheceu a importância de Mallarmé  na história da literatura e, desde a Aula, referiu-se a ele com frequência. A poesia também está muito presente em A preparação do romance, sob a forma do haicai japonês, estudado por ele com extraordinária sensibilidade.

IHU On-Line – Como aparece num dos textos de A aventura semiológica,  Barthes era contrário à visão aristotélica de mímesis. Alunos dele, como Antoine Compagon, em O demônio da teoria, contestam muitos argumentos de seus argumentos, voltando a Aristóteles como uma espécie de guia ainda definitivo da literatura. Era objetivo de Barthes desconstruir o discurso clássico? Mais: o discurso de Barthes se tornou “clássico” como o de Aristóteles, mesmo com menos distância para avaliarmos isso, ou essa aproximação é indevida?

Leyla Perrone-Moisés – A importância de Aristóteles, não só para o estruturalismo, mas para toda a moderna teoria literária, é grande demais para ser tratada numa resposta de entrevista. Barthes não contestou Artistóteles, contestou apenas a concepção da mímesis como reflexo do real. Na verdade, sua concepção do realismo como “efeito de real” já está presente na Poética de Aristóteles. Quanto a Compagnon, ele é um excelente teórico e o melhor discípulo de Barthes, mas a meu ver mais conservador do que o mestre (veja-se Os anti-modernos).

                                         a-aventura-semiologica1

IHU On-Line – A coleção que a senhora organiza relançará dois livros de Barthes: O sistema da moda e Sobre Racine. O primeiro é voltado a uma análise semiótica do mundo do vestuário e Sobre Racine despertou a conhecida polêmica de Barthes com o crítico francês Raymond Picard, a qual a senhora analisa em seu livro sobre Barthes. O que torna esses livros ainda tão contemporâneos e atraentes para o leitor atual?

Leyla Perrone-MoisésO sistema da moda, publicado no auge da semiologia, pertence àquela fase que Barthes renegou posteriormente. Apesar disso, o livro foi pioneiro ao tomar o discurso sobre a moda como tema, e continua indispensável para os estudiosos do assunto.
O alvoroço provocado por Sobre Racine, na época de sua publicação, e sua rejeição pelos professores da Sorbonne eram mais do que justificados. O tempo deu a vitória à “nova crítica”, inspirada nas ciências humanas. Sobre Racine, cuja revisão fiz há alguns dias, é um livro deslumbrante, um dos melhores escritos por Barthes como crítico. É um livro de grande inteligência e honestidade, pois questiona os fundamentos ideológicos da crítica literária. É pena que os leitores brasileiros atuais talvez não conheçam suficientemente a obra de Racine e sua fortuna crítica, para avaliar as inovações trazidas por Barthes à leitura do autor clássico. De qualquer modo, o capítulo teórico final, intitulado “História ou literatura?”, permanece espantosamente vivo. Todos os críticos literários e professores de literatura deveriam ler com atenção esse capítulo.

IHU On-Line – Como pensa que Barthes veria o mundo da literatura, a qual dizia amar de um “modo dilacerante”, dominado muitas vezes pelos estudos multiculturais que parecem antes estudar qualquer elemento extraliterário menos os livros e obras?

Leyla Perrone-Moisés – O amor de Barthes pela literatura era “dilacerante” porque ele pressentia, no fim de sua vida, a banalização da prática literária e o desprestígio que atingiria os estudos dessa área. Por ter-se apoiado na sociologia e na psicanálise, e por ter sido um desmistificador das ideologias, Barthes abriu caminho aos “estudos culturais”. Mas se tivesse visto a literatura tratada como mero documento, e utilizada para fins militantes, como ocorre nos “estudos culturais”, certamente os teria rejeitado.

          Por André Dick

          Relançado no Brasil em 2007, O império dos signos, de Roland Barthes, traz, numa bela edição da WMF Martins Fontes, várias gravuras e fotos. O livro se insere na coleção dedicada ao escritor francês coordenada por sua tradutora, Leyla Perrone-Moisés. Para conhecê-lo, é indispensável ter um interesse pela cultura oriental. Quando Barthes o publicou originalmente (em 1970), no entanto, o Japão, país que o encanta por ser um símbolo em si mesmo, não era a superpotência que é hoje, ainda que já fosse uma referência econômica, cultural e textual. Era de interesse de Barthes a presença da linguagem na formação no indivíduo, e o Japão é um dos países que mais parecem mostrar esse elemento em sua cultura.
          O livro de Barthes também ajuda a mudar a ideia sobre sua própria teoria. Para ele, no auge da semiologia, negando o dito “mundo externo ao dos signos”, o referente é produto de uma semiosis, e não um dado preexistente. A relação linguística primária não estabelecia mais relação entre a palavra e a coisa, ou o signo e o referente, o texto e o mundo, mas entre um signo e um outro signo. Não é muito diferente disso o que Aristóteles abordava em sua mímesis na Poética: “Desde a infância, os homens têm, inscrita em sua natureza, […] uma tendência à mimeisthai [imitar ou representar] – e o homem se distingue dos outros animais porque é naturalmente inclinado à mimeisthai [imitar ou representar] e recorrer à mímesis em seus primeiros aprendizados”. Imitar o quê? Aristóteles não define, mas é certo de que ele fala do mundo como um universo em que o homem trabalha e retrabalha a formação de sua própria linguagem.

                                       capa-barthes-21                               
           Ou seja, a mímesis quer representar o conhecimento do homem e a maneira como ele percebe o mundo, o expressa através das palavras, e não exatamente o imita. E Barthes não discorda disso: “Não sendo uma cópia do real, a literatura mais verdadeira é aquela que se sabe a mais irreal, na medida em que ela se sabe essencialmente linguagem, é aquela procura de um estado intermediário entre as coisas e as palavras, é aquela tensão de uma consciência que é ao mesmo tempo levada e limitada pelas palavras, que dispõe através delas de um poder ao mesmo tempo absoluto e improvável”. Ou seja, Barthes sabe que existe uma possível cópia do real, mas ele adota a intersecção entre as coisas (do mundo) e as palavras (da linguagem), trabalhando com o conceito de Imaginário, que constitui exemplarmente o irreal ou o desreal – já que o Real, conforme indicava Lacan, é um resíduo do Imaginário e do Simbólico –, construído pelas leituras do autor. Chegaremos à conclusão de que tanto Aristóteles quanto Barthes falam da intertextualidade também ao falarem na pretensa realidade.
          A semiosis pretendida por Barthes, aplicada na descontinuidade, no fato de as palavras perderem suas “referências particulares” para se “relacionarem umas com as outras para produzir” a significância, tem muito da Poética de Aristóteles – e O império dos signos o comprova. Ou seja, Aristóteles, como Barthes veio a fazer depois, abria campo para um diálogo entre representações, que na teoria literária moderna receberia a carga da intertextualidade de Julia Kristeva, Bakhtin etc., mas apostava numa narratologia poética, por meio da tragédia e da epopeia (gêneros superiores) e da comédia (gênero inferior).
          Barthes, em O império dos signos, utiliza a cultura japonesa como narrativa para sua semiologia imaginária. Ao analisar a forma do haicai, buscando uma interpretação do zen, os tipos de comida e lazer japoneses, por exemplo, Barthes destaca a textualidade que há nesses movimentos. E o teórico, em O império dos signos, tenta libertar a interpretação de uma possível vinculação com o Ocidente, no que fracassa: a lógica de vivenciar a linguagem no Oriente é a mesma do Ocidente. Quando Barthes busca uma aproximação da comida japonesa com a pintura, ele está desenhando uma rede intertextual que Aristóteles traça entre autores gregos. Não por acaso, Leyla Perrone-Moisés considera que O império dos signos é contra a semiologia, ligada a uma “liberdade crítica”, a uma “reinvindicação do prazer”. O que ele faz, nesse livro, é um “texto de puro prazer pessoal”, no qual Barthes inventa o próprio Japão; um Japão “desejado, sonhado, saboreado, transformado em texto único, texto barthesiano – o mais prazeiroso e deslumbrante de sua obra”. Daí a importância de O império: no momento em que Barthes nega a frieza da semiologia, ele entrega um texto poético, cujas frases formam uma sintaxe extremamente fluente, com a propriedade do autor: longos períodos e um sentido descritivo sensível.

          toquio
          Desse modo, O império dos signos contraria o que Barthes escreve no limite do estruturalismo ortodoxo, em busca de uma semiologia ortodoxa hoje superada: “A linguagem é feita com significados e significantes, mas não é feita diretamente com a realidade”. É claro que Barthes também considerava que a linguagem possui um sistema econômico, articulado com os significados (os conteúdos) e os significantes (as formas), sem precisar “descrever” a realidade. Em O império dos signos, o que seria a realidade senão a própria linguagem? Mas se a linguagem não expressa o Real, no sentido lacaniano, ela é conduzida pelo que entendemos por real: pela cultura simbólica dos signos. No entanto, mesmo que Barthes esteja perdido como o personagem de Bill Murray em Encontros e desencontros, sem entender a língua com que se defronta, ele é abalado por uma realidade de signos, que o coloca em situação de escrita. O sujeito não se cria juntamente com a linguagem, como ele prescreveu várias vezes: ele é sempre resultado de uma experiência prévia, mesmo que suscitada pelo vazio a que Barthes se refere na cultura japonesa. Barthes percebe nos milhares de corpos japoneses, no teatro, nas cidades descentralizadas, no rosto do estrangeiro e mesmo numa papelaria a essência para se descobrir uma cultura. Barthes escreve: “No Japão, tudo muda: a inexistência ou o excesso do código exótico, aos quais está condenado, em sua terra, o francês que se vê às voltas com o estrangeiro (que ele não consegue transformar em estranho), absorve-se numa dialética nova da fala e da língua, da série e do indivíduo, do corpo e da raça. […] A descoberta é prodigiosa: as ruas, as lojas, os bares, os cinemas, os trens abrem o imenso dicionário dos rostos e das silhuetas, em que cada corpo (cada palavra) só quer ela mesma e remete, no entanto, a uma classe; assim, temos ao mesmo tempo a volúpia de um encontro (com a fragilidade, a singularidade) e a iluminação de um tipo (o felino, o camponês, o redondo como uma maçã vermelha, o selvagem, o lapão, o intelectual, o adormecido, o lunar, o radioso, o pensativo), fonte de um júbilo intelectual, já que o indomável é domado”.

                                  barthes-bonsai
          O crítico Antoine Compagon, que foi aluno de Barthes, acerta, em O demônio da teoria, ao considerar que a mímesis é contestada por ser associada à ideologia, que Barthes combatia (a doxa), como todo saber repressivo, inerte, passivo, ligado ao consenso. Isso subsiste na própria obra de Aristóteles, quando ele afirma que o escritor deve ir ao que é consenso para o público. Mas não só isso. Barthes queria, sobretudo, propor não a extinção do real em sua obra (o que seria absurdo), mas que a realidade da linguagem (em O prazer do texto, ele falaria em “mímesis da linguagem”), a representação que fazemos da imagem, aproxima-se do impossível, do Imaginário; é a representação que fazemos através dos discursos – e essa fragmentação não pode representar tão diretamente uma possível exterioridade, a representação definida timidamente por Aristóteles, que adianta, por outro lado, boa parte das ideias acerca de intertextualidade da modernidade; ela representa a cultura dos signos. E o público, a massa, regressa pela imagem: “[…] o local público é uma série de acontecimentos instantâneos, que chegam ao notável num brilho tão vivo, tão tênue, que o signo se abole antes de qualquer significado ter tido o tempo de ‘pegar’”. Os signos, no livro de Barthes, seriam vazios – mas, mesmo abolidos, estão presentes em todos os lugares.
          Sob esse ângulo, em O império dos signos, a realidade é a própria linguagem que Barthes procura interpretar como semiólogo, ou seja, ela representa um conflito entre o imaginário e o simbólico. “Se os buquês, os objetos, as árvores, os rostos, os jardins e os textos, se as coisas e as maneiras japonesas nos parecem pequenas (nossa mitologia exalta o grande, o vasto, o largo, o aberto), não é em razão do seu tamanho, é porque todo objeto, todo gesto, mesmo o mais livre, o mais móvel, parece emoldurado”. A literatura, portanto, expressa a realidade por figuras de linguagem, encaixadas numa espécie de moldura imaginária. O império dos signos que é o Japão se mantém como linguagem de forma autônoma, independente da centralização ocidental, e dá em troca o fruto de uma experiência. Da busca pessoal de Barthes pelo prazer do texto, que ele retrataria mais atentamente na obra posterior a O império dos signos.

             * Publicado anteriormente na revista IHU On-Line nº 243, de 12-11-2007.