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          Por André Dick

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          Abaixo, preparamos uma antologia de poemas de Vladimir Maikósvki, o poeta que investiu contra os falsários, como visto ontem. São traduções extraídas de dois livros referenciais: Maiakóvski (5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992) e Poesia russa moderna (5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001), ambos com traduções de Augusto de Campos, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos. As recriações em português são exemplares. Repare-se em “Nacos de nuvem”, um dos tantos poemas que Maiakóvski fez para as crianças. Há também a reprodução de alguns versos do extenso poema “A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakósvki no verão na Datcha” – que ganhou uma “intradução visual” de Augusto de Campos, com seus últimos versos, remetendo a Roberto Carlos e Caetano Veloso, como escreve o tradutor no volume Maiakóvski. Esse poema ganhou, como lembra Augusto, duas traduções plástico-visuais: uma, gráfica, de Lissitzki e outra por meio do próprio poeta e Robert Delaunay: “uma das portas internas de Delaunay, em Paris, foi dividida em quatro retângulos coloridos, contendo um grande círculo central, no qual Maiakóvski inscreveu a primeira e as sete últimas linhas do texto, convertidas num gigantesco caligrama do sol”. O poema “LÍLITCHKA! Em lugar de uma carta” refere-se à Lília Brik, que foi amante do poeta (ver, nesse sentido, os texto “Conversa com Lília Brik”, de Boris Schnaiderman, e “Maikóvski, 50 anos depois”, de Augusto de Campos, incluídos em Maiakóvski) e é um dos seus poemas de amor mais contundentes. Em “A flauta vértebra”, pode-se perceber o prenúncio do suicídio de Maiakóvski, também visto em outros poemas. Em razão da disposição na página – com os versos organizados em forma de escada –, não foi possível reproduzir alguns poemas mais voltados ao combate político – o que pode ser visto nesses dois volumes citados. O poeta russo escreveu em “Eu mesmo”, uma miniobiografia sua: “Sou poeta. É justamente por isso que sou interessante. E sobre isto escrevo. Sobre o restante: apenas se foi defendido com a palavra”. Maiakóvski, através de sua poesia, realmente lidava com ideias em que acreditava, e defendia com palavras e argumentos seu posicionamento, não agindo apenas como um reprodutor de discursos alheios que não segue o que fala, nem tem coragem realmente de dizer o que pensa, se escondendo por trás do sistema e tramando mudanças escondido, com receio de ser surpreendido às claras. Ou seja, agindo como os “velhacos e falsários” a que o poeta russo se refere, com exatidão, no poema “A plenos pulmões”. Por isso, ele é interessante, e outros continuarão a não sê-lo, por mais que falem. O poeta Maiakóvski, este sim, surpreende a cada verso.
  

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          De “V Internacional”

          Eu
          à poesia
          só permito uma forma:
          concisão,
          precisão das fórmulas
          matemáticas.
          Às parlengas poéticas estou acostumado,
          eu ainda falo versos e não fatos.
          Porém
          se eu falo
          “A”
          este “a”
          é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
          Se eu falo
          “B”
           é uma nova bomba na batalha do homem.

          (Tradução de Augusto de Campos)

           Nacos de nuvem
  
           No céu flutuavam trapos 
           de nuvem – quatro farrapos
 
           do primeiro ao terceiro – gente 
           o quarto – um camelo errante. 
  
           A ele, levado pelo instinto,
           no caminho junta-se um quinto. 
  
           Do seio azul do céu, pé-ante- 
           pé, se desgarra um elefante.
 
           Um sexto salta – parece.
           Susto: o grupo desaparece.
 
           E em seu rasto agora se estafa
           o sol – amarela girafa.

           (Tradução de Augusto de Campos)

           A flauta vértebra

           A todos vocês,
           que eu amei e que eu amo,
           ícones guardados num coração-caverna,
           como quem num banquete ergue a taça e celebra,
           repleto de versos levanto meu crânio.

           Penso, mais de uma vez:
           seria melhor talvez
           pôr-me o ponto final de um balaço.
           Em todo caso
           eu
           hoje vou dar meu concerto de adeus.

           Memória!
           Convoca aos salões do cérebro
           um renque inumerável de amadas.
           Verte o riso de pupila em pupila,
           veste a noite de núpcias passadas.
           De corpo a corpo verta a alegria.
           esta noite ficará na História.
           Hoje executarei meus versos
           na flauta de minhas próprias vértebras.

           (Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

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           Extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha

           A tarde ardia em cem sóis
           O verão rolava em julho.
           O calor se enrolava
           no ar e nos lençóis
           da datcha onde eu estava,
           Na colina de Púchkino, corcunda,
           o monte Akula,
           e ao pé do monte
           a aldeia enruga
           a casca dos telhados.
           E atrás da aldeia,
           um buraco
           e no buraco, todo dia,
           o mesmo ato:
           o sol descia
           lento e exato.
           E de manhã
           outra vez
           por toda a parte
           lá estava o sol
           escarlate.

           […]

           Não quero mostrar medo.
           Recuo para o quarto.
           Seus olhos brilham no jardim.
           Avançam mais.
           Pelas janelas,
           pelas portas,
           pelas frestas
           a massa
           solar vem abaixo
           e invade a minha casa.

           […]

           Quem me mandou berrar ao sol
           insolências sem conta?
           Contrafeito
           me sento numa ponta
           do banco e espero a conta
           com um frio no peito.

            […]

            Conversamos até a noite
            ou até o que, antes, eram trevas.
            Como falar, ali, de sombras?
            Ficamos íntimos,
            os dois.
            Logo,
            com desassombro
            estou batendo no seu ombro.
            E o sol, por fim:
            “Somos amigos
            pra sempre, eu de você,
            você de mim.
            Vamos, poeta,
            cantar,
            luzir
            no lixo cinza do universo.
            Eu verterei o meu sol
            e você o seu
            com seus versos.”
            O muro das sombras,
            prisão das trevas,
            desaba sob o obus
            dos nossos sóis de duas bocas.
            Confusão de poesia e luz,
            chamas por toda a parte.
            Se o sol se cansa
            e a noite lenta
            quer ir pra cama,
            marmota sonolenta,
            eu, de repente,
            inflamo a minha flama
            e o dia fulge novamente.
            Brilhar para sempre,
            brilhar como um farol,
            brilhar com brilho eterno,
            Gente é pra brilhar
            que tudo o mais vá prá o inferno,
            este é o meu slogan
            e o do sol.

            (Tradução e “intradução” abaixo de Augusto de Campos)

           maiakovski

            Hino ao crítico

            Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
            Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
            Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
            A mãe chorou e o batizou: crítico.

            O pai, recordando sua progenitura,
            Vivia a contestar os maternais direitos.
            Com tais boas maneiras e tal compostura
            Defendia o menino do pendor à sarjeta.

            Assim como o vigia cantava a cozinheira,
            A mãe cantava, a lavar calça e calção.
            Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
            E a arte de penetrar fácil e sem sabão.

            Quando cresceu, do tamanho de um bastão, 
            Sardas na cara como um prato de cogumelos, 
            Lançaram-no, com um leve golpe de joelho, 
            À rua, para tornar-se um cidadão.

            Será preciso muito para ele sair da fralda? 
            Um pedaço de pano, calças e um embornal. 
            Com o nariz grácil como um vintém por lauda 
            Ele cheirou o céu afável do jornal.

            E em certa propriedade um certo magnata 
            Ouviu uma batida suavíssima na aldrava, 
            E logo o crítico, da teta das palavras 
            Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.

            Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco 
            Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam, 
            E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso 
            Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.

            Mas se se infiltra na rede jornalística 
            Algo sobre a grandeza de Puchkin ou Dante, 
            Parece que apodrece ante a nossa vista 
            Um enorme lacaio, balofo e bajulante.

            Quando, por fim, no jubileu do centenário, 
            Acordares em meio ao fumo funerário, 
            Verás brilhar na cigarreira-souvenir o 
            Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.

             Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
             E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
             Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
             A nossa roupa branca nos artigos?

             (Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

                                      azul
 
             LÍLITCHKA!
             Em lugar de uma carta

             Fumo de tabaco rói o ar. 
             O quarto – 
             um capítulo do inferno de Krutchônikh. 
             Recorda – 
             atrás desta janela
             pela primeira vez
             apertei tuas mãos, atônito.
             Hoje te sentas,
             no coração – aço.
             Um dia mais
             e me expulsarás,
             talvez, com zanga.
             No teu hall escuro longamente o braço,
             trêmulo, se recusa a entrar na manga.
             Sairei correndo,
             lançarei meu corpo à rua .
             Transtornado,
             tornado
             louco pelo desespero.
             Não o consintas,
             meu amor, meu bem,
             digamos até logo agora.
             De qualquer forma
             o meu amor
             – duro fardo por certo –
             pesará sobre ti
             onde quer que te encontres.
             Deixa que o fel da mágoa ressentida
             num último grito estronde.
             Quando um boi está morto de trabalho
             ele se vai
             e se deita na água fria.
             Afora o teu amor 
             para mim
             não há mar,
             e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
             Quando o elefante cansado quer repouso
             ele jaz como um rei na areia ardente.
             Afora o teu amor 
             para mim
             não há sol, 
             e eu não sei onde estás e com quem.
             Se ela assim torturasse um poeta,
             ele trocaria sua amada por dinheiro e glória,
             mas a mim
             nenhum som me importa
             afora o som do teu nome que eu adoro.
             E não me lançarei no abismo,
             e não beberei veneno,
             e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
             Afora
             o teu olhar
             nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
             Amanhã esquecerás
             que eu te pus num pedestal,
             que incendiei de amor uma alma livre,
             e os dias vãos – rodopiante carnaval –
             dispersarão as folhas dos meus livros… 
             Acaso as folhas secas destes versos
             far-te-ão parar, 
             respiração opressa?

             Deixa-me ao menos
             arrelvar numa última carícia
             teu passo que se apressa.

             (Tradução de Augusto de Campos)

          Por André Dick

          Vladímir Maikóvski é um dos nomes mais significativos da poesia russa e não por acaso foi traduzido por Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, num volume com seu nome, lançado pela Perspectiva. Neste livro, há poemas representativos desse poeta nascido em 1893, na aldeia de Bagdádi, nos arredores de Kutaíssi (hoje Maiakóvski), na Geórgia (os dados estão na antologia Poesia russa moderna, onde também há poemas dele, dos mesmos tradutores citados). Depois de perder o pai, que era guarda-florestal, a família do poeta ficou na miséria e veio para Moscou. Impressionado com as obras de cunho socialista desde cedo, ingressou ainda jovem na facção bolchevique do Partido Social-Democrático Operário Russo, dedicada aos interesses do operário do proletariado e dos camponeses. Após estudar na Escola de Belas Artes – onde formou as ideias do cubo-futurismo com poetas como Khlébnikov –, de onde foi expulso, Maiakóvski peregrinou pela Rússia. Após a Revolução de Outubro, aderiu ao novo regime – que acabou cometendo barbáries como qualquer regime. Durante a Guerra Civil, se dedicou a legendas e desenhos para cartazes de propaganda. Editou também a revista LEF (de Liévi Front, Frente de Esquerda), que reuniu os artistas de esquerda com a pretensão de revolucionar a sociedade. Fez, além disso, inúmeras viagens lendo seus ensaios para grandes plateias, além de ter viajado pela Europa Ocidental, pelo México e pelos Estados Unidos.

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          A obra de Maiakóvski é constituída por poemas que mesclam justamente o coloquial e o pretensamente erudito, fundindo tudo numa linguagem única, na qual, ao mesmo tempo em que trabalha com imagens, lida com uma sonoridade apurada. Sintetiza os caminhos adotados pela poesia russa moderna: uma mescla da linguagem coloquial com estruturas e rimas exatas (ver, para isso, o ensaio “Maikósvki: evolução e unidade”, escrito por Boris Schnaiderman para o volume dedicado ao poeta). O linguista Roman Jakobson, no ensaio que dedicou ao poeta e amigo, “A geração que esbanjou seus poetas” (que ganhou uma tradução da Cosac Naify, com ótima versão de Sonia Regina Martins Gonçalves, que assina também o posfácio), diz que é diretamente da vida cotidiana que o poeta tira a arquitetura para seu trabalho. Ele utiliza, por meio dessa linguagem, referências a movimentos e grupos, além de personalidades políticas. Como escreve Augusto de Campos, em Poesia da recusa, ele foi, sem dúvida, o “maior porta-voz, em poesia e vida, da relação conflitual entre poética e política, ética e estética” que consumiu “a geração que dissipou seus poetas”, à qual se refere Roman Jakobson no seu conhecido ensaio. Esta geração inclui Gumilióv (1886-1921), Blok (1890-1921), Khlébnikov (1855-1922), Iessiênin (1895-1925) e Maiakóvski, que se suicidou. Os poemas do russo mostram um conflito constante entre vida e morte, como observa Jakobson. Mostram como ele estava condicionado pela visão do “suicídio” e, ao mesmo tempo, de sua obsessão por não morrer. A decisão de Maiakóvski se deu após o isolamento que teve com a chegada ao poder de Stalin. Além disso, se deveu ao resultado do sonho revolucionário decretado pela violência do regime bolchevique. Para o “poeta da linguística”, como Jakobson era visto pelos concretos, Maiakóvski aproximou a vida da obra – afastadas pelo formalismo russo, do qual Jakobson fazia parte. Para ele, Maiakóvski sabia que cada ação sua era parte de um projeto maior: o poético. Ele, assim, “compreendia perfeitamente a estreita ligação entre biografia e poesia”.

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          O poeta russo desejava a existência de uma nova maneira de se organizar a sociedade – por isso, era visto como revolucionário, mas não restrito ao pensamento marxista (em “A plenos pulmões”, estão os versos: “Nós abríamos Marx / volume após volume, / janelas de nossa casa / abertas amplamente, / mas ainda sem ler / saberíamos o rumo! / onde combater, / de que lado, / em que frente”). Afirmava que o poeta deveria manter o nível de sua obra, seja qual fosse o público para o qual se dirigia, ou seja, ele dizia que o povo precisava ser educado para compreender uma arte mais difícil. Em alguns momentos, no entanto, teve sua poesia relativamente enfraquecida pelo discurso revolucionário. Como escreve Augusto de Campos, no ensaio “Maiakóvski, 50 anos depois” (do volume Maiakóvski), “a parte que mais envelheceu, dessa poesia, são os versos políticos de tom apologético”. Segundo ele, em Maiakóvski, “o civismo programado dos poemas de ‘encargo social’ é tão menos tolerável quanto mais decepcionante se revelou a utopia soviética”. O que salvou a poesia de Maiakóvski do “aniquilamento pelo discurso político”, segundo Augusto, foi a “rebeldia selvagem de seu talento”.
          Não poderia apenas se basear em ideias para a circulação corrente, como Oswald, no modernismo de 22, queria, ao afirmar que o povo ainda experimentaria o biscoito fino que ele fabricava. Ou seja, como observa o crítico italiano Alfonso Berardinelli, em Da poesia à prosa, a poesia de Maiakóvski pretendia, por um lado, “irromper e sabotar a tradição lírica”, e, por outro, “olhar de frente um público e um destinatário novos: levar em conta sua situação, sua exigência de luta, seu ponto de vista específico, suas necessidades culturais”. No seu poema corrosivo “Incompreensível para as massas”, escrevia: “O livro bom / é claro / e necessário, / a mim, / a vocês, / ao camponês / e ao operário”. No entanto, Maiakóvski queria realmente revolucionar, e não fazia uma pregação meramente ideológica, nem mantinha-se à parte do discurso que adotava, aproveitando uma vida burguesa. Escrevia em “A plenos pulmões”: “Camarada vida, / vamos, / para diante, / galopemos / pelo quinquênio afora. / / Os versos / para mim / não deram rublos, / nem mobílias / de madeiras caras. / Uma camisa / lavada e clara, / e basta, — / para mim é tudo. / Ao / Comitê Central / do futuro / ofuscante, / sobre a malta / dos vates / velhacos e falsários / apresento /em lugar / do registro partidário / todos / os cem tomos / dos meus livros militantes”. Maiakóvski entendia dos “velhacos e falsários” como poucos. Hoje, infelizmente, alguns  “velhacos e falsários” continuam utilizando mobílias de madeiras caras e continuam colocando a ética – ou a falta de – à disposição do registro partidário, mas como se estivessem fora do sistema.

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          Jakobson afirma como Maiakóvski se construiu sobre uma dialética em que o futuro era imaginado, mas não confirmado – e, muito mais, evidenciava o imaginário ao seu redor. Quando de sua morte, Stalin afirmou que ele foi o maior poeta russo. Isso teria sido uma segunda morte para o poeta – acreditava-se que os livros de Maiakóvski estavam à venda; pelo contrário, suas ideias, realmente militantes, não estavam à venda para nenhum partido, nem a nenhuma voz pretensamente à frente das demais. Isso, por mais que, como Berardinelli lembra, o poeta russo comparasse a poesia a uma indústria, “com processos produtivos e finalidades sociais (ele elabora a ideia de ‘mandato social’: em cada momento particular, depois de ter acumulado matéria-prima e obtido os meios de produção, o poeta deve identificar o problema social para cuja formulação e solução a obra de arte é necessária ou útil”). É curiosa esta ideia porque o poeta moderno sabe que sua arte é, para a sociedade e para a economia, “inútil”. Saber que Maiakósvki tentou este caminho mostra que seus posicionamentos poéticos podem não ter tido sucesso no plano prático (tendo sido considerado alguém excessivamente hermético pela parcela da esquerda conservadora e pelo povo); no entanto, o valor poético reconsidera qualquer fracasso, e a ideia do poema como algo a ser construído – com uma estrutura a ser erguida, como na arquitetura – pode remeter ao brasileiro João Cabral. No plano prático, afinal, eram muitos contra o qual lutar (para Berardinelli, a “nova classe” revolucionária no poder, a pequena burguesia de empregados do Estado, os funcionários do partido e burocratas da economia). Depois das revoluções – ainda lembra Berardinelli –, Joseph Roth, em artigos enviados da Rússia para o Frankfurter Zeitung: “O novo burguês é um burguês revolucionário […] até mais revolucionário do que o operário” [Grifos do autor]. Por sua vez, a “mais-valia” maiakovskiana era sua poesia – e apenas esta “mais-valia” permanece. 
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          Jakobson se pergunta, em seu ensaio: “O poeta que adianta e apressa o tempo, imagem constante em Maiakóvski, não seria a verdadeira imagem do próprio Maiakóvski?”. Para Jakobson, mesmo depois da morte, o “terrestre eterno” é o sonho do poeta – por meio das ideias, realizações, das canções além das palavras. Daí a ligação tão vital entre poesia e revolução. A poesia não imagina, em Maiakóvski e nesses poetas, uma Revolução definitiva, mas, através de sua percepção, tem um pouco o intuito de transformar o cotidiano, sem estar presa a manifestos ou ideologias, mas às revoluções imperceptíveis das ideias. Maiakóvski acabaria se matando com um tiro no peito – o que mostrava, de forma trágica, o desejo de não colocar mais sua vida à disposição de ideias subvertidas em prol de falsários que fingem pregar o socialismo. Hoje, ele é uma referência – e os falsários que fingem pregar o socialismo apenas uma repetição monótona da história que não seguem, a “medíocre mesnada de medianeiros médios”, como escreve o poeta em “Incompreensível para as massas”. Não por acaso, na quinta parte de “Fragmentos”, Maiakóvski afirma: “Sei o pulso das palavras, a sirene das palavras”. Ele sabia – os que fingem saber apenas escutam.

          Por André Dick

          No dia 7 de junho, ontem, a ausência de Paulo Leminski, nascido em 1944, completou 20 anos. Para quem se considerava um cachorro louco, não aconteceu o que ele escrevia num de seus poemas de La vie en close:

          um dia sobre nós também
          vai cair o esquecimento
          como a chuva no telhado 
          e sermos esquecidos
          será quase a felicidade

          Leminski foi um escritor múltiplo: além de poeta, traduzia (indo de Petrônio a James Joyce) e escrevia ensaios (concentrados nos dois volumes de Anseios crípticos), artigos e romances, além de letras de música. Nascido numa família em que o pai, de origem polaca, era militar, e a mãe, de origem negra, era filha de um militar, estudou para ser monge beneditino no Colégio São Bento, em São Paulo, onde chegou a escrever um livro sobre a ordem. No entanto, acabou seguindo o caminho da poesia – em meio aos agitos culturais e políticos dos anos 1960 e 1970. Sua obra poética reúne seis livros básicos (Não fosse isso e era menos / não fosse tanto e era quase, Polonaises – reunidos na coletânea de Caprichos & relaxos –, Distraídos venceremos e os póstumos La vie en close e O ex-estranho), além de Winterinverno. Pode-se dizer que seus livros em prosa também são de poesia: Catatau e Metaformose. Além disso, foi um autor de biografias inteligentes (de Cruz e Souza, Matsuo Bashô, Jesus Cristo e Leon Trotski), reunidas no livro Vida.

                              paulo-leminski
          No final da década de 70 e durante todos os anos 80, considerava que os grandes poetas estavam na música popular brasileira. Assim, era amigo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Walter Franco e Jorge Mautner, entre outros. Associado à diversão tropicalista ou pós-tropicalista, no entanto, seu tom de melancolia era patente tanto nos poemas quanto em textos. Numa homenagem aos 80 anos de Edgard Braga, escreveu: “Poeta que todos querem ser, se chegarmos até lá”. Consciência de que, em vida, não chegaria lá.
          Associando o popular e o erudito, Leminski gostava grafitar pelos muros de Curitiba e tinha opiniões polêmicas em relações a grandes autores: dizia ler João Cabral de Melo Neto “por dever de ofício” (embora viesse a mudar mais tarde de ideia); Fernando Pessoa lhe transmitia “a sensação de saltos ornamentais numa piscina vazia”; de Carlos Drummond de Andrade, tirava “só um pouco, para ver o barato que dá” (numa típica linguagem corrente, que não aplicava tanto em seus poemas, no entanto). 
          Entre seus maiores amigos, estavam os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Sobre eles, Leminski falava com interesse: “Eu tinha 17 anos quando entrei em contato com Augusto, Décio e Haroldo. O bonde já estava andando. A cisão entre concretos paulistas e neo-concretos cariocas já tinha acontecido. Olhei e disse: são esses os caras. Nunca me decepcionei. Neste país de pangarés tentando correr na primeira raia, até hoje eles dão de dez a zero em qualquer um desses times de várzea que se formam por aí”.
          O poeta paranaense conheceu os poetas do grupo Noigandres, em 1963, na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda. Em seguida, publicaria, em dois exemplares da revista Invenção, alguns poemas, misturando, segundo a apresentação de Décio Pignatari, “a pesquisa concreta da linguagem com um sentido oswaldiano de humor”. Além disso, Leminski quis, à sua maneira, dialogar com os concretos, com seu ousado Catatau, um romance experimental na linha de Ulisses e Finnegans wake, de James Joyce, e de Galáxias, do inspirador Haroldo de Campos. Para Haroldo, Leminski é o nome mais representativo “de uma certa geração”, “dono de uma experiência poética de vida extraordinária, mescla de Rimbaud e monge beneditino”. Haroldo o cita em dois poemas de seu livro Crisantempo – No espaço curvo nasce um, um deles chamado “paulo leminski”, sobre a partida dele: “samurai mestiço / te recordo / polaco polilingue / nos anos 60 / (…) / você / partiu agora / entremeado às estrelas de iessiênin / enquanto o crepúsculo roxo / de tua cidade simbolista te chora / você sonha / como o poeta japonês / o após-sonho dos samurais mortos” – aproximando-o da poesia japonesa de Bashô e da poesia russa dos poetas que cometeram suicídio tão jovens, como Iessiênin e Maiakóvski, os quais Leminski admirava.
          Hoje, pode-se dizer que, de certo modo, Leminski é visto, hoje, como um poeta incompetente por conservadores e um poeta mais conservador pelos poetas de vanguarda, situando-se, paradoxalmente, entre esses dois lados. Leminski guarda proximidade com a poesia alternativa dos anos 70, como a de Cacaso e Chacal, apenas no poema curto, mas sua linguagem era mais formalista. A poesia concreta, nos anos 1970, foi combatida pela dita poesia marginal, pois era vista como um mal à expressão mais espontânea. Em Flora Süssekind, vemos que Leminski aposta numa “interiorização”. Em meio a esse panorama de comercialização de quase-diários, embora os marginais distribuíssem seus livros mimeografados contra o domínio das editoras, os irmãos Campos, por exemplo, só publicaram seus primeiros livros de poemas comerciais depois de meados dos anos 70. Na publicidade, Leminski agia, com amigos, para compor suas obras underground, sem nenhum patrocínio ou cuidados especiais – nesse ponto, ele tinha algo de poeta marginal. 
          Quanto à mistura entre o coloquial e a escrita, Leminski adaptava o coloquial a uma forma; os marginais, por sua vez, queriam ser apenas coloquiais, para fazer uma representação do cotidiano ao leitor, inclusive aproveitando-se de fragmentos que lembrassem conversas. Leminski possuía outro elemento importante: seu diálogo não era apenas com a tradição da poesia brasileira – sobretudo com o modernismo de 22 –, mas com poetas estrangeiros, na prosa e na poesia, como Mallarmé, Joyce e Rimbaud. Leminski queria conhecer autores estrangeiros e, dentre os marginais, salvo a exceção de Ana Cristina Cesar (uma marginal apenas por circunstância de ter nascido naquela geração de poetas e ter convivido com alguns deles, e que não à toa, pelo próprio interesse em ver além das linhas brasileiras, estudou as traduções de Augusto de Campos), não havia ninguém muito interessado em conhecer a tradição moderna estrangeira, apenas, quando muito, os modelos de 22.
          É preciso ter lido Leminski de forma apressada para afirmar que foi um mestre à frente do seu tempo, ou um nome de vanguarda, outro viés que lançam sobre sua obra. Primeiro porque a vanguarda não confere a ninguém o fato de ser um grande criador. Segundo porque estar à frente do tempo, no sentido de revolução artística, depois das vanguardas do século XX, parece mais uma utopia, e se vê, tanto pela obra poética quanto pela obra em crítica, que Leminski dialogou com muitos autores (na maioria das vezes, com aqueles que não veem nenhuma semelhança), não partindo do fato de ser um gênio isolado. Isso também acabou por lhe conferir uma aura romântica e que mesmo Leminski negava – basta ler seus depoimentos e textos críticos. Isso porque o exercício poético, com ou sem consciência do autor, sendo ele moderno ou não, é sempre distante da sociedade. Leminski, embora quisesse participar ativamente do meio social, tinha uma necessidade de fugir dele – a escrita era esse escape.

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          No caminho contrário, pode-se levar Leminski para o posto que muitos querem colocá-lo: de um maudit ou um romântico iluminado, o que o libera da criticidade moderna, aquela que assinalam como sendo a do poeta preso na torre de marfim, o qual se compõe por meio de leituras – como Leminski sempre se construiu, desde sua fase inicial, como relata em seu depoimento “Sobre poesia e conto”. Leminski às vezes é visto como um cancioneiro popular, que quis atrair multidões, dialogar de forma pop. Quanto a isso, deixa claro, com ironia: “eu queria tanto ser / um poeta maldito / a massa sofrendo / enquanto eu profundo medito / / eu queria tanto / ser um poeta social / rosto queimado / pelo hálito das multidões / / em vez / olha eu aqui / pondo sal / nesta sopa rala / que mal vai dar para dois”. Ou seja, ele parte do desejo de ser popular (um maldito ou um poeta social), ao contrário da imagem do poeta moderno. Está em casa, onde compartilha com outra pessoa seu fracasso, vendo a situação com ironia. Embora queiram, Leminski não sobrevive sem suas leituras, sem suas influências. O poema que define exemplarmente, a meu ver, essa ligação de Leminski com a tradição difícil, que quis enfrentar, é o seguinte:

          féretro para uma gaveta

          esta a gaveta do vício
          rimbaud tinha uma
          muitas hendrix
          mallarmé nenhuma

          esta a gaveta
          de um armário impossível

          A gaveta de Mallarmé, ao contrário das de Hendrix e Rimbaud, é a gaveta do armário possível, a gaveta que não depende do imaginário das drogas, mas corresponde à radicalidade longe da mitologia do poeta romântico, a qual ironiza no seguinte poema:

          um dia desses quero ser
          um grande poeta inglês
          do século passado
          dizer
          ó céu ó mar ó clã ó destino
          lutar na índia em 1866
          e sumir num naufrágio clandestino

          O poeta não quer ser um clássico no sentido do romântico ingênuo, que fala sobre as belezas da natureza num tom pretensamente emocionado: “ó céu o mar ó clã ó destino”. Era essa a objetividade que Leminski procurava: “um poema / que não se entende / é digno de nota / / a dignidade suprema / de um navio / perdendo a rota”. Nesse pequeno poema, constata-se a sonoridade minimalista de Leminski, negando o poema que não se entende (o surrealista): poema combinando com suprema; dIgNO com NavIO; nota com rota; e digno anunciando o desdobramento dignidade, num breve escrito aparentemente descartável e feito “por acaso”. A aparente rapidez – como Maiakóvski, Leminski queria pressa de futuro – costurava o encerramento da melancolia e a matemática vocabular: “das coisas / que eu fiz a metro / todos saberão / quantos quilômetros / são / / aquelas / em centímetros / sentimentos mínimos / ímpetos infinitos / não?”. Trata-se, nesses poemas, de uma estrutura de palavras, evitando o simples jogo das palavras. Na estrutura sobre a qual Leminski delimita sua poesia, percebe-se, ao mesmo tempo, a melancolia e a metalinguística: “eu / quando olho nos olhos / sei quando uma pessoa / está por dentro / ou está por fora / / quem está por fora / não segura / um olhar que demora / / de dentro do meu centro / este poema me olha”.

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          Há nisso, sem dúvida, uma identificação de Leminski com os poetas concretos. Talvez seja para eles o poema

           Bom dia, poetas velhos.
           Me deixem na boca
           o gosto de versos
           mais fortes que não farei.

           Dia vai vir que os saiba
           tão bem que vos cite
           como quem tê-los
           um tanto feito também,
           acredite.

           Essa negatividade – de os mestres deixarem com ele “o gosto de versos / mais fortes que não farei” – mostra não só a impossibilidade que Leminski sentia ao enfrentar o rigor dos concretos, mas seu bom humor diante dessa impossibilidade. No início de sua trajetória, em 1968, no entanto, Leminski havia publicado o longo – com mais de 100 versos – “Poema com aparato persa” no Jornal do Brasil, com um ritmo singular, estranho, tendendo mais para o barroquismo de Catatau do que para seus poemas feitos a partir dos anos 1980. Além disso, numa entrevista de 1978, Leminski já falava sobre como o radicalismo das vanguardas estava ultrapassado historicamente (Haroldo falaria isso em seu ensaio “Poesia e modernidade. O poema pós-utópico”, em 1984).

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          O poeta estava interessado em valorizar o público, e por isso até valorizou, a determinada altura, a visão populista de Ferreira Gullar (mas, se lermos a entrevista dada à revista Quem, do mesmo ano da carta a carta Régis Bonvicino, publicada em Envie meu dicionário, Leminski ataca Gullar justamente por essa tendência ao popular). Está interessado em tirar a expectativa do novo para a poesia – é o momento maiakovskiano do poeta paranaense, de desilusão diante do diálogo com o leitor. Quando escreve “quero fazer uma poesia que as pessoas entendem. / que não precise dar de brinde um tratado sobre Gestalt ou uma tese de jakobson sobre as estruturas subliminares dos anagramas paronomásticos…”, Leminski contraria o seu próprio trabalho de rigor verbal, que resultaria num poema como “om/zaúm p/ roman óssipovitch jákobson”, referencial para salientar a sensibilidade da teoria linguística de Jakobson – que não por acaso escreveu sobre o poeta russo em seu ensaio “A geração que esbanjou seus poetas” – e de sua trajetória:

                              EU

               O mundo desabava em tua volta,
          e tu buscavas a alma que se esconde
                no coração da sílaba SIM.
                Consoante? Vogal? Um trem para Oslo.
          Pares, contrates, Moscous, línguas transmentais.
                 Na noite nórdica, um rabino, viking,
          sonha um céu de oclusivas e bilabiais.

                             RO

               Um mundo velho, o velho mundo, árvore no outono,
           Hitler entra em Praga, Rússia, revolútzia,
               até nunca mais!
               A lábiavelar tcheca
            só vai até os montes Urais.

                              PA

               Roma, Rôman, romântico romã,
            Jak, Jákob, Jákobson, filho de Jacó,
               preservar as palavras dos homens.
               Enquanto houver um fonema,
             eu nunca vou estar só.

              Através desse trabalho linguístico, longe do social, voltado a sonoridades, revoluções e linguagens da modernidade russa, Leminski direcionava seu olhar para a “flor ausente de todos os buquês”, a flor mallarmeana (“uma rosa nas trevas”). A tradição, como veremos, afinal, cria uma analogia com essas flores preservadas ou desgastadas pelo tempo.
          Por isso, se há uma analogia entre Leminski e algo, este é a “flor”. A flor, em Leminski, é quase sempre negativa: “nada que o sol / não explique / […] / não tem chuva / que desbote essa flor”. Essa flor sugere a flor ausente do buquê de Mallarmé, uma flor que prefere não desbotar, por medo do sol, mesmo podendo receber chuva. Em outros instantes, as flores, na poética de Leminski, atuam como perífrases para a infelicidade ou a ferida: “Nada com nada se assemelha. / Qual seria a diferença / entre o fogo do meu sangue / e esta rosa vermelha”; “(…) / e a forte flor que a faca faz / na fraca carne”. Ou do espanto, a impossibilidade de se inserir no mundo:

          gardênias e hortênsias
          não façam nada
          que me lembre
          que a este mundo eu pertença

           deixem-me pensar
           que tudo não passa
           de uma terrível coincidência

           No poema “Transpenumbra”, resultado do afastamento de Josely Vianna Baptista da vida do poeta, como é relatado por Toninho Vaz na biografia Paulo Leminski – O bandido que sabia latim, está escrito:

                    tempestade
            que passasse
                   deixando intactas as pétalas
            você passou por mim
                           as tuas asas abertas
                                 passou
            mas sinto ainda uma dor
            no ponto exato do corpo
             onde tua sombra tocou
              que raio de dor é essa
                que quanto mais dói
                         mais sai sol?

          Interessante perceber, nessa peça, como Leminski compara seu corpo às pétalas. A figura que se afasta é a tempestade da figura próxima, feminina. No entanto, a tempestade, que passou deixando essas pétalas intactas – ou o corpo intacto – deixa uma sombra que continua a tocá-lo, trazendo uma dor que quanto mais dói mais deixa sair sol. Observe-se que a expressão “raio de dor” subentende a tempestade, mas utiliza o vocábulo “raio” em outro sentido, aqui de dor extrema, cortante. Ao mesmo tempo, se o poema for visto atentamente, a organização dos versos na página lembra tanto um raio quanto uma flor crescendo debaixo para cima, até sobrar uma única palavra (tempestade), ou uma pétala. Essas analogias no poema entre “corpo” e “pétalas”, ou a dualidade presente – “tempestade / sol”, “corpo intacto / dor”, “asas (de pássaro) / tempestade”, “pessoa / sombra” –, fazem de “Transpenumbra” um poema essencial para mostrar a eficácia de Leminski. Ainda em outro poema nunca incluído em seus livros, Leminski se pergunta: “Invoco forças poderosas. / Quando vou poder / transformar minhas ruínas em rosas?”. A pergunta, mais do que destacar a presença da flor como representação da visão poética se alia às ruínas (um signo, como se sabe, da modernidade de Walter Benjamin).

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          Mas as flores podem surgir, também, para mostrar a permanência: “Nem tudo, / sentir fica. / Fica como fica a magnólia, / magnífica” ou o amanhecer: “cada manhã que nasce / me nasce / uma rosa na face”; “pelo / branco / magnólia / / o / azul / manhã / vermelho / olha” – este com um vazio branco separando na vertical as palavras. O confronto, nesse último, entre o branco (da magnólia) e o vermelho (da manhã), intermediados pela neutralidade – triste – do azul (outro signo presente em Mallarmé),  revela com clareza o interesse de Leminski pela composição da flor como um elemento que o faz se ausentar da palavra no papel. Ou a ligação entre a flor e o espaço que expande, em “In honore ordinis Sancti Benedicti”: “o canto o incenso o silêncio / e no interior do mais pequeno / abre-se profundo / a flor do espaço mais imenso”. E a revelação da flor como iluminação diária, em “Sintonia para pressa e presságio: “Escrevia no espaço. / Hoje, grafo no tempo, / na pele, na palma, na pétala, / luz do momento”. A pétala da flor é a “luz do momento” – num tempo em que o poeta já tentava, em vão, curar cicatrizes e queimaduras. Em Caprichos & relaxos, seu livro de poemas mais conhecido, publica alguns de seus versos principais:

          um dia
          a gente ia ser homero
          a obra nada menos que uma ilíada

          depois
          a barra pesando
          dava pra ser aí um rimbaud
          um ungaretti um fernando pessoa qualquer
          um lorca um éluard um ginsberg

          por fim
          acabamos o pequeno poeta de província
          que sempre fomos
          por trás de tantas máscaras
          que o tempo tratou como a flores

           Em relação a esse poema, Leyla Perrone-Moisés afirma que “é exatamente aí que ele (Leminski) ganha a parada”. Segundo ela, a “viagem pelos grandes textos, num primeiro tempo, reduz o poeta provinciano a sua “insignificância”; mas, abrindo seu desconfiômetro, permite-lhe safar-se da repetição involuntária ou degradada. (…) Ao assumir seu provincianismo, ele deixa de ser provinciano, porque provinciano é justamente aquele que nem desconfia”. É curioso que Leminski faça uma analogia entre a máscara do poeta e as flores desgastadas pelo tempo. E o mais interessante: as máscaras (que representam os poetas) são como as flores. Ou seja, elas podem se desgastar – se não houver a apropriação e a renovação através da releitura. Para Leminski, o autor é uma criação moderna. Mas, se ele não acreditava na figura do Autor, apoiava a figura do autor, do “poeta de província”, capaz de dispersar sua identidade. Ele talvez pensasse que, ao insistir nessa linguagem sintética, estava revelando ao leitor a sua predisposição em enfrentar aquela tradição na qual gostaria de se inserir: na tradição do poeta com consciência de linguagem, se não levada à mais extrema radicalidade – pois já impossível, a do Un coup de dés (“que coisa pode ser feita que não seja pura perda?”, ele se pergunta em relação ao poema de Mallarmé e ao Finnegans wake, de Joyce) –, pelo menos a que demonstra diálogo com o difícil.

                        paulo-leminski-jovem
          Não por acaso, em Metaformose, ele se transmutaria em Narciso. O livro foi lançado postumamente, em 1994, mostrando o Leminski admirador do imaginário grego. Em Metaformose, a história se dá por dois ângulos: o lado interno de Narciso, no qual reina a confusão, e o lado externo, nas águas onde ele contempla dezenas de personagens da mitologia grega – Hércules, Sísifo, Tirésias, Ícaro, Dédalo… Seu olhar narcisista aguarda a própria beleza passar pelas águas, para beber seu rosto. Afoga-se. Narciso representa o desejo de se exterminar, em vida, de mostrar às águas que tem dentro de si um mito com vários mitos a ser afogado e, portanto, libertado. Leminski não quer saber de leis em sua novela-ensaio, como não quis saber delas para sua vida. Seu livro expande a visão do leitor, à procura sempre de espaços interiores. Ao enxergar a mitologia grega nas águas de Narciso, o leitor não é conduzido por frases presas ou sem poeticidade. É conduzido por um verdadeiro “riocorrente” – e não se prende a nada.
          Sabia Leminski, afinal, que suas fábulas eram, no fundo, poemas. Vemos clara poesia em trechos como estes abaixo:

           Começa a fazer frio, o vento do entardecer vai apagando a luz do dia, as sombras saem debaixo das folhas, das pedras, do coração do mato.
          O rosto de Narciso vai escurecendo na água, onde logo brilham estrelas.
          A fábula é o desabrochar da estrutura, arquétipo em flor. Uns são transformados em flores, outros são transformados em pedra, outros ainda, se transformam em estrelas e constelações.
           De olho nas águas, Narciso vê a Medusa, fecha os olhos, e mergulha na noite onde as fábulas sonham fábulas, rainhas matam os reis, árvores correm ao vento, feiticeiras transformam marinheiros em porcos.
           A brisa da tarde arrepia a pele da fonte, ao longe, a voz da ninfa geme como a pomba, Narciso, Narciso.
          A vida de Zeus cabe dentro de uma fábula, casca de noz boiando nas águas de Narciso, o velho tanque, o sapo salta, o som da água, eco, eco, Eco. Fábulas não são parábolas, nenhum sentido oculto, toda fábula é feita de luz.
           Rios passam, não passa este meu rosto. Esta carne se vai, o reflexo demora mais um pouco, esquecer é um dom dos deuses.
           A luz está fraca, as ondas destas águas parecem cansadas, como a mulher depois do orgasmo. Sinto diminuir a força de tudo, as pedras sobem lentamente como plumas, já sem força para se agarrar no chão.

          O caráter imaginativo de Leminski, como se vê, inspeciona cada movimento do universo proposto. Como poeta, afinal, ele foi um descobridor de palavras, e, atrás da máscara, que o tempo tratou como a flores, emerge alguém cuja memória não se desgasta com o passar do tempo.

          * Texto também publicado, no dia 6 de junho, pelo site de literatura Cronópios (http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=4027)       

          Amanhã (na continuidade do dossiê sobre poetas russos) um ensaio sobre a poesia de Maiakóvski.

          Por André Dick 

          No volume Poesia da recusa, Augusto de Campos relembra as palavras de Valéry sobre o trabalho de Mallarmé: “O trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por recusas. Pode-se dizer que ele é medido pelo número de recusas. […] O rigor das recusas, a quantidade das soluções que são rejeitadas, as possibilidades que o escritor se proíbe, manifestam a natureza dos escrúpulos, o grau de consciência, a quantidade do orgulho e, também, os pudores e os diversos temores que se pode sentir com relação aos julgamentos futuros do público. É nesse ponto que a literatura atinge o domínio da ética”.

                               poetas-russos
          No caso de alguns poetas russos, trata-se de uma recusa não só a posições políticas (ou seja, a fuga a qualquer direita ou a qualquer esquerda que se proponha, sobretudo dominada por posições autoritárias ou pertencentes ao “diálogo com o povo”), mas à vida meramente sistematizada. Não por acaso, Óssip Mandelstam – um dos poetas mais contundentes de Poesia da recusa – acabou nos campos de concentração de Stalin, postando-se contra a vida burocrática do intelectual que trabalha para as ideias do governo, em busca de privilégios e aceitação popular. Esta recusa é representada, em outros casos (como os de Iessiênin, Maiakovski e Marina Tzvietáieva), pelo suicídio, obviamente uma representação do desespero existencial de seus poetas e não uma sublimação literária, para se alcançar a eternidade ou tornar os escritos de quem se matou em algo de mais valor, ou entendê-lo como obrigação do sujeito infeliz, ou do poeta que deseja fugir ao sistema. A recusa não implica, também, escolher um caminho de pureza, de distanciamento do mundo, mas sim o de privilegiar o diálogo com a tradição, com o mundo – mas de forma não ideológica, comprometida. Envolve um certo desalento da vida, como em “Cassino”, de Óssip Mandelstam: “Não gosto de prazer premeditado. / O mundo, às vezes, é um borrão escuro. / Eu, meio bêbado, estou condenado / A ver as cores de um viver obscuro”. Ou na terceira parte” do poema “Veneza”, de Aleksandr Blok: “O barulho da vida já não dura. / A maré de inquietudes se quebranta. / E no veludo negro o vento canto / Minha vida futura. / / Talvez despertarei noutro lugar, / Quem sabe nesta terra entristecida, / E algumas vezes hei de suspirar / Pensando em sonho nesta vida?”. Mesmo quando a poesia se destina a criticar a própria poesia, isso é uma crítica da reflexão, como se pode ver em versos de Mandelstam (foto abaixo), no excepcional “Silentium”:
 
          Ainda não é nascida,
          É só canção e poesia,
          E está em plena harmonia
          Com tudo o que é vida.

          O seio da onda arfa em paz,
          Mas como um louco brilha o dia
          E a espuma pálido-lilás
          Jaz no azul-névoa da bacia.

         Que em meus lábios pairasse
         A quietude original
         Como uma nota de cristal
         Pura desde que nasce!

         Volve à poesia e a canção,
         Sê só espuma, Afrodite,
         Coração, desdenha o coração
         Que com a vida coabite

                                mandelstam-tres

          Veja-se, igualmente, o melancólico “Odeio o brilho frio” (com sua quadra final de alta qualidade: “Quando a hora já se for, / Talvez eu volte a voar. / Lá, me negam o amor. / Aqui, não ouso amar”) ou “Abro as veias” (“Abro as veias: irreprimível, / Irrecuperável, a vida vaza. / Ponham embaixo vasos e vasilhas! / Todas as vasilhas serão rasas, / Parcos os vasos. / / Pelas bordas – à margem – / para os veios negros da terra vazia, / Nutriz da vida, irrecuperável, / Irreprimível, vaza a poesia”), este de Marina Tzvietáeiva, da qual falaremos adiante. Mandelstam, como lembra Augusto de Campos, foi preso em 1934, “por ter escrito versos satíricos contra Stalin”, sendo “sentenciado a três anos de exílio na remota Cherdyn”. Acabou tentando o suicídio. Detido novamente em 1938, condenado a cinco anos de trabalhos forçados, acabou morrendo num “campo de passagem”, “enquanto aguardava a deportação para um dos campos de reeducação da Sibéria”. Fizeram o possível para que ele não fosse contemporâneo de seu país – quando a liderança de seu país, naquele momento, não era, sob certo ponto de vista, contemporânea da ética.
          Augusto considera que a poesia traz um instinto revolucionário, e pode-se dizer que, acrescentando ao que a poesia concreta, em sua fase do salto participante, dizia “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, a ideia hoje é que “Sem forma e sem vida revolucionárias não há arte revolucionária”. Revolucionário, aqui, sem a pretensão de transformar o mundo pregando uma ideologia, mas sim não aceitar o que o mundo impõe nem vender ideias por mordomias e privilégios, como escreveu, certa vez, Paulo Leminski. Num plano sincrônico, Mallarmé está ligado aos poetas russos de Poesia da recusa, com suas obras consideradas distantes do povo, como a de Anna Akhmátova, que, junto com Pasternak, foi deixada à margem pelo stalinismo. Akhmátova é uma das poetas mais modernas que a Rússia já teve e, além de haver traduções de poemas seus em Poesia da recusa, ganhou um volume da Coleção L&PM Pocket, com traduções de Lauro Machado Coelho, o mesmo que escreveu sua biografia Anna, a voz da Rússia – Vida e obra de Anna Akhmátova e é responsável pelo volume Poesia soviética, ambos editados pela Argol.
          Ela está entre as poetas que permaneceram na Rússia mesmo com a intervenção stalinista. O comissário de cultura de Stalin, Zhdânov, a condenou, como lembra Augusto de Campos, por “praticar uma poesia aristocrática, antipopular”, ou seja, “distante do povo” – segundo suas palavras. Lembra também Augusto: “Viveu em relativo ostracismo, às vezes sob vigilância policial, com seus livros por longo tempo proibidos de serem editados. Se não chegou a ser encarcerada pela polícia soviética, teve um filho preso, o que amargurou a sua vida por muitos anos”. Para Augusto, ela “desenvolveu uma poesia de cunho emocional e sensitivo, porém marcada pela nobreza e sobriedade de dicção e por uma insubornável fidelidade à própria experiência”. Sua poesia “tem nuances e peculiaridades da sensibilidade feminina, com parcimônia vocabular e crescente distanciamento crítico”. Daí Augusto escrever, com eficiência, avaliando o poema “Contra a fama”, de Pasternak, que foi perseguido porque recebeu o Nobel de Literatura por Dr. Jivago: “A voz desse poema soa hoje mais solitária do que nunca, mas, mesmo clamantis in deserto, merece ser difundida. É a resistência ética, a alma rebelde da poesia, contra-estilo do fracasso, diante das imposições e imposturas do poder e da glória”.

                                               marinapignatari
          O mesmo se diz de Marina Tzvietáieva, que acabou tendo um fim trágico (suicidou-se), depois de o marido ter sido fuzilado e a filha colocada num campo de concentração, logo após a Rússia ser invadida pelos nazistas. Como lembra Augusto, ela foi censurada, antes, “pela intolerância dos ‘comissários do povo’ soviéticos, rejeitada pelos emigrados anticomunistas, não parecia haver lugar para ela em parte alguma. Seria tão diferente dos seus coirmãos suicidadas, na sua rebeldia insubornável e na sua inadequação ao sistema dominante?”. Veja-se, por exemplo, um fragmento do texto sobre a poeta russa Marina Tzvietáieva. Augusto destaca a “riqueza de invenção rítmica, uso substantivo, celular da palavra, realçando os choques paronomásticos intervocabulares e as arestas dos versos retalhados de enjambements, sintaxe elíptica, quase telegráfica” da poeta russa. Augusto traduz com sua dicção singular, procurando esse tom telegráfico, um poema como “Louvor de Afrodite”, em que há os belos versos “Mas eu, aqui na areia gélida, / Dia após dia me olho sem saída, / Como serpente que olha a velha pele, da / Juventude desvestida”. Ou a quadra de “A carta”: “Felicidade? E a idade? / A flor – floriu. / Quadrado do pátio: / Bocas de fuzil”. Com os versos “Jardim: sem ir. / Jardim: sem cor. / Jardim: sem rir. / Jardim: sem flor. / / Dá-me um jardim: Sem um olor, / Sem um amor, / Sem alma, enfim”, o poema “Jardim” também é vertido com propriedade. Todos esses elementos, na poesia de Marina, são animados por “um avassalante pathos existencial”. Esse pathos – também investigado por Décio Pignatari, no seu livro de traduções dedicados à poeta russa, lançado pela Travessa dos Editores, e por Aurora Fornoni Bernardini em Indícios flutuantes, com versos, e Vivendo sob o fogo, com trechos de diários, memórias e correspondências da poeta russa – fica claro num poema como “Maiakovski”, mas o amor é o que traz mais um sentimento de recusa, em “Diálogo de Hamlet com a consciência”: “Está lá no fundo da lama, / Limo!… Uma última corola / Entre as toras aflora… / – “Mas eu a amava / Como quarenta mil….” /  – Menos / Do que um só amante. / / Lá, no fundo, na lama. / – Mas eu a amava – / (dúvida) / como quem ama??”. Leia-se essa intradução, intitulada “versos à Tchecoslováquia”, de Marina Tzvietáieva (foto abaixo), tratando, com repulsa, da invasão nazista na Rússia:

          Lágrimas de ira e amor!
          Olhos molhados, quanto!
          Espanha em sangue!
          Tchecoslováquia em pranto!

          Montanha negra –
          Toda a luz amputada!
          É tempo – tempo – tempo
          De devolver a Deus a entrada!

          Eu me recuso a ser.
          No asilo da não-gente
          Me recuso a viver.
          Com o lobo regente

          Me recuso a uivar.
          Com os tubarões do prado
          Me recuso a nadar,
          Dorso dobrado.

          Ouvidos? Eu desprezo.
          Meus olhos não têm uso.
          Ao teu mundo sem senso
          A resposta é – recuso

                                                       cvetae3

         Iessiênin, por sua vez, renegou os privilégios que os oficiais stalinistas propunham aos artistas, num período em que muitos poetas serviam, como voz, ao partido do líder russo. Neste caso, o interessante é que a revolução, aqui, é a recusa à revolução retórica e mesmo à revolução destacada pelo movimento concreto, em que o poeta produziria para as massas. Os poetas acabam por evitar esse “mundo” no qual veem suas ideias serem contrariadas pelos fatos que encaminham ao encobrimento de qualquer verdade. O poeta é alguém que faz da linguagem o meio de justamente agir sobre a atemporalidade. Não que o que ele escreva não tenha nada a ver com seu tempo: tem sempre relação – no entanto, é uma relação indireta, subjetiva, muitas vezes inconsciente. Ele quebra a história – como esses poetas russos quebraram – porque entende que não pode ser contemporâneo à medida que antecipa a ética que, no momento em que escreve, muitas vezes é encoberta pelo discurso distorcido, capaz de impedi-lo de, visivelmente, vir à cena. Sua contemporaneidade está justamente no fato de não se deixar ser dominado por seu tempo: que escreve para algo além, que seu papel é justamente reinterpretar os dados prévios à sua existência, entender que as trevas o cercam (instituindo sua retórica inadequada), mas que seu discurso não é finito como tais trevas. Parece estar justamente no fato de perceber que é sempre atual, mesmo que a história que aconteça ao seu redor não o seja – isto é, ainda está baseada em ideais que se adequam apenas aos interesses de um discurso vazio.
          Em seu ensaio “O pintor da vida moderna”, em que se dedica a estudar o caso de Constantin Guys, Baudelaire já escrevia que a modernidade é “o transitório, o fugaz, o contingente, a metade da arte, cuja metade restante é eterna e imutável”. A proposição do poeta francês é pertinente para retomar o próprio conceito original de modernidade. Como afirma Jürgen Habermas, a proposição de Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade, ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, e sim apresentar uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Baudelaire percebe, assim, que a modernidade não se distancia do seu “caráter precário”, mas sim de sua “trivialidade”, desejando que o “momento transitório seja reconhecido como o passado autêntico de um presente futuro”. A modernidade torna-se o que um dia será clássico, sendo este, doravante, o “‘clarão’ da aurora de um novo mundo, que decerto não terá permanência, mas, ao contrário, sua primeira entrada em cena selará também a sua destruição”. Dá-se, então, a ligação entre modernidade e a moda, pois o “novo” em Baudelaire não presta nenhuma “contribuição ao progresso” (que ele ligará ao conceito de decadência). Como lembra Benjamin, o poeta francês “faz aparecer o novo no sempre igual e o sempre igual no novo” – ou seja, ele não tinha objetivo de fazer nenhuma revolução e entende que há moda, mas também há novos ciclos futuros. Como dizia Paul Celan, “há canções a cantar além dos homens”. Os poetas russos aqui lembrados souberam, como Celan, “entoar essas canções”. Eles visualizam o outro lado da modernidade, que não é o efêmero: eles realmente incorporam a história – ou a revolucionam –, porque sabem estar excluídos dela e só por meio disso tem condições de realmente defini-la. Trata-se de uma tentativa de revelar o único elemento inédito nos discursos desgastados: de que a história não pode ser tratada pelo viés messiânico quando este é guiado pelo discurso avesso de sua realização. E de que somente uma “voz” à frente de todos não significa a superioridade dessa figura, sobretudo quando ela não tem os elementos de um verdadeiro Messias – e sim a mediocridade dos que acabam por erguê-la. Tentar desviar desse caminho depende da consciência de que não há quebra na história que não seja sugerida pelos próprios elementos que ela já traz, e que pretensamente renová-la – sobretudo com as mesmas figuras, que já cometeram sérios erros anteriormente e continuam apegadas ao poder, protegidas por um líder equivocado – é um despiste para esquecer de que muitas vezes ela não deu certo e partiu para um tempo de trevas. Esses poetas russos souberam, por um instante, acender uma fagulha, mínima que seja, tentando iluminar o que deu errado para que não aconteça novamente. Alguns ainda tentam apagá-la, e os poetas continuam fora da história “oficial”.

          Por André Dick

          A Rússia foi sempre um país privilegiado em matéria de cultura. Das danças, passando pela literatura, pelas artes plásticas, pela dramaturgia, até a política, este centro de revoluções históricas, com o conflito constante entre o proletariado e a burguesia, visível em versos que falam sobre o universo do operário, possui alguns dos poetas mais importantes e necessários para compreender a poesia moderna.

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          Entre eles, está o nome de Vielimir Khlébnikov, o poeta do “travesseiro”, cuja obra está inserida, com certeza, na lista das maiores do século XIX. Pouco conhecida, em relação a um poeta como Maiakóvski – visto como o grande nome, o mais representativo, dessa poesia sobre o operariado –, a poesia de Khlébnikov se caracteriza pela universalidade e pela experimentação de linguagem, tão bem sintetizadas por Augusto de Campos no ensaio “O Colombo dos novos continentes poéticos”, de À margem da margem.
          Nascido na aldeia de Tundúvoto, do governo de Astrakan, na Rússia, em 1895, Khlébnikov faz parte de um grupo seleto de grandes poetas modernos da Rússia, entre os quais estão Maikóvski, Boris Pasternak, Marina Tzvietaéiva e Anna Akhmátova, entre outros. Era filho de pai ornitologista de uma mãe que apreciava música, história e literatura. Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, estudou Física, Matemática e Ciências Naturais. Também aprendeu sânscrito na Faculdade de Línguas Orientais e se transferiu para a área de Letras, a fim de estudar Eslavística.

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          Para o poeta Assiéiev, ele “era semelhante em espécie a um passarinho pensativo com as longas mãos e com o hábito de descansar sobre um pé, com seu olho atento, com suas migrações imprevistas e as precipitações do espaço e as fugas para o futuro”. Mais preocupado em imigrar para diversos lugares, obedecendo às mudanças de estação, o poeta, não demonstrava interesse em publicar seus poemas, a fim de compor uma obra. Ele tinha algo mais importante para fazer: produzir poesia. Era preciso, no entanto, que seus amigos escolhessem, dentre as pilhas de rascunhos relegados ao provável esquecimento, aqueles poemas que seriam publicados.
          O poeta Vladimir Maiakóvski dizia se espantar com o trabalho de Khlébnikov. Segundo ele, o quarto do poeta “era vazio de mobília e vivia abarrotado de cadernos, frases soltas e pedacinhos de papel, cobertos de sua letra miudinha”. Se alguém não extraía de suas pilhas de poemas algum para imprimir, o poeta russo, antes de partir em viagem, enchia uma fronha com os manuscritos. Nas viagens, dormia sobre esse travesseiro – e acabava por perdê-lo.
          É falado que a criação do futurismo se deve a Khlébnikov. No entanto, o poeta russo nunca tentou publicar seus trabalhos, muito menos organizar movimentos. Claro que por meio da linguagem “zaum” (a linguagem transmental), em que vocábulos eram criados com o propósito de alcançar novas sonorizações – encontradas nos poemas ao final deste artigo – e que ajudou a moldar, Khlébnikov ficou mais próximo do ideal futurista, mas é impossível afirmar que o poeta pretendia pertencer a uma corrente poética de vanguarda ou coisa similar.

                         cubismo
          Seu objetivo era realizar poesia, seja em poemas de risco, com a linguagem “zaum”, seja em poemas de tradição simbolista. Como escreve Boris Schnaiderman, no artigo “O mundo precisa de Khlébnikov”, “sua linguagem é a mais despojada de literatice, a mais arrojada, a mais próxima do genuíno espírito da língua”. Desse modo, para Schnaiderman, ele é um precursor: “Antes que Joyce amadurecesse a sua extraordinária revolução na linguagem literária, Khlébnikov já publicava poemas em que são evidentes os elementos pré-joyceanos. Antes que dadaístas e surrealistas expusessem preto no branco a sua subversão dos valores consagrados em arte e literatura, Khlébnikov já fazia pré-dadaísmo e pré-surrealismo”.
          Os últimos anos do poeta, no entanto, foram conturbados. Aventureiro, Khlébnikov prestou serviço militar na infantaria russa na guerra de 14. Durante a Guerra Civil, foi preso como espião, indo parar num hospital psiquiátrico. Entre 1918 e 1920, viveu num quarto frio e sem luz, faltando a ele roupa e comida. Adoeceu de tifo por duas vezes. Em 1920, trabalhou na Agência Telegráfica de Cáucaso, para, no ano seguinte, partir em direção à Pérsia com o Exército Vermelho. Na volta à Rússia, arranjou trabalho como guarda-noturno na Agência Rosta, pois tinha que se alimentar, e em 1921 partiu para Moscou, num vagão de epiléticos. Khlébnikov acabou por morrer na aldeia de Santalovo, governo de Nóvgorod, em 1922, ano em que Mário e Oswald de Andrade estavam à frente da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.

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          Irritado com as publicações que reconheciam a obra de Khlébnikov após sua morte – em vida o poeta foi perseguido pelo regime stalinista, que proíbe qualquer discordância ou ideais que não estejam em seus planos –, Maikóvski pediu: “Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”. Khlébnikov que, dentre seus muitos sonhos e profecias, pretendia criar uma sociedade de presidentes do Globo Terrestre (com poetas, filósofos, sábios, revolucionários) que governaria o mundo, talvez não se interessasse em ser lembrado, talvez porque soubesse, antes de mais nada, que sua poesia era constituída de inteligência e visão literária, e, dia menos dia, seria lembrada. Tanto quanto sua poesia, a faceta voltada a ideias revolucionárias de Khlébnikov era bastante imaginária – o motivo de ter sido tão rechaçado por Stálin, que não admitia posicionamentos contrários aos seus. Como diz Barthes, quando analisa a “escrita stalinista”, em O grau zero da escritura, ela quer dar “o real sob a sua forma julgada, impondo uma leitura imediata das condenações: o conteúdo objetivo da palavra ‘desviacionista’ é de ordem penal. Se dois ‘desviacionistas’ se reúnem, passam a ser ‘fraccionistas’, o que não corresponde a uma falta objetivamente diferente, mas a um agravamento da penalidade”. Uma escrita autoritária como a de Stálin “tem como missão fazer coincidir fraudulentamente a origem do fato e a sua manifestação mais longínqua, dando à justificação do ato a caução de sua realidade”. Tal escrita, lembra Barthes, é “própria a todos os regimes autoritários; é o que poderia se chamar de escrita policial: conhece-se, por exemplo, o conteúdo eternamente repressivo da palavra ‘Ordem’”. Por isso, os stalinistas rechaçam qualquer opinião discordante – e por isso combatem tanto os poetas, instituindo uma vigilância policial (o que veremos mais em outro artigo desta semana).
          O que fica não é o discurso stalinista, e sim a obra de quem ele perseguiu, no caso a de Khlébnikov. Em 1928, saiu uma edição da obra do poeta na Rússia, com cinco volumes, que seria completada por inéditos em 1940. No Brasil, vale a pena conferir as obras Ka (com tradução de Aurora Fornoni Bernardini) e Poesia russa moderna (em que há ótimas traduções do russo para o português pelas mãos de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman). Abaixo, uma pequena antologia dos poemas de Khlébnikov:
 
          O GRILO

          Aleteando com a ourografia
          Das veias finíssimas
          O grilo
          Enche o grill do ventre-silo
          Com muitas gramas e talos de ribeira.
          – Pin, pin, pin! – taramela o zinziber.
          Oh, cisnencanto!
          Oh, ilumínios!

          (Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

           *

           Tempos-juncos
                       Na margem do lago,
           Onde as pedras são tempo,
           Onde o tempo é de pedra.
                       No lago da margem,
            Tempos, juncos,
            Na margem do lago,
                      Santos, juntos.

            (Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

             *

             Bobeóbi cantar de lábios,
             Lheeómi cantar de olhos,
             Cieeo cantar de cílios,
             Stioeei cantar do rosto
             Gri-gsi-gseo o grilhão cantante.
             Assim no bastidor dessas correspondências
             Transespaço vivia o semblante.

             (Tradução de Haroldo de Campos)

             *

             Anos, países, povos
             Fogem no tempo
             Como água corrente.
             A água é espelho móvel,
             Estrelas – redes; nós – os peixes;
             Visões da treva – os deuses.

             (Tradução de Augusto de Campos)

              *
              Uma vez mais, uma vez mais
              Sou pra você 
              Uma estrela.
              Ai do marujo que tomar
              O ângulo errado de marear
              Por uma estrela:
              Ele se despedaçará nas rochas, 
              Nos bancos sob o mar.
              Ai de você, por tomar
              O ângulo errado de amar
              Comigo: você
              Vai se despedaçar nas rochas 
              E as rochas hão de rir
              Por fim
              Como você riu
              De mim.

              (Tradução de Augusto de Campos)

               *

               ENCANTAÇÃO PELO RISO

               Ride, ridentes!
               Derride, derridentes!
               Risonhai aos risos, rimente risandai!
               Derride sorrimente!
               Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores!
               Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros!
               Sorrisonhos, risonhos,
               Sorride, ridiculai, risando, risantes,
               Hilariando, riando,
               Ride, ridentes!
               Derride, derridentes!

               (Tradução de Haroldo de Campos)

               *

               Neste dia de ursos cerúleos
               a correr sobre dias tranquilos
               transvejo para além da água azul
               o acordar na taça das pupilas.

               Na colher de prata de olhos latos
               vejo a procelária em mar sonoro
               e ao largo vai a rússia dos pássaros
               transvoando entrecílios ignotos.

               Marventoso em celamor soçobra
               a vela de alguém na azul esfera,
               e eis que o desespero tudo engolfa
               trovão e porvir de primavera.

               (Tradução de Haroldo de Campos)

               *

               Hoje de novo sigo a senda
               Para a vida, o varejo, a venda,
               E guio as hostes da poesia
               Contra a maré da mercancia.

               (Tradução de Augusto de Campos)