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          Por André Dick

          A obra poética inicial de Haroldo de Campos, Xadrez de estrelas: percurso textual 1949-1974 (Coleção Signos, Ed. Perspectiva, 256 p.), fora do mercado durante quase três décadas, regressou às livrarias no início de 2008. A obra ressurgiu em bom momento: o de mostrar que, mesmo em sua fase inicial, a poesia de Haroldo nunca foi conservadora.

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          Na verdade, pode-se dizer que o próprio Haroldo e seus companheiros de poesia concreta armaram uma armadilha para suas obras: a premissa de que a verdadeira modernidade deveria ser lida a partir dos poemas concretos ou por meio da recuperação de Oswald de Andrade – poeta que pouco tem a ver com a sua produção, a não ser pela concisão e pelo caráter polêmico – e dos elogios a João Cabral – poeta mais discursivo do que todos eles. O verdadeiro cânone de Haroldo me parece ser mais aquele apresentado em “Poesia e paraíso perdido”, seu primeiro texto da teoria da poesia concreta. Nele, aparecem os nomes de Eliot, Homero, Pound, Dante, Góngora e Mallarmé – os cinco últimos traduzidos por ele. Esses, ao lado de Joyce e Rimbaud, são as figuras-chave para Haroldo em sua trajetória: bem menos, apesar de admirá-los, Apollinaire, cummings, João Cabral ou Oswald.
          A pergunta inicial, diante de Xadrez de estrelas, é se um livro com muitos poemas de quase 60 anos atrás continua atual. Seus primeiros poemas, de Auto do possesso, para alguns têm as marcas da geração de 45. A meu ver, essa leitura parte de outro equívoco: o de que Haroldo fez poemas ruins como os poetas daquela geração. Pelo contrário. O que vemos em é um domínio de verso singular para um poeta que tinha apenas 21 anos de idade. Seus poemas não se perdem na verborragia artificial própria dos que quiseram reerguer o parnasianismo. Haroldo é um poeta de raiz barroca – e exato. Daí o comentário de Ferreira Gullar, numa carta a Augusto de Campos, parecer deslocado, quando destaca nos poemas de Haroldo apenas a “força verbal”, para fazer ressalvas à sua frieza e a um certo rebuscamento. Sem dúvida, os poemas de Haroldo não pretendem falar para nenhuma multidão, e esta frieza e certo rebuscamento guardam, na verdade, a estrutura barroca. Do mesmo modo, esses poemas não têm nenhuma adiposidade verbal, como sugere Antonio Risério em Ensaio sobre o texto poético em contexto digital, para se contraporem ao Haroldo mais conciso a partir dos anos 1970.
          Poemas como “Sinfonia dos salmos”, “Poema do oitavo dia depois de Pentecostes”, “Sísifo” e “Super flumina Babylonia” apresentam uma influência de leituras bíblicas e  mitológicas (característica extraída de Pound) e do aluno jovem do Mosteiro de São Bento – do futuro realizador de transcriações de versos bíblicos. Em “Auto do possesso”, versos declaram essa vivência: “Enfraqueço na água o vinho dos meus lábios, / e minha carne sabe o pão ázimo ou trevo”. Uma leitura religiosa que parece mesmo dialogar com certa dicção benjaminiana: “A face do Senhor assume os holocaustos, / E eu vejo, sobre mim, Saturno degolar-se / Três vezes nos seus arcos”. Já existe uma leitura de Mallarmé em “Lamento sobre o lago de Nemi”: “O azar é um dançarino nu entre os alfanjes” – mesmo que sob um viés oriental –, percebida por Sérgio Buarque, no artigo “Rito de outono”, quando ele comenta que os versos de Haroldo são “prudentemente governados” por uma “inteligência sempre alerta”. Aliás, a influência oriental é clara nas referências a Ishtar e nos versos de “O faquir” (“Há mulheres que vêm como najas dançantes”), por exemplo. Com isso, há uma modulação erótica em certos poemas, como “Vinha estéril”, sob uma influência de Rimbaud, evidente em “Auto do possesso”: “Amiga, dá-me que eu cante / à luz de uma estrela crua; / onde teu corpo jazia, coalhado de rosas mornas; / onde os rostos dos suicidas entrementes se devoram; / onde nasce um lírico adunco, à luz de uma estrela crua”.

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          “A cidade” e “Thálassa thálassa” revelam um Haroldo interessado pelo verso longo, que se diluiria em experimentações posteriores, voltando com mais força apenas no póstumo e recentemente lançado Entremilênios. Mas o seu sentido discursivo é de alto nível verbal, com predomínio sobre a sonoridade e a cadeia imagética. Aos poucos, parece que Haroldo vai se dirigindo ao domínio do acaso. “Fábula primeira”, nesse sentido, é um poema metalinguístico, com um terceto final irretocável (“No auge do verão / suspendo meu silêncio / como um cântaro poroso”), assim como “Teoria e prática do poema”, que remete a Antônio Vieira.
          Quando Haroldo começa a passagem para a poesia concreta, em “Naja vertebral” (com seus cortes experimentais, fragmentações de vocábulos: “a NAJA / um brinco de marfi / euburnuco / nafta / na / violíngua / das violasd’amor / vib / rando / NAJA / mercúrio de silêncio / triângulo de silêncio / VIB / ora áspide / de silen cio / A filigrana vertebral / em orgasm úsica / BRANDO”) e na experimentação de prosa – com epígrafe joyceana e palavras-montagem – “Ciropédia ou a educação do príncipe”, ou no elíptico “A invencível armada” – com imagens que revelam os destroços do navio mallarmeano e algo do Ulysses de Homero, antecipando o poema “Finismundo” –, ou no musical “Orfeu e o discípulo”, já parece anunciar o rompimento com a sintaxe evidenciado em “O â mago do ô mega”. Este, com suas palavras em branco sobre a página negra – como se estivessem numa galáxia vizinha da de Mallarmé –, esconde fragmentações milimétricas de palavras. Obviamente, nem nesses poemas Haroldo deixa de lado o barroquismo plurilíngue, como em “pétala parpadeando cílios / pálpebra / amêndoa do vazio pecíolo: a coisa / da coisa / da coisa”, “o peri / scópio / ao peri / CÁRDIO / perscruta” e “marsupialamor mam / ilos de lam / preias presas can / ino am / or / turris de talis / man / gu” (aqui, sendo impossível a reprodução fiel). Os poemas concretos stricto sensu de Haroldo são, a meu ver, os menos fortes se comparados aos de Augusto e de Pignatari, mas têm certo mérito figurativo, como “ver navios” ou o belíssimo “nascemorre”. A série “Fome de forma” continua atual, não caindo na facilidade de certa poesia de cunho social. Em Lacunae, por sua vez, Haroldo entra no terreno arenoso do ideograma, mesmo com a referência a Mallarmé, presente também em Galáxias.

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          O que se percebe em todos esses poemas é uma vital incursão haroldiana no terreno barroco de um Antônio Vieira – que suscita o título da obra –, e o que ele escreve parece antecipar boa parte do neobarroco a partir dos anos 1980. Sua linguagem é cuidadosa, selecionada. Lacunae, por exemplo, apesar de remeter ao ideograma poundiano – em poemas como “poemandala”, “via tchuang-sté 1” e “via tchuang-tsé 2” – mostra, ainda mais, uma espécie de reconfiguração de Un coup de dés, em que pássaros se misturam a sereias, que eram aves na mitologia grega. Uma certa carga erótica percorre os poemas – como em alguns iniciais, de Auto do possesso – nas fragmentações de “laranjas”, “na lã” e “miúra”, proliferando-se imagens como “banderilha de orgasmo”, “orgasm / o papel pasmado”, “a vul / / v / ênus” etc. Do mesmo modo, trata-se de uma poesia de poeta-crítico, aquele que domina o acaso sem aboli-lo, para lembrar o que Leyla Perrone-Moisés escreve de Haroldo em Altas literaturas. Haroldo escreve com talento: “o poeta é um fin / o poeta é um his / / poe / pessoa / mallarmeios / / e aqui / o meu / dactilospondeu: / / entre o / fictor / e o / histrio: / / eu” – aqui, Haroldo vai do “fin/gidor” Pessoa ao “his/trião” Mallarmé, colocando-se entre os dois, mas incorporando algo do Leminski dos anos 1970, com seus poemas sucintos rimados. Poucos poetas na tradição poética do século XX, no Brasil, possuem a consciência da tradição enfrentada por Haroldo (Drummond, Cabral, Augusto de Campos, Pignatari e Sebastião Uchoa Leite me vêm primeiro à mente), tanto musical quanto de artes plásticas, falando da leitura, do branco da página, revelando aquela educação pelo acaso – traçando uma analogia com as obras críticas referenciais que lançou nos anos 1970, A arte no horizonte do provável e A operação do texto.   

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          Haroldo consegue transformar fragmentos e versos curtos numa estrutura definitiva: “céu-pavão / / turquesa / rampante / / azul / a pino / / centúrias / de olhos-luz / num caudário / de estrelas / poeira / / constelário / o mundo / do seu / pedúnculo / (mundúnculo) / desestrela / trema / / e isto / * / / cisco / risco / astro / / asterisco”. Em alguns momentos, o barroco parece encontrar algo de Celan: “onde um / céu de chumbo / satúrneo / respira / violetas de / genciana”. E o orientalismo passa do discurso de Auto do possesso para a síntese de “arabescando”: “duzentas / cimitarras / assaltam o / papel / / alvor – / califa / / pássaros-cimitarras / desvoam / a nata / de seda / / cantante / cali- / grafia / / branco / (tur- / bante) / no / branco / / golpes / de cimitarras / / (pássaros) / / a sede capitula”. Mas não há isolamento nisso: a poesia de Haroldo é do diálogo e compartilha a criação. Claro que essa poesia já foi copiada e mesmo diluída – mas, de certo modo, isso representa sua força motriz inicial, capaz de reencaminhar a literatura sob um ponto de vista menos naturalista, preso a concepções antiquadas (e embora muitos ainda julguem que o que ele fez seja um neoparnasianismo, a meu ver um equívoco).
          A verdade é que Xadrez de estrelas sintetiza o Haroldo que se aperfeiçoaria em Signantia quasi coelum e A educação dos cinco sentidos. Signantia, por exemplo, é uma continuação das técnicas elaboradas em Lacunae. A educação dos cinco sentidos é o livro mais diferente de Haroldo, optando por um bom humor quase ausente do restante de sua obra. Crisantempo seria o livro múltiplo mais próximo de Xadrez de estrelas. Esses, ao lado de Galáxias, compõem, na minha opinião, o eixo da obra haroldiana. E Xadrez, ainda bem, está novamente em circulação, na veia do povo inventalínguas, como diria o master entremeado às estrelas, na rosácea crepuscular de Homero.

          Por André Dick

          Para se fazer uma releitura de Drummond, é importante o ensaio “Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade” (do livro A metáfora crítica), no qual João Alexandre Barbosa (1938-2006) – que foi aluno de Antonio Candido –, a propósito da poesia drummondiana, observa que é através da linguagem que o poeta mostra como se relaciona com o mundo. O poeta, assim, situa-se entre o silêncio do hermetismo e a comunicação da experiência que “jamais é aquela existente antes de sua realização verbal”. Na poesia contemporânea, lembra Barbosa, “a mediação entre uma e outra realidade da poesia se tem feito pelo redimensionamento dos valores herdados da tradição”. Nisso, a poesia deixa de ser “arte” da linguagem: “o seu módulo passa a ser anti por excelência”. A marca do poema, assim, é a destruição. Todas as aproximações e recuos ao lírico que se constata na obra de Drummond são, para Barbosa, “crivadas, quase sempre, pela reflexão acerca da própria poesia”. Ou seja, o poeta, ao falar na destruição de sua linguagem, está falando da existência na qual esta linguagem está inserida. Barbosa analisa o poema “Nudez”, em que, entre “o silêncio da experiência vivida (o amor) e a comunicação da experiência possível (o riso, a alegria), o espaço é preenchido pelo nada”, no verso: “Minha matéria é o nada”. Poderíamos lembrar o Nada conceituado por Mallarmé, e João Alexandre (foto abaixo) o aproveita na trajetória do poema rumo ao silêncio, à incomunicação, elementos que representariam mais uma tentativa de o poeta se inserir, às avessas, na sociedade. O percalço, breve, conciso, mas muito produtivo, em seu ensaio, mostra um poeta delineado sob uma perspectiva menos fechada, não tão conduzida pela recepção pública ou pela apropriação filosófica.

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          Tal visão de Barbosa embora seja atenuada em seu ensaio sobre o conhecimento na obra de Drummond, “Notas preliminares a Drummond 2” (publicado na revista CULT em setembro de 2002), não é abandonada: nesse ensaio, temos um Drummond que, antes de responder ao mundo, trabalha o conhecimento a partir da linguagem. A palavra mais definitiva para compreender esse seu domínio verbal é, ao que parece, aquela empregada por João Alexandre Barbosa: conhecimento. Drummond seria o poeta do conhecimento, empregando uma “poesia que inventa modos de investigação da realidade, intensificando os valores sensíveis, emotivos, afetivos e intelectuais, incorporando estímulos psicológicos, históricos e sociais que passam ao leitor por entre as frestas da construção poética”.  Esses elementos, acrescenta João Alexandre, fizeram com que ele lidasse com “aspectos múltiplos da realidade que vão desde os mais intimistas e, por isso, individualizados, até os mais gerais e que dizem respeito à vida social e histórica. A que se deve acrescentar, está claro, uma meditação sempre presente, grave ou, muitas vezes, irônica acerca da própria poesia”. Nesta última observação de João Alexandre, podemos constatar que o conhecimento de Drummond está concentrado em sua obra, revelando a tradição que o cerca e que o atravessa. Há nele, desse modo, uma espécie de reconhecimento diante da tradição. Mesmo sem ter sido publicamente, como Pound, um poeta-crítico, sua poesia é crítica de movimentos que a fundam, através de negações e mudanças de rumo. 
          Este conhecimento resulta no corpo do poema não pelo diálogo com o social – onde, a partir de figuras-chaves, muitas vezes, dá-se privilégio ao desconhecimento, ao descumprimento de normas a serem seguidas pelos homens “comuns”, sob a conivência de lideranças intempestivas e arcaicas –, mas com a linguagem que no indivíduo se desenvolve, mesmo solitário. Barbosa acaba revelando aquele Drummond que poderia ter sido visto por Faustino: o que demonstra o conhecimento poético através de sua matéria: a linguagem, o nada. É um conhecimento não-ensaístico, mas poético. Não está em forma de divagações mallarmeanas, mas, antes, na filosofia de um pensamento que não procura a verdade – trata-se de poesia e não de um tratado a ser seguido – e sim a dispersão do literário. Este Drummond perseguido pela linguagem – evidente na sua multiplicidade, no seu domínio técnico sobre as mais diversas formas – é um Drummond que revela o Nada, aquele que, diante do trânsito, não quer transpô-lo para a linguagem, mas antes utilizar esta para silenciá-lo. Nisso, ele não dá uma resposta ao que o perturba, mas nega a perturbação. Se lhe resta a náusea, é porque sua linguagem é feita por ela. Esta leitura de João Alexandre Barbosa nasce, também, de uma leitura feita nas entrelinhas por Candido em seu ensaio já examinado, “Inquietudes na poesia de Drummond”. É quando Candido escreve: “[…] para o poeta todo existe antes de mais nada como palavra. Para ele, a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A ideia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema”. No entanto, isso não ocorre do modo que Candido aponta: a de que o poeta transforma o “lugar-comum” em “revelação”. O certo é que ele aponta, como Barbosa, em “Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Andrade”, que há um traço mallarmeano na poesia de Drummond: a de que sua poesia também se constitui não exatamente “para além das palavras” – traço romântico –, mas a sua perseguição por um “equilíbrio precário e maravilhoso” ao “arranjo da estrutura poética”. O nada em Drummond é o cotidiano, como ele escreve na segunda parte de “Canções de alinhavo”: “Stéphane Mallarmé esgotou a taça do incognoscível. / Nada sobrou para nós senão cotidiano, que avilta, deprime”.

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          Por isso, quando Candido escreve que há em Drummond um “sentimento de insuficiência do eu”, que o faz buscar a completude “pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas de todos”, parece haver um equívoco em sua interpretação, pois, se Drummond é incapaz de perceber saída nele mesmo, como melancólico, ele só verá no outro uma decepção maior ainda, que remete ao sentimento que não foi atendido em seu passado, e não uma saída. Em Drummond, existe uma individualidade – e esta, representada pela subjetividade, não está a serviço de nenhum discurso.
          Já em “Coração numeroso”, de Alguma poesia, ele escrevia: “a cidade sou eu / a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor”. Ele sabe, como escreve em “Mundo grande”, que os homens não cabem em seu coração pequeno. Em “A bruxa”, poema de José, ele compreende que mesmo numa cidade de dois milhões de habitantes, o Rio de Janeiro, ele está sozinho no quarto e na América: “Estou cercado de olhos, / de mãos, afetos, procuras. / Mas se tento comunicar-me / o que há é apenas noite / e uma espantosa solidão”. Quando pergunta: “E agora, José”, ele se pergunta: “E agora, Drummond?”. Por isso, ele em “Estrambote melancólico”, de Fazendeiro do ar, escreve: “Tenho saudade de mim mesmo, sau- / dade sob aparência de remorso, / de tanto que não fui, a sós, a esmo, / e de minha alta ausência em meu redor. / Tenho horror, tenho pena de mim mesmo / e tenho muitos outros sentimentos / violentos. Mas se esquivam no inventário, / e meu amor é triste como é vário, / e sendo vário é um só”. Amor por quem? Por si mesmo? Um só? Um sujeito que representa o sentimento de todos? O que Drummond faz é – como indicava Roland Barthes ser a verdadeira responsabilidade do escritor – “suportar a literatura como um engajamento fracassado”. A dificuldade da inter-relação entre os homens é a tópica mais profunda de sua obra – e por isso mais humana. É quando o poeta percebe que “a literatura não é uma graça, é o corpo dos projetos e das decisões que levam um homem a se realizar (isto é, de certo modo, a se essencializar) somente na palavra: é escritor aquele que quer ser”. Naturalmente, Barthes, autor desta reflexão, já previa: “Naturalmente também, a sociedade, que consome o escritor, transforma o projeto em vocação, o trabalho da linguagem em dom de escrever, e a técnica em arte: é assim que nasceu o mito do bem-escrever”, querendo inserir o autor como um mito histórico. Drummond, na verdade, dá as costas à sociedade, como na nota de cinquenta cruzados novos em que foi inserido nos anos 1980:

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          Poder-se-ia dizer que a história é apenas a “estória” comentada por Vattimo – o poeta, apesar de aludir a fatos históricos, o percebe sob um olhar particular, não representando a humanidade por meio de seus versos. Se as suas ideias se correlacionam com as de outros homens, é apenas porque a força política ou social que as traduz se insere na linguagem corrente, da qual todos dependemos e pela qual buscamos viver. O poeta não é um porta-voz, ou mediador, da espécie humana – suas falhas o denunciam, como todas as falhas que vemos no ser humano, de modo geral – e a sua “estória” não é a História da humanidade. A sua imprecisão, sim, é fruto da própria historicidade que o compõe, como ser à margem.
          Se há uma influência do ambiente em que se coloca o poeta – influência trespassada –, ela não ganha, de volta, nenhuma resposta. A poesia não representa o mundo, embora se refira a ele. Drummond não foi apenas o poeta da pedra no meio do caminho brasileiro. Olhando sua obra, mais certo é que, num breve anagrama, ele foi o poeta da perda. Da perda do que realmente não conseguimos ser, sem nenhuma dicotomia. É importante dar espaço à sua voz, tão individualista quanto necessária, sempre distante da sociedade, que o esquece todos os dias, em meio aos pequenos relatos. Barthes dizia, ainda, afinal, que a sacralização do trabalho do escritor permite à sociedade distanciar o conteúdo da própria obra, o conteúdo que pode perturbá-la, convertendo-o em “puro espetáculo, ao qual ela tem o direito de aplicar um julgamento liberal (isto é, indiferente), neutralizar a revolta das paixões, a subversão da crítica (o que obriga o escritor ‘engajado’ a uma provocação incessante e impotente), em síntese, recuperar o escritor”. O escritor se recupera fora do sistema comercial do discurso vazio – operando no campo da “mais valia” – e a política que separa os “comuns” dos “incomuns” é apenas resíduo, para usar uma palavra cara a Drummond, do processo histórico que culminará numa nova literatura, muito mais forte, com um equilíbrio precário e maravilhoso, como escreve João Alexandre em sua análise.

          Por André Dick 

          Segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas – que completa hoje 80 anos de idade –, em O discurso filosófico da modernidade, o homem é originalmente uma experiência ontológica, a quem a questão do Ser é existencialmente imposta. A analítica existencial brota do impulso mais profundo da própria existência humana. Heidegger chama a isso de enraizamento ôntico da analítica existencial. Hegel, por sua vez, definiu o tempo como parte integral do ser, no qual se baseará Heidegger. Desse modo, ser significa ser no tempo, no interior de horizontes de uma percepção e um Begreff (‘apreensão’, ‘interiorização’, que são absolutos históricos). Como também observa Habermas, em seu vocabulário que considera científico e correspondente à verdade, “Hegel já substituía a oposição abstrata entre finito e infinito pela autorrelação absoluta de um sujeito que alcançou a consciência de si e de sua substância, que traz em si tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito. Em contraste com Hölderlin e Schelling, esse sujeito absoluto não deve preceder o processo universal como ser ou intuição intelectual, mas unicamente subsistir no processo de relação entre o finito e o infinito e na atividade devoradora do voltar-a-si. O absoluto não é concebido nem como sujeito, mas apenas como o processo mediador da autorreflexão que ser produz independente de toda condição”. O filósofo alemão também analisa a modernidade a partir de Baudelaire. Como ele afirma, Baudelaire institui uma “intersecção do eixo entre atualidade e eternidade, ou seja, a modernidade representa uma “atualidade que se consome a si mesma”. Nesse sentido, o presente não pode ser mais visto como a consciência de algo simplesmente oposto à “época rejeitada e ultrapassada, a uma figura de passado”, e sim apresentar uma atualidade capaz de ser o ponto de ligação entre o tempo e a eternidade. Em outro momento, afirma que Nietzsche é “contemporâneo” de Mallarmé e dos simbolistas, não apenas “discípulo de Schopenhauer”. E ainda: “Foucault tomou emprestado seu conceito de poder da tradição empirista, privando-o daquele potencial de experiência de um fascínio ao mesmo tempo assustador e encantador, do qual se nutriu a vanguarda estética de Baudelaire até os surrealistas”. Habermas parece, a partir desses fragmentos, associar filosofia e poesia em muitos momentos – e mesmo aceitar que a linguagem filosófica também é literária, porque não tem condições de aspirar a uma concretização delimitada.

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          No entanto, ele travou uma polêmica com o filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004) nos idos dos anos 80, sobretudo no ensaio “Excurso sobre o nivelamento da diferença de gênero entre filosofia e literatura”, do mencionado O discurso filosófico da modernidade. Nele, contesta a relação entre literatura e filosofia feita por Derrida, afirmando que, ao realizar isso, o filósofo conhecido pela desconstrução, estava fugindo à verdade que deve ser buscada pela filosofia – embora, lembre-se, Habermas viesse a discutir sobre terrorismo com ele, no início deste século, por meio do livro Filosofia em tempo de terrorDiálogos com Habermas e Derrida. Desse modo, Habermas é um dos filósofos mais avessos à poesia, apesar de utilizá-la: seus textos, que buscam a verdade do Estado, o racionalismo, são textos, apesar de seu talento, antipoéticos. No entanto, mesmo assim Habermas busca associações – para evidenciar a verdade filosófica – em pressupostos poéticos e literários (Hölderlin, Mallarmé, Baudelaire). E, a julgar por essas breves análises que faz, o que Habermas mais realiza – assim como os filósofos – corresponde também ao que se chama de literatura. Hoje, o filósofo “do consenso, do diálogo e da discussão, o filósofo que pretende distinguir entre ciência e ficção literária, entre filosofia e crítica literária”, como se referiu Derrida a ele, numa crítica direta, faz 80 anos de literatura filosófica.
          A seminegação de Habermas à “verdade” dos escritores “de ficção” – e, ao criticar Derrida, que analisava Mallarmé, Edmond Jabès etc., aos poetas –, vem de longe. A explicação sobre a má influência dos poetas, no Livro II de A república, é tomada em termos de ordem para a sociedade, no diálogo entre Sócrates, Glauco e Adimanto. Os poetas, mesmo considerando boas “a temperança e a justiça”, as achariam “difíceis e penosas”; a “intemperança” e a “injustiça” seriam mais agradáveis a eles e “de fácil domínio, somente vergonhosas na óptica da opinião pública e da lei”. Para eles, as ações injustas, nesse sentido, seriam “mais proveitosas que as justas, no conjunto, e aceitam de bom grado proclamar os maus felizes e honrá-los, quando são ricos ou dispõem de algum poder; ao contrário, desprezam e olham com desdém para os bons que são fracos e pobres, embora reconhecendo que são melhores que os outros”. Além disso, os deuses seriam acusados pelos poetas de privilegiarem os maus, dando aos “homens virtuosos” o “infortúnio e uma vida miserável”. Também “convencem não apenas os simples cidadãos, mas também as cidades, de que se pode ser absolvido e purificado dos crimes, em vida ou depois da morte, por intermédio de sacrifícios e festas a que chamam mistérios”.
          Sócrates, implicando com os versos de Homero, que contariam mentiras e influenciaram as crianças negativamente, avalia que não se deve dar ao poeta “a liberdade de afirmar que os homens punidos foram infelizes e que Deus foi o autor dos seus males”. Ao contrário, diz Sócrates, “se ele disser que os maus precisavam de castigo, sendo infelizes, e que Deus lhes fez bem castigando-os, devemos deixá-lo livre”. Por outro lado, se os poetas “disserem que Deus, que é bom, é a causa das desgraças de alguém, combateremos tais palavras com todas as nossas forças e não permitiremos que sejam proferidas ou ouvidas pelos jovens ou pelos velhos, em verso ou em prosa, numa cidade que deve ter boas leis, porque seriam pecaminoso, abusivo e absurdo”.

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          A preocupação de Sócrates é com o fato de os deuses serem vistos como seres que castigam e, consequentemente, com a criação: “Que as mães, convencidas pelos poetas, não assustem os filhos contando-lhes que certos deuses vagueiam de noite disfarçados em estranhos de todo tipo, a fim de evitarem, simultaneamente, blasfemar contra deuses e tornar as crianças mais covardes e medrosas”. As mentiras poéticas, para Sócrates, nada mais seriam do que “uma imitação do estado da alma”. E Homero continua sendo o principal culpado pelas impurezas da alma, sobretudo ao longo do Livro III, em que o diálogo de Sócrates com os companheiros continua combatendo a poética. Em particular, nesse novo livro, Sócrates avalia que os poetas utilizam a imitação, que seria um gesto inferior, pois não representam nem o divino (que teria a palavra original) nem os recriadores de objetos divinos (o criador de um leito, por exemplo). Leia-se o seguinte fragmento: “(…) se um homem perito na arte de tudo imitar viesse à nossa cidade para exibir-se com os seus poemas, nós o saudaríamos como um ser sagrado, extraordinário, agradável; porém, lhe diríamos que não existe homem com ele na nossa cidade e que não pode existir; em seguida manda-lo-íamos para outra cidade, depois de lhe termos derramado mirra na cabeça e o termos coroado com fitas”. Tal explicação socrática/platônica indica o mesmo preconceito com os poetas de todos os tempos: vistos como sagrados, extraordinários e agradáveis, mas inúteis para a sociedade, pois não vêm para contar a verdade, para ajudar na manutenção econômica ou na sustentação dos poderes, e sim para desvirtuar a realidade. Os poetas não vêm, no caso, para buscar a razão do Estado ou para a educação moderna – como quer Habermas –, porque o fazem pelo avesso.
          No fundo, a explicação de Platão é que a verdade só pode existir se se refere a Deus. Assim, para ele, a ideia de cama ou mesa, ou a mesa ou a cama, é primeiramente divina. A cópia de tais objetos seria aquela modelada pelo carpinteiro ou artesão: seria uma cópia da realidade. Em terceiro plano, o pintor ou o poeta que se dispõem a falar da mesa ou da cama estão realizando uma cópia da cópia, imitando o objeto do artesão (ou carpinteiro) e não da ideia (Deus). Importante irmos, para a comprovação disso, aos diálogos de Sócrates:

          Sócrates – Queres então que demos a Deus o nome de criador natural deste objeto ou qualquer outro nome semelhante?
          Glauco – Nada mais justo, visto que criou a natureza desse objeto e de todas as outras coisas.
          Sócrates – E o marceneiro? Devemos chamá-lo de obreiro da cama, não é verdade?
          Glauco – Sim, é.
          Sócrates – E chamaremos ao pintor o obreiro e o criador deste objeto?
          Glauco – De modo nenhum.
          Sócrates – Dize-me então o que é ele em relação à cama.
          Glauco – Parece-me que o nome que lhe conviria melhor é o de imitador daquilo de que os outros dois são os artífices.
          Sócrates – Que seja. Chamas portanto, imitador ao autor de uma produção afastada três graus da natureza.
          Glauco – Com certeza.
          Sócrates – Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores.

          A partir disso, define-se que o poeta nunca lidaria com a verdade, daí sua ameaça à sociedade que pretende se organizar em termos de justiça e coerência em A república socrática. A verdade, claro, pertence ao rei. O poeta, fazendo uma cópia da cópia, realiza um simulacro e, portanto, deve ser visto como uma ameaça ao poder (do rei). A verdade estaria representada justamente pela ideia logocêntrica da criação e não da cópia. Ou seja, o poeta, não sendo um Deus, capaz de ter criado um objeto, nem um ser humano capaz de imitá-lo (pelo trabalho braçal ou pelo conhecimento da construção), que, transpondo a ideia divina para a realidade, é capaz de apenas representá-lo, por meio da arte da escrita, não seria um bom imitador, ao mostrar uma cópia da cópia, isto é, um simulacro. 

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          Habermas, no texto em que contesta Derrida por querer misturar filosofia e literatura, adota o sentido platônico de ignorar o sentido poético das coisas. Adota esse caminho em diversos momentos da desconstrução que procura fazer da filosofia “poética” de Derrida – que Habermas assinala como pouco afeita às argumentações. Ele critica que, adotando determinada interpretação sobre haver uma mescla entre linguagem e cotidiano, Derrida “analisa quaisquer discursos segundo o modelo da linguagem poética e, assim, agir como se a linguagem fosse determinada pelo seu uso poético especializado em abrir mundos”. Habermas critica ainda em Derrida a “mudança poético-criativa de um pano de fundo posto em cena como arquiescritura”. Ao privilegiar a “função poética da linguagem”, Derrida não perceberia mais “a relação entre uma práxis linguística normal e as duas esferas extracotidianas, diferenciadas de certo modo em direções opostas”. Assim, Derrida, o que assinala Habermas, quer assimilar “a filosofia à literatura e a crítica” – o que faz de forma exemplar em livros como A escritura e a diferença (em que analisa Mallarmé, Edmond Jabès), A disseminação – em que faz a análise mais moderna de Mallarmé –, Margens da filosofia (em que escreve sobre Valéry, a linguística de Benveniste, a semiologia de Hegel, o conceito aristotélico de mímesis) e mesmo livros recentes, como Papel-máquina (no qual apresenta uma nova análise de Um lance de dados, poema mallarmeano, a partir também de Maurice Blanchot). Consequentemente, ao agir assim, o filósofo franco-argelino adota um pensamento filosófico “liberado do dever de solucionar problemas e refuncionalizando para os fins da crítica literária”, perdendo a “seriedade, mas também sua produtividade e capacidade de realização”.
           No limite de sua aversão, no discurso pretensamente científico de sua filosofia, Habermas diz que tanto Derrida quanto Adorno “descobrem o essencial no marginal e no acessório, o direito no lado do subversivo e do infrator e a verdade na periferia e no inautêntico”. Platão, como Habermas, considerava o poeta um “marginal”, “que não fala a verdade”, como vimos, assim como alguém que merece estar na “periferia” da cidade por sua “inautencidade”. Ou seja, sua proposta filosófica é antipoética. Pelo que ele comenta, conclui-se que Habermas é um filósofo da “verdade”, para o qual a literatura e a poesia acabam não trazendo nenhum componente para o chão da dita “realidade”. Escreve ele, ainda, numa nota do ensaio dedicado a desconstruir Derrida, agindo como Platão: “(…) nós, filósofos e sobretudo não-filósofos, de modo algum renunciamos às pretensões da verdade”. Derrida responderia a ele também numa nota de rodapé incluída em Limited Inc.: “(…) são os supostos filósofos, teóricos e ideólogos da comunicação, do diálogo, do consenso, da univocidade ou da transparência os que pretendem lembrar sem cessar a ética clássica da prova, da discussão e da troca, são eles que o mais das vezes dispensam-se de ler e estudar atentamente o outro (…), como se não tivessem o gosto pela comunicação”. Possivelmente, o que mais Habermas faça – como em qualquer linguagem adotada – sejam, para lembrar Platão, sua referência na expulsão dos poetas da cidade, simulacros de algo indefinido. Não por acaso, ele avalia que Mallarmé é um defensor da “arte pela arte”.
           Para o filósofo, o poeta francês deveria falar – e muito – em nome dos ideais da verdade. Mas estava tratando do poeta que escreveu a Henri Cazalis: “Sim, eu sei, não somos senão formas vãs da matéria, mas o bastante sublimes para haver inventado a Deus e a nossa alma. Tão sublimes, amigo meu, que quero dar-me este espetáculo da matéria que tem consciência de ser e que, sem embargo, se lança incessantemente a este Sonho que ela não é capaz de ser, cantando para a Alma e a todas as divinas impressões similares (…) e proclamando, ante o Nada (que é a verdade), estas gloriosas mentiras… Hei de cantá-lo desesperadamente”. Ou, como lembra Giorgio Agamben – outro filósofo que, na linha de Derrida, aproxima filosofia e poesia –, em A linguagem e a morte, do conceito de “musa” para os gregos: era o nome dado à experiência da “inapreensibilidade do lugar originário da palavra poética”. A filosofia teria nascido como tentativa de “liberar a poesia da sua ‘ inspiração’”, que consegue reter a Musa, para fazer dela, “como ‘ espírito’, o seu próprio sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o negativo (das Negative), e a ‘ voz mais bela’ […], que, segundo Platão, compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem som”. O apagamento do sujeito pela via negativa revela a sensibilidade do autor para uma concepção de modernidade descentralizada, e “voz sem som” dos filósofos traz, implicitamente, a retenção da Musa poética – porque sabe que precisa de certa maneira silenciar, como na literatura. 
           Trazer essa discussão – e muitas outras – à cena torna certamente Habermas um dos filósofos mais importantes da modernidade, em seus 80 anos, capaz de estabelecer diálogos com os maiores filósofos. Mas são seus simulacros – filosóficos, literários ou científicos, como prefere o autor – que se destacam, não as verdades capazes de estruturar o Estado através do “diálogo comunicativo” com as religiões e políticas do mundo – como ele desejaria. O que sustenta sua linguagem é o caráter da indefinição, do que ele julga marginal e subversivo, contra o puramente científico – o que lembra a poesia.

          Por André Dick

          Antonio Candido, num ensaio muito interessante, “Inquietudes na poesia de Drummond” (do volume Vários escritos), escreve que na obra do mineiro há uma “constante invasão de elementos subjetivos, e seria mesmo possível dizer que toda a sua parte mais significativa depende das metamorfoses ou das projeções em vários rumos de uma subjetividade tirânica, não importa saber até que ponto autobiográfica. Tirânica e patética, pois cada grão de egocentrismo é comprado pelo poeta com uma taxa de remorso e incerteza que o leva a querer escapar do eu, sentir e conhecer o outro, situar-se no mundo, a fim de aplacar as vertigens interiores. […] Trata-se de um problema de identidade ou de identificação do ser, de que decorre o movimento criador da sua obra na fase apontada, dando-lhe um peso de inquietude que a faz oscilar entre o eu, o mundo e a arte, sempre descontente e contrafeita” (Grifos meus). Nesta consideração, temos todos os elementos que caracterizam a proposta teórico-crítica de Candido: a busca do equilíbrio entre o eu, o mundo e a arte, em que o “egocentrismo” é visto como algo a ser combatido pela “taxa de remorso” que leva ao Outro. Candido afirma ainda, ainda, que o “eu” em Drummond “é uma espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas que o horroriza à medida que o atrai. O constrangimento (que só poderia tê-lo encurralado no silêncio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão libertadora, através da matéria indesejada”. Ou seja, Drummond se horrorizaria em relação à sua própria personalidade, à medida que é atraído pelo eu, o que lhe traria um “constrangimento”, que só pode ser vencido pela “expressão libertadora”. Sobre o passado, que persegue Drummond, como a qualquer melancólico, que não consegue se desprender dele, Candido ainda escreve: “O passado, trazido pela memória afetiva, oferece farrapos de seres contidos virtualmente no eu inicial, que se tornou, dentre tantos outros possíveis, apenas o eu insatisfatório que é. Ora, o passado é algo ambíguo, sendo ao mesmo tempo a vida que se consumou (impedindo outras formas de vida) e o conhecimento da vida, que permite pensar outra vida mais plena. É portanto com os fragmentos proporcionados pela memória que se torna possível construir uma visão coesa […] dando impressão de uma realidade mais plena”. O eu insatisfatório, neste caso, traz os farrapos de seres contidos no eu inicial, em busca de uma “realidade mais plena”, resultado de “fragmentos proporcionados pela memória”.

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          Embora Candido insista na ideia de que essa representação do poeta quer abarcar uma visão social, daí ele se considerar um gauche, isso não é verdade, pois, como um melancólico moderno, Drummond é bastante individualista – como ele mesmo escreve – e sua função social – pelo menos antes de sua passagem para o cronismo poético – é basicamente negar o mundo que aí está e não tentar salvá-lo ou representá-lo. Desse modo, ele não conta a História como ela verdadeiramente seria, como se seguisse o propósito aristotélico, mas faz dela uma estória, um relato. Daí ser sempre difícil separar o “ser” do “mundo”, como escreve Candido, mesmo quando a subjetividade seria, como no caso de Drummond, “individualista”. O “mundo”, para Candido, seria a História, ou seja, o poeta só estaria imerso nela quando se importasse com o social, como homem situado entre os outros.
          Constata-se, a partir daí, na análise de Candido, uma “polaridade” discutível: de um lado, a preocupação com os problemas sociais, e, de outro, os problemas individuais; de um lado, o “lirismo individualista”; de outro o “lirismo social”; de um lado, a “máquina retorcida da alma”, de outro, a “relação com o outro, na família, no amor, na sociedade”; de um lado, o “eu retorcido”; de outro, o “desentendimento entre os homens”; de um lado, o poeta “social”; de outro, o “grande cantar da família como grupo e tradição”; de um lado, o “egotismo profundo”, de outro “uma espécie de exposição mitológica da personalidade”. Tal dicotomia é prejudicial ao entendimento, à medida que o próprio Candido afirma que “a poesia da família e a poesia social, muito importantes na sua obra (de Drummond), decorriam de um mecanismo tão individual quanto a poesia de confissão e autoanálise, enrolando-se tanto quanto elas num eu absorvente”. A referida polaridade não tem relação com Drummond, mas sim com a obra crítica de Candido. Neste sentido, a poesia de Drummond aponta o contrário da proposta teórico-crítica de Candido: ela não tem discurso algum e, embora individualista, é muito mais humana, porque precária. A história de Drummond implica justamente em reafirmar que o poeta é gauche? Por que o poeta individualista tenta para Candido, a História, nunca a estória dos pequenos relatos lembrada por Vattimo. Candido constata que elementos subjetivos e mesmo autobiográficos se inserem na procura drummondiana. Querer ser o outro, indica Candido, faz com que o poeta deixe de ser o “eu” e se integre ao público, deixe de ser “estória” e passe a ser “História”. Candido (foto abaixo) se pergunta por que isso ocorre. A pergunta, no entanto, poderia ser: em qual poesia isso ocorre? Em qual poesia a procura pelo “público” não representa a própria incursão na subjetividade, uma vez que o indivíduo está impossibilitado de representar aquele, voltando sempre a si mesmo? Outra questão seria: por que visualizar o mundo de forma retorcida comunica menos do que o poeta social?

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          Em resposta a uma carta de Mário de Andrade, que lhe pedia para incentivar as coisas do Brasil, Drummond respondeu que achava o país infecto, com “pessoas incultas”, que viviam sob “céus sombrios”. A afirmação de Drummond certamente é contundente, mas ela mostra o quanto ele não era um “militante” social da poesia como o vê Candido – como não era João Cabral, criticado por Candido, em determinado momento do artigo “Poesia ao norte”, pela busca da “pureza poética”. Não é por tentar enfrentar o medo da sociedade contemporânea que o poeta é mais ou menos militante – em busca de uma sociedade igualitária, mas em que o discurso de todos é abafado por uma pretensa voz superior –, ou deseja transformar o mundo, a fim de “encontrar uma desculpa para si mesmo”. O “cantar” não se torna “geral”, em “evento” apenas porque é “profundamente particular”; ele é geral porque é profundamente particular. Do mesmo modo, o poeta não mostra um “aguçamento dos temas de inquietude pessoal e o aparecimento dos temas sociais” que levam a uma “peculiaríssima poesia familiar”. A família deixaria de ser o “social” apenas para representar o “ser solitário e subjetivo”? Nesse sentido, ele não é um poeta público, como também o considera Otto Maria Carpeaux, para quem Drummond também representa, por outro lado, em seu individualismo, a sociedade de seu tempo. Não se questiona aqui a reflexão de Candido de que o sentimento drummondiano pertence também a outros homens, e é feito também pelo sentimento alheio, mas sim a reflexão de que o poeta possa representar o outro, o povo, como se estivesse num patamar superior (essa linha de raciocínio provém do romantismo crítico de Schlegel e de Novalis). Candido anota, em determinado momento: “[…] a sua poesia social não é devida apenas à convicção, pois decorre sobretudo das inquietudes que o assaltam. O sentimento de insuficiência do eu, entregue a si mesmo, leva-o a querer completar-se pela adesão ao próximo, substituindo os problemas pessoais pelos problemas de todos”. Ou no seguinte fragmento: “[…] o eu estrangulado é em parte consequência, produto das circunstâncias; se assim for, o eu torto do poeta é igualmente uma espécie de subjetividade de todos, ou de muitos, no mundo torto”; ou “a experiência política permitiu transfigurar o quotidiano através do aprofundamento da consciência do outro”. São argumentos próprios do romantismo, em que uma voz lidera sobre as demais. O ápice da poesia de Drummond é visto no momento em que persegue a sociedade: em A rosa do povo, o poeta vivia a “descoberta e a prática apaixonada da poesia social”. A poesia não seria a arte do objeto, mas do “nome do objeto, para constituir uma realidade nova”. Como escreve Sérgio Buarque de Holanda, avaliando a timidez de Drummond, o poeta é o contrário de um romântico, ou seja, “ele não quer comprazer-se no malogro, nem se lamenta sobre as dores do mundo, nem – salvo por exceção – chega a sonhar com algum paraíso futuro”. A melhor saída não é exatamente colocá-lo numa nota de cinquenta cruzados novos, esquecida em alguma gaveta sem época:

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          No entanto, há algo de memorável nesta nota: os olhos tristes do poeta, por trás dos óculos, prevendo o intercâmbio não das palavras, mas o desgaste que viria com o tempo do qual quer escapar – sendo esquecido, historicamente, no fundo de uma gaveta. Por sua vez, Candido, interessado mais em história, sociologia e política, vendo a literatura como um complemento dessas áreas, viu essa vontade popular de Drummond sublimada no título de um de seus livros – o mais comentado, por sinal –, justamente A rosa do povo. Ora, se virmos atentamente esse livro, chegaremos à ideia de que poucos poemas dele remetem direta e objetivamente a acontecimentos de seu tempo ou do contexto em que foram escritos. Pode-se pensar que Drummond, como já ressaltou em alguns escritos memorialísticos, tenha ficado um certo tempo entusiasmado por certas ideias políticas. No entanto, os poemas, a não ser aqueles que evidenciam tal traço – não por acaso, os piores do livro, que o encerram –, apenas potencializam traços de Brejo das almas, Sentimento do mundo e José: uma fuga do eu da sociedade, um sentimento constante e incômodo de solidão e de isolamento (são belíssimos poemas como “Carrego comigo”, “Anoitecer” e “Nosso tempo”) – todos esses elementos, aliás, vistos de forma pejorativa por Hugo Friedrich em sua Estrutura da lírica moderna, mas como a introdução do que combatem. Alguns versos de “Nosso tempo” mostram que Drummond fala de um sentimento que podemos sentir hoje, em tempos de relações superficiais e de guerras disfarçadas de justiça: “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos / […] Este é tempo de divisas, / tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços / obscenos gestos avulsos”. Vejamos a solidão de “Passagem da noite”, de “Retrato de família” ou de “Uma hora e mais outra”, o clima melancólico de “Nos áureos tempos”. Há poemas de simples detalhes do cotidiano, como “Ontem”, “Episódio” e o excelente “Fragilidade”; a visualização do crescimento da metrópole (em “Edifício São Borja”), o tédio do serviço público (“Noite na repartição”), o medo solitário (“Morte no avião”), a sensação de tempo desperdiçado (em “Idade madura”), mas tudo é muito idiossincrático; não se percebe uma voz que represente a todos, mas apenas ao medo personificado, ao ressentimento duro, áspero, em só um homem: Drummond. Lembre-se, nesse sentido, como exemplo maior, o magnífico poema “Desfile”, com seus antológicos versos iniciais e finais.

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          Os temas, de qualquer modo, são repetidos em seus livros posteriores, apenas sob uma formalização do verso, como nos poemas de Claro enigma, Fazendeiro do ar e A vida passada a limpo. O poeta, sob esse ponto de vista de guia da humanidade, é incapaz de representar a si mesmo, e também ao outro. Não está a serviço de uma ética universal – pelo contrário, tem a sua, que é forte e não quer se impor. Sabe, ao mesmo tempo, que quem costuma falar em solidariedade com o mundo muitas vezes não a mostra nem a quem está ao lado – e, nesse sentido, sua poesia é “real”. Não há nada nele, aliás, que represente: a subjetividade não é feita somente quando está ligada a um “dentro”, ao “individualismo”, quando o “fora” é o cotidiano, o movimento diário, a máquina pública. Um poeta individualista não representa o “privado”, enquanto lá fora está o “público”. Ele não é subjetivo apenas quando pensa em si mesmo, não havendo dicotomia na formação de qualquer linguagem, como também entre alta e baixa cultura quando se trata de apropriação poética (no caso de Drummond, Alguma poesia, por representar o cotidiano, seria, para muitos, a baixa cultura, enquanto Claro enigma, por trabalhar com formas clássicas, representaria a alta cultura; o primeiro traria um “sentimento popular”; o segundo, um “sentimento sublime”). Nesse ponto, Sérgio Buarque comenta que o “exercício ocasional de um tipo de poesia militante e contenciosa” (vista em Sentimento do mundo) serviu para “purificar ainda mais uma expressão que já alcançara singular limpidez”. Percebe, ainda, que o “impulso que o levaria a superar essa poesia militante não chegaria nele a abolir a preocupação constante do mundo finito e das coisas do tempo”, como vemos em Claro enigma.  São reflexões que excluem um tanto o sentido de unidade que existe na obra do poeta mineiro. Drummond sabe, como entende de forma exata Sérgio Buarque, que a depuração não consiste em eliminar todo prosaísmo, e este serve para se intensificar o “poético pela própria força do contraste”. Por isso, Drummond – entre os poetas brasileiros – é tão moderno. Porque, como observa Roland Barthes, “o Moderno (…) é uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não apenas mais no nível de grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós”. Aqui, podemos perceber a “pequena história” de Drummond, tão significativa em seu propósito indefinido.

          Por André Dick

          A poesia de Carlos Drummond de Andrade tornou-se, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX, numa referência evidente a uma pesquisa literária que pretende promover uma relação do homem com a sociedade, do texto poético com a História (a maiúscula, aqui, é indispensável). Esta ligação na análise de sua obra aponta uma discussão relacionada à recepção pública e à sociologia. 
          Drummond, de qualquer modo, em alguns momentos confirma isso, como numa carta a Cabral, então na Europa, em que fala da necessidade que ele tinha de levar a poesia de qualidade, hermética ou não, ao povo. Instigando Cabral, pergunta: “Já meditou na fascinante experiência que seria fazer livros de custo ínfimo, com páginas sugestivas, levando a poesia moderna aos operários, aos pequenos funcionários públicos, a toda essa gente atualmente condenada a absorver uma literatura de quarta classe porque se convencionou reservar certos gêneros e tendências para o pessoal dos salões e das universidades?”. O que mais queria Drummond, por esse fragmento de sua carta, era ser entendido pelo povo que não costuma ler poesia, ou melhor, que não tem acesso a ela, e fugir do universo acadêmico, a seu ver, pelo que se entende, elitista. É como se ele se colocasse no papel de um mediador romântico para o restante da humanidade e mostrasse um desinteresse por exibir aquilo que ele chamava em Cabral de hermético. Drummond, nesse sentido, é o poeta do povo, o poeta que pensa na sociedade, em oposição a Cabral, o poeta intelectualizado, que não pensa no leitor, mas que deve aceitar esse caminho e se fazer entender desse modo. A melhor poesia de Drummond, todavia, não segue nenhum desses caminhos.

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          Drummond foi um poeta que procurava a dissolução do eu lírico, mas não o “eu impessoal”, à medida que seus versos não são mediados por um Romantismo nem a serviço das vanguardas do início do século XX. Ele, assim, procurava sua desintegração, daí também sua falta de necessidade para discutir poesia, o que tanto incomodou a Mário Faustino, que, no entanto, afirmou, no artigo “Poeta maior”, que sua obra é “documento crítico de um país e de uma época”, e que, “no futuro, quem quiser conhecer o Geist brasileiro, pelo menos entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e ‘filósofos’ nossos”. O desejo de Faustino mistura um fundo vanguardista e romântico. O poeta, em sua reflexão, passa ao posto de representante de uma história, como aquele capaz de escrever, em seus versos, a verdadeira história, a verdadeira sociedade – esquecendo, por um momento, que o importante é a poesia, e esta não é simples reflexo da sociedade ou do seu tempo, possuindo, antes de tudo, uma ligação com a atemporalidade. A este argumento, poderá ser contraposto que mesmo essa atemporalidade inexiste porque toda a obra foi criada num ambiente histórico. Basta lembarmos o argumento de Faustino: “A linguagem de Carlos Drummond sempre teve momentos indubitavelmente ‘poéticos’(i. e., linguagem de criação, e não só de expressão; meio de doação, e não só comunicação; apresentação do objeto, e não apenas alusão ou comentário ao objeto)”. E ainda: Drummond é um renovador da “linguagem prosaica”, um grande verse maker – “ponto máximo de uma tradição relativamente pobre nesse sentido” – e o autor que colocou “a linguagem retórica em nossa língua (…) em seus devidos termos”. Tais observações mostram que a importância de Drummond se dá sobretudo na construção de uma linguagem poética mais moderna, em relação à tradição na qual se inseriu, mas sem anunciar rupturas ou querer revolucionar a discussão literária.
          Se Drummond certamente esteve longe de ser um vanguardista, tampouco quis solucionar questões deixadas pelo modernismo dos Andrade, Oswald e Mário, embora Alguma poesia, de 1930, trouxesse alguns elementos principalmente da poesia de Oswald. Ele desejou afastar-se da primeira fase do modernismo, sem voltar às formas mais clássicas, como o fez a Geração de 45, embora mais tarde as tenha procurado (em Claro enigma, sobretudo). Em relação à poesia concreta, o motivo evidente de em parte desconsiderá-la é que Drummond se sentiu atingido, por ela, no seu campo: o que ressaltava uma poesia crítica. Trata-se de um poeta descolado da tradição clássica mas tampouco inserido na revolução artística. Porque Drummond, querendo situar sua poesia num contexto histórico, acabou se desintegrando nas coisas e fatos – que ele criticou num determinado poema – desse mesmo contexto, destacando os ganhos que ofereceu na linguagem (não são poucos, mas costumam, em muitas análises, aparecer depois de sua relevância sociopolítica).
          É revelador o pedido que lhe faz João Cabral para participar de um Congresso de Poesia em Recife, em 1940, boicotado, segundo o pernambucano, por sociólogos, sobretudo Gilberto Freyre, que imaginavam ser a poesia inadequada para os tempos de guerra que então se viviam. Mas reveladora mesmo é a resposta de Drummond: “Não tive mais notícias do Congresso de Poesia e não sei se ele se realizou. Sei, apenas, que deixei sem resposta sua carta sobre o congresso, e isso é muito feio, embora se explique: trabalho, papelório, trabalho”. O mesmo poeta que alguns anos mais tarde pediria a Cabral uma poesia para o povo e não para a academia, como dito no início desse artigo, era incapaz de se distanciar de seu “trabalho, papelório, trabalho” para discutir, em público, o trabalho poético. Não existe posição mais individualista do que esta, mas o individualismo e a burocracia pertencem não ao campo do poeta-funcionário público, a um sujeito de direita e não de esquerda, conformado, mas a um intenso desalento individualista com o qual o poeta convivia, em sua “náusea matinal” – que transparece em sua poesia, mas é negado pela visualização de Drummond como uma figura mitológica da poesia, capaz de se aproximar de figuras importantes. Parece sintetizar isso em “Rua do olhar”: “Vem, farol tímido, / dizer-nos que o mundo / de fato é restrito, / cabe num olhar”. Drummond não é realmente um inventor, como considera Faustino, como tampouco Pound e Eliot o eram. Não fazia vanguarda – como João Cabral também não fazia –, mas sim era um mestre, que trabalha melhor os processos que muitos inventores. E Drummond foi um inegável mestre, sobretudo da sintaxe, como observa Davi Arrigucci Jr., em livros como Claro enigma, A vida passada a limpo, A rosa do povo, A falta que ama, Fazendeiro do ar e A paixão medida (este, uma redescoberta excepcional de sua poesia já nos anos 1980, depois de cair na poesia-crônica de Boitempo).

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          Por isso, como afirma Paulo Leminski, ele não começa “nenhuma coisa”, embora tampouco mostre seu desfecho – isso ficaria provado a partir dos anos 1990, quando a poesia brasileira voltou a incorporar certa dicção drummondiana, equilibrada com os resquícios concretistas (que Drummond, aliás, utilizou em Lição de coisas). O leitor pode pensar que Drummond não quis ingressar nessa “nova era” porque pertencia a um outro tempo, à fase romântica, digamos assim, das vanguardas, marcada pelo modernismo, porque nasceu num tempo de bondes na rua, da calmaria de Itabira. Mais acertado seria pensar que Drummond não quis ingressar em nenhuma “nova era”, porque ele nunca esteve em era nenhuma – não, ao menos, no sentido histórico que lhe aplicam. Com Drummond, isso só acontece subjetivamente, nunca de forma clara. Tudo é encoberto e o fato de não viver em era alguma o torna parte de um processo que não elimina, claro, a historicidade discreta de sua poesia, mas a converte, reitera-se, antes de mais nada, em desintegração do seu “eu lírico” – que pode representar uma influência histórica, não há dúvida, mas esse caminho interpretativo parece empobrecer a presença e relevância do escritor. O fato de não poder se ligar sua poesia à História é claro na medida em que Drummond não especifica, em nenhum poema, que faz parte dessa História: ele é apenas um ser à margem, como se criasse teias numa casa inexistente. A consideração, no entanto, que José Guilherme Merquior faz num ensaio é caracterizadora do exagero que perpassa a obra do mineiro: “A história, em Drummond, é história mesmo, história real, e não – como a de Pound ou Eliot – matéria-prima do mito”. Por essa observação, Drummond, então, teria de ser considerado um historiador e não um poeta – o que não deixaria de ser atrativo para certa interpretação crítica. Não é o que vemos. À margem de fatos e acontecimentos, sem influenciá-los, a não ser pela persona poética, Drummond fez sua obra. Como escreve o filósofo italiano Gianni Vattimo, “a história dos eventos – políticos, militares, dos grandes movimentos de ideias – é apenas uma história entre outras”, sendo a História muito mais uma “estória”, um “relato”. Esse relato implica uma história “dos modos de vida, que caminha muito mais lentamente e se aproxima quase de uma `história natural’ dos fatos humanos”.
          Drummond simboliza o fracasso da palavra, e sua poesia não é mais do que um relato do silêncio, da linguagem verbal – não pertencente nem à modernidade nem à pós-modernidade estudada por Vattimo, nem muito menos a uma representação de força a favor de quem é oprimido (objetivo benjaminiano). Diz Drummond em “Mundo grande”: “(Na solidão de indivíduo / desaprendi a linguagem / com que homens se comunicam.)”. Também em “Notícias”: “De ti para mim, apelos, / de mim para ti, silêncio”. Ele aponta, pela negação, o curso que deve seguir como homem, pois, desgastado dentro das formas líricas pelas quais atravessa (desde o verso livre, por vezes construído em poemas com quadras e tercetos, das primeiras obras, como José, A rosa do povo e Sentimento do mundo, passando pelos sonetos de Claro enigma, influenciados por Valéry, até poemas com métrica), não é mais do que alguém que pretende se extinguir da sociedade que o cerca, das cidades em que se movimenta, dos períodos em que vive – seguindo a história pessoal dos fatos humanos, muito mais silenciosa.
          Drummond afirma o quanto o incomodava “ser brasileiro”, o que não deixa de ser um paradoxo para quem queria chegar aos que tinham menos acesso à literatura. Dizia também preferir a classe “francesa” e, para isso, lembremos do “vai ser gauche na vida”. Longe de ser ingênuo, Drummond parecia desejar, sim, o meio acadêmico, mas só para sua obra, e sua negação à Academia Brasileira de Letras parece ser um exemplo físico e claro dessa sua escolha; ao mesmo tempo ele queria se dissociar dela e ficar no meio do “povo”. A longa distância que separa obras iniciais como José, Brejo das almas e A rosa do povo de Claro enigma e Lição de coisas, obras nas quais já estava consagrado e mesmo assim queria um caminho hermético, não anula a sincronia que possuem. Quanto mais longe da academia, mais perto da burocracia e do povo. Quanto mais hermético, mais perto da poesia pura. Boitempo, suas memórias, é uma coleção de poemas constrangedores. Em Corpo e Amar se aprende amando, parecia fazer poesia já sem o fôlego e a intensidade dedicada às palavras de antes. Versiprosa, com poemas publicados em jornal, quase como crônicas, parece revelar esse Drummond que quer o povo e não a academia e, como antivoz, quer apenas inscrever suas palavras no jornal para logo se libertar das ideias nas quais se esconde como ser humano despersonalizado e fragmentado que sempre foi. Não quer o palanque, mas sim – em seus melhores momentos – se livrar do texto e das memórias, deixar de incorporar o burocrata que carrega pastas e assina papéis. Mas, quando imagina representar o povo (uma impossibilidade, pois não há superioridade entre indivíduos), como poeta-cronista, ele, de algum modo, se entrega ao objetivo romântico de mediador da humanidade – e abandona a complexidade maior de sua poesia, voltada ao mais profundo desalento individualista, ainda que suscitado pelo desgaste com o outro.

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          Por isso, Drummond tinha algumas qualidades do melancólico: não gostava do país (mas não negava uma participação no serviço público), escrevia muito e desejava ser compreendido (mas mantinha distância no convívio público), bastante individualista, voltado às suas lembranças. Nesse sentido, ao contrário, porém, de como é conhecido – o poeta social de A rosa do povo –, Drummond não gostava da vida na metrópole; lembrava com nostalgia da sua cidade provinciana de Minas Gerais, Itabira, que a maioria dos leitores de Drummond só conhece através das palavras do poeta. Itabira é um fruto da mesma criação do poeta que pensa ter nas mãos o “sentimento do mundo”. Até a cidade em que nasceu torna-se produto da sua criação e desintegração, e a criação, combatendo a ideia de que Drummond quis transformar sua ausência de época num traço histórico da sua escritura, faz parte primeiramente do universo literário, contra o qual, sabemos, Drummond foi parcialmente contra, pela seu desinteresse em aderir a escolas, movimentos e espaços acadêmicos.
          Queria viver na província dentro da cidade grande – e daí surge sua visão solitária – que não é o retrato de sua época, mas o seu retrato (ou seja, Drummond seria individualista mesmo numa época de maior compreensão entre os homens). Quando via uma rosa nascendo no asfalto, isso era para combater a náusea que lhe provocava o cotidiano. A cidade grande despertava intensa melancolia em sua obra: “Preso à minha classe e algumas roupas, / vou de branco pela rua cinzenta. / Melancolias, mercadorias espreitam-me”. Seu castigo talvez seja ser conhecido como o poeta que melhor vislumbrou a vida do brasileiro. Detrás das pilhas de papel para carimbar, Drummond nutria uma violência contra a realidade, sobretudo aquela que trazia a vida pública externa ao seu isolamento e ao seu apagamento por meio da escrita. Em carta a João Cabral de 1944, ele escreve: “E viva a burocracia, nosso pão e nosso câncer…”. Negá-lo é buscar uma interpretação de Drummond como um Macunaíma da repartição pública, entregando-se à sua mitologia meramente pessoal.
          Se existia alguma alegria, ela estava novamente no horizonte de Itabira, sua cidadezinha de Minas. Em “Confidência do itabirano”, ele escreve: “Tive ouro, tive gados, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público / Itabira é apenas uma fotografia na parede / Mas como dói”. São versos que significam o ressentimento de alguém que se sente fora de geografia. Existia, continuamente, uma saudade que não ele não consegue mais expressar: “À beira do negro poço / debruço-me, nada alcanço. / Decerto perdi os olhos / que tinha quando criança” (“Canto negro”). Seu livro de estreia, Alguma poesia, apesar de ter poemas que lembram os de Oswald e Mário, aproveitava mais a transposição da cultura europeia que eles tinham trazido, em meio aos seus cartões-postais do cotidiano brasileiro. No poema “Lanterna mágica”, ele escreve: “Meus olhos têm melancolias, / minha boca tem rugas. / Velha cidade! / As árvores tão repetidas”. Ou em “Cantiga de viúvo”: “A noite caiu na minh’alma, / fiquei triste sem querer”. E em “Nota social”: “O poeta está melancólico”. Pequenos relatos, nunca a História.
          Por vezes, Drummond se colocava na terceira pessoa, a fim de convencer o leitor de que havia outro. O outro é sempre ele mesmo. Em José, escrevia, em “Tristeza no céu”: “No céu também há uma hora melancólica. / Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas”. As almas também eram ele. Drummond escrevia versos como que para escapar de seu destino de burocrata do serviço público. Ele representava o fracasso do amor no mundo moderno: “A poesia é incomunicável. / Fique torto no seu canto. / Não ame”. O amor, para o melancólico, morre mesmo antes de começar, e não é diferente em Drummond: “Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim / (já começara, antes de ser), e somos eternos, / fragéis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos”) (“Permanência”). E, para fugir de si mesmo, Drummond enfrentava a melancolia que o impede de ser o poeta social que Antonio Candido vislumbrou – o que veremos na continuação deste artigo.