Por André Dick
Abaixo, preparamos uma antologia de poemas de Vladimir Maikósvki, o poeta que investiu contra os falsários, como visto ontem. São traduções extraídas de dois livros referenciais: Maiakóvski (5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992) e Poesia russa moderna (5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001), ambos com traduções de Augusto de Campos, Boris Schnaiderman e Haroldo de Campos. As recriações em português são exemplares. Repare-se em “Nacos de nuvem”, um dos tantos poemas que Maiakóvski fez para as crianças. Há também a reprodução de alguns versos do extenso poema “A extraordinária aventura vivida por Vladímir Maiakósvki no verão na Datcha” – que ganhou uma “intradução visual” de Augusto de Campos, com seus últimos versos, remetendo a Roberto Carlos e Caetano Veloso, como escreve o tradutor no volume Maiakóvski. Esse poema ganhou, como lembra Augusto, duas traduções plástico-visuais: uma, gráfica, de Lissitzki e outra por meio do próprio poeta e Robert Delaunay: “uma das portas internas de Delaunay, em Paris, foi dividida em quatro retângulos coloridos, contendo um grande círculo central, no qual Maiakóvski inscreveu a primeira e as sete últimas linhas do texto, convertidas num gigantesco caligrama do sol”. O poema “LÍLITCHKA! Em lugar de uma carta” refere-se à Lília Brik, que foi amante do poeta (ver, nesse sentido, os texto “Conversa com Lília Brik”, de Boris Schnaiderman, e “Maikóvski, 50 anos depois”, de Augusto de Campos, incluídos em Maiakóvski) e é um dos seus poemas de amor mais contundentes. Em “A flauta vértebra”, pode-se perceber o prenúncio do suicídio de Maiakóvski, também visto em outros poemas. Em razão da disposição na página – com os versos organizados em forma de escada –, não foi possível reproduzir alguns poemas mais voltados ao combate político – o que pode ser visto nesses dois volumes citados. O poeta russo escreveu em “Eu mesmo”, uma miniobiografia sua: “Sou poeta. É justamente por isso que sou interessante. E sobre isto escrevo. Sobre o restante: apenas se foi defendido com a palavra”. Maiakóvski, através de sua poesia, realmente lidava com ideias em que acreditava, e defendia com palavras e argumentos seu posicionamento, não agindo apenas como um reprodutor de discursos alheios que não segue o que fala, nem tem coragem realmente de dizer o que pensa, se escondendo por trás do sistema e tramando mudanças escondido, com receio de ser surpreendido às claras. Ou seja, agindo como os “velhacos e falsários” a que o poeta russo se refere, com exatidão, no poema “A plenos pulmões”. Por isso, ele é interessante, e outros continuarão a não sê-lo, por mais que falem. O poeta Maiakóvski, este sim, surpreende a cada verso.
De “V Internacional”
Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda falo versos e não fatos.
Porém
se eu falo
“A”
este “a”
é uma trombeta-alarma para a Humanidade.
Se eu falo
“B”
é uma nova bomba na batalha do homem.
(Tradução de Augusto de Campos)
Nacos de nuvem
No céu flutuavam trapos
de nuvem – quatro farrapos
do primeiro ao terceiro – gente
o quarto – um camelo errante.
A ele, levado pelo instinto,
no caminho junta-se um quinto.
Do seio azul do céu, pé-ante-
pé, se desgarra um elefante.
Um sexto salta – parece.
Susto: o grupo desaparece.
E em seu rasto agora se estafa
o sol – amarela girafa.
(Tradução de Augusto de Campos)
A flauta vértebra
A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
Extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha
A tarde ardia em cem sóis
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava,
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato.
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
[…]
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
[…]
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
[…]
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
“Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.”
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá prá o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.
(Tradução e “intradução” abaixo de Augusto de Campos)
Hino ao crítico
Da paixão de um cocheiro e de uma lavadeira
Tagarela, nasceu um rebento raquítico.
Filho não é bagulho, não se atira na lixeira.
A mãe chorou e o batizou: crítico.
O pai, recordando sua progenitura,
Vivia a contestar os maternais direitos.
Com tais boas maneiras e tal compostura
Defendia o menino do pendor à sarjeta.
Assim como o vigia cantava a cozinheira,
A mãe cantava, a lavar calça e calção.
Dela o garoto herdou o cheiro de sujeira
E a arte de penetrar fácil e sem sabão.
Quando cresceu, do tamanho de um bastão,
Sardas na cara como um prato de cogumelos,
Lançaram-no, com um leve golpe de joelho,
À rua, para tornar-se um cidadão.
Será preciso muito para ele sair da fralda?
Um pedaço de pano, calças e um embornal.
Com o nariz grácil como um vintém por lauda
Ele cheirou o céu afável do jornal.
E em certa propriedade um certo magnata
Ouviu uma batida suavíssima na aldrava,
E logo o crítico, da teta das palavras
Ordenhou as calças, o pão e uma gravata.
Já vestido e calçado, é fácil fazer pouco
Dos jogos rebuscados dos jovens que pesquisam,
E pensar: quanto a estes, ao menos, é preciso
Mordiscar-lhes de leve os tornozelos loucos.
Mas se se infiltra na rede jornalística
Algo sobre a grandeza de Puchkin ou Dante,
Parece que apodrece ante a nossa vista
Um enorme lacaio, balofo e bajulante.
Quando, por fim, no jubileu do centenário,
Acordares em meio ao fumo funerário,
Verás brilhar na cigarreira-souvenir o
Seu nome em caixa alta, mais alvo do que um lírio.
Escritores, há muitos. Juntem um milhar.
E ergamos em Nice um asilo para os críticos.
Vocês pensam que é mole viver a enxaguar
A nossa roupa branca nos artigos?
(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)
LÍLITCHKA!
Em lugar de uma carta
Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto –
um capítulo do inferno de Krutchônikh.
Recorda –
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração – aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua .
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor, meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
– duro fardo por certo –
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos – rodopiante carnaval –
dispersarão as folhas dos meus livros…
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?
Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.
(Tradução de Augusto de Campos)