Por André Dick
A obra poética inicial de Haroldo de Campos, Xadrez de estrelas: percurso textual 1949-1974 (Coleção Signos, Ed. Perspectiva, 256 p.), fora do mercado durante quase três décadas, regressou às livrarias no início de 2008. A obra ressurgiu em bom momento: o de mostrar que, mesmo em sua fase inicial, a poesia de Haroldo nunca foi conservadora.
Na verdade, pode-se dizer que o próprio Haroldo e seus companheiros de poesia concreta armaram uma armadilha para suas obras: a premissa de que a verdadeira modernidade deveria ser lida a partir dos poemas concretos ou por meio da recuperação de Oswald de Andrade – poeta que pouco tem a ver com a sua produção, a não ser pela concisão e pelo caráter polêmico – e dos elogios a João Cabral – poeta mais discursivo do que todos eles. O verdadeiro cânone de Haroldo me parece ser mais aquele apresentado em “Poesia e paraíso perdido”, seu primeiro texto da teoria da poesia concreta. Nele, aparecem os nomes de Eliot, Homero, Pound, Dante, Góngora e Mallarmé – os cinco últimos traduzidos por ele. Esses, ao lado de Joyce e Rimbaud, são as figuras-chave para Haroldo em sua trajetória: bem menos, apesar de admirá-los, Apollinaire, cummings, João Cabral ou Oswald.
A pergunta inicial, diante de Xadrez de estrelas, é se um livro com muitos poemas de quase 60 anos atrás continua atual. Seus primeiros poemas, de Auto do possesso, para alguns têm as marcas da geração de 45. A meu ver, essa leitura parte de outro equívoco: o de que Haroldo fez poemas ruins como os poetas daquela geração. Pelo contrário. O que vemos em é um domínio de verso singular para um poeta que tinha apenas 21 anos de idade. Seus poemas não se perdem na verborragia artificial própria dos que quiseram reerguer o parnasianismo. Haroldo é um poeta de raiz barroca – e exato. Daí o comentário de Ferreira Gullar, numa carta a Augusto de Campos, parecer deslocado, quando destaca nos poemas de Haroldo apenas a “força verbal”, para fazer ressalvas à sua frieza e a um certo rebuscamento. Sem dúvida, os poemas de Haroldo não pretendem falar para nenhuma multidão, e esta frieza e certo rebuscamento guardam, na verdade, a estrutura barroca. Do mesmo modo, esses poemas não têm nenhuma adiposidade verbal, como sugere Antonio Risério em Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, para se contraporem ao Haroldo mais conciso a partir dos anos 1970.
Poemas como “Sinfonia dos salmos”, “Poema do oitavo dia depois de Pentecostes”, “Sísifo” e “Super flumina Babylonia” apresentam uma influência de leituras bíblicas e mitológicas (característica extraída de Pound) e do aluno jovem do Mosteiro de São Bento – do futuro realizador de transcriações de versos bíblicos. Em “Auto do possesso”, versos declaram essa vivência: “Enfraqueço na água o vinho dos meus lábios, / e minha carne sabe o pão ázimo ou trevo”. Uma leitura religiosa que parece mesmo dialogar com certa dicção benjaminiana: “A face do Senhor assume os holocaustos, / E eu vejo, sobre mim, Saturno degolar-se / Três vezes nos seus arcos”. Já existe uma leitura de Mallarmé em “Lamento sobre o lago de Nemi”: “O azar é um dançarino nu entre os alfanjes” – mesmo que sob um viés oriental –, percebida por Sérgio Buarque, no artigo “Rito de outono”, quando ele comenta que os versos de Haroldo são “prudentemente governados” por uma “inteligência sempre alerta”. Aliás, a influência oriental é clara nas referências a Ishtar e nos versos de “O faquir” (“Há mulheres que vêm como najas dançantes”), por exemplo. Com isso, há uma modulação erótica em certos poemas, como “Vinha estéril”, sob uma influência de Rimbaud, evidente em “Auto do possesso”: “Amiga, dá-me que eu cante / à luz de uma estrela crua; / onde teu corpo jazia, coalhado de rosas mornas; / onde os rostos dos suicidas entrementes se devoram; / onde nasce um lírico adunco, à luz de uma estrela crua”.
“A cidade” e “Thálassa thálassa” revelam um Haroldo interessado pelo verso longo, que se diluiria em experimentações posteriores, voltando com mais força apenas no póstumo e recentemente lançado Entremilênios. Mas o seu sentido discursivo é de alto nível verbal, com predomínio sobre a sonoridade e a cadeia imagética. Aos poucos, parece que Haroldo vai se dirigindo ao domínio do acaso. “Fábula primeira”, nesse sentido, é um poema metalinguístico, com um terceto final irretocável (“No auge do verão / suspendo meu silêncio / como um cântaro poroso”), assim como “Teoria e prática do poema”, que remete a Antônio Vieira.
Quando Haroldo começa a passagem para a poesia concreta, em “Naja vertebral” (com seus cortes experimentais, fragmentações de vocábulos: “a NAJA / um brinco de marfi / euburnuco / nafta / na / violíngua / das violasd’amor / vib / rando / NAJA / mercúrio de silêncio / triângulo de silêncio / VIB / ora áspide / de silen cio / A filigrana vertebral / em orgasm úsica / BRANDO”) e na experimentação de prosa – com epígrafe joyceana e palavras-montagem – “Ciropédia ou a educação do príncipe”, ou no elíptico “A invencível armada” – com imagens que revelam os destroços do navio mallarmeano e algo do Ulysses de Homero, antecipando o poema “Finismundo” –, ou no musical “Orfeu e o discípulo”, já parece anunciar o rompimento com a sintaxe evidenciado em “O â mago do ô mega”. Este, com suas palavras em branco sobre a página negra – como se estivessem numa galáxia vizinha da de Mallarmé –, esconde fragmentações milimétricas de palavras. Obviamente, nem nesses poemas Haroldo deixa de lado o barroquismo plurilíngue, como em “pétala parpadeando cílios / pálpebra / amêndoa do vazio pecíolo: a coisa / da coisa / da coisa”, “o peri / scópio / ao peri / CÁRDIO / perscruta” e “marsupialamor mam / ilos de lam / preias presas can / ino am / or / turris de talis / man / gu” (aqui, sendo impossível a reprodução fiel). Os poemas concretos stricto sensu de Haroldo são, a meu ver, os menos fortes se comparados aos de Augusto e de Pignatari, mas têm certo mérito figurativo, como “ver navios” ou o belíssimo “nascemorre”. A série “Fome de forma” continua atual, não caindo na facilidade de certa poesia de cunho social. Em Lacunae, por sua vez, Haroldo entra no terreno arenoso do ideograma, mesmo com a referência a Mallarmé, presente também em Galáxias.
O que se percebe em todos esses poemas é uma vital incursão haroldiana no terreno barroco de um Antônio Vieira – que suscita o título da obra –, e o que ele escreve parece antecipar boa parte do neobarroco a partir dos anos 1980. Sua linguagem é cuidadosa, selecionada. Lacunae, por exemplo, apesar de remeter ao ideograma poundiano – em poemas como “poemandala”, “via tchuang-sté 1” e “via tchuang-tsé 2” – mostra, ainda mais, uma espécie de reconfiguração de Un coup de dés, em que pássaros se misturam a sereias, que eram aves na mitologia grega. Uma certa carga erótica percorre os poemas – como em alguns iniciais, de Auto do possesso – nas fragmentações de “laranjas”, “na lã” e “miúra”, proliferando-se imagens como “banderilha de orgasmo”, “orgasm / o papel pasmado”, “a vul / / v / ênus” etc. Do mesmo modo, trata-se de uma poesia de poeta-crítico, aquele que domina o acaso sem aboli-lo, para lembrar o que Leyla Perrone-Moisés escreve de Haroldo em Altas literaturas. Haroldo escreve com talento: “o poeta é um fin / o poeta é um his / / poe / pessoa / mallarmeios / / e aqui / o meu / dactilospondeu: / / entre o / fictor / e o / histrio: / / eu” – aqui, Haroldo vai do “fin/gidor” Pessoa ao “his/trião” Mallarmé, colocando-se entre os dois, mas incorporando algo do Leminski dos anos 1970, com seus poemas sucintos rimados. Poucos poetas na tradição poética do século XX, no Brasil, possuem a consciência da tradição enfrentada por Haroldo (Drummond, Cabral, Augusto de Campos, Pignatari e Sebastião Uchoa Leite me vêm primeiro à mente), tanto musical quanto de artes plásticas, falando da leitura, do branco da página, revelando aquela educação pelo acaso – traçando uma analogia com as obras críticas referenciais que lançou nos anos 1970, A arte no horizonte do provável e A operação do texto.
Haroldo consegue transformar fragmentos e versos curtos numa estrutura definitiva: “céu-pavão / / turquesa / rampante / / azul / a pino / / centúrias / de olhos-luz / num caudário / de estrelas / poeira / / constelário / o mundo / do seu / pedúnculo / (mundúnculo) / desestrela / trema / / e isto / * / / cisco / risco / astro / / asterisco”. Em alguns momentos, o barroco parece encontrar algo de Celan: “onde um / céu de chumbo / satúrneo / respira / violetas de / genciana”. E o orientalismo passa do discurso de Auto do possesso para a síntese de “arabescando”: “duzentas / cimitarras / assaltam o / papel / / alvor – / califa / / pássaros-cimitarras / desvoam / a nata / de seda / / cantante / cali- / grafia / / branco / (tur- / bante) / no / branco / / golpes / de cimitarras / / (pássaros) / / a sede capitula”. Mas não há isolamento nisso: a poesia de Haroldo é do diálogo e compartilha a criação. Claro que essa poesia já foi copiada e mesmo diluída – mas, de certo modo, isso representa sua força motriz inicial, capaz de reencaminhar a literatura sob um ponto de vista menos naturalista, preso a concepções antiquadas (e embora muitos ainda julguem que o que ele fez seja um neoparnasianismo, a meu ver um equívoco).
A verdade é que Xadrez de estrelas sintetiza o Haroldo que se aperfeiçoaria em Signantia quasi coelum e A educação dos cinco sentidos. Signantia, por exemplo, é uma continuação das técnicas elaboradas em Lacunae. A educação dos cinco sentidos é o livro mais diferente de Haroldo, optando por um bom humor quase ausente do restante de sua obra. Crisantempo seria o livro múltiplo mais próximo de Xadrez de estrelas. Esses, ao lado de Galáxias, compõem, na minha opinião, o eixo da obra haroldiana. E Xadrez, ainda bem, está novamente em circulação, na veia do povo inventalínguas, como diria o master entremeado às estrelas, na rosácea crepuscular de Homero.