
Na edição nº 130 do Cadernos IHU ideias intitulado Nanotecnologia e meio ambiente para uma sociedade sustentável do autor Paulo Roberto Martins debate as possibilidades de uma relação sustentável e equilibrada entre avanço cientifico, produção material e natureza que as nanotecnologias trazem. Vislumbra-se, assim, saídas para os desafios ambientais do Século XXI.
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Por André Dick
O volume Poesia pois é poesia – Poesia 1950-2000 são as obras completas em “verso”, até agora, de Décio Pignatari, escritor nascido em Jundiaí (SP), em 1927. Editado primeiramente pela Duas Cidades, depois pela Brasiliense – em versões reduzidas, a segunda edição com o acréscimo & Po&etc no título – , o mais recente Poesia pois é poesia tem os selos da Ateliê Editorial e da editora Unicamp. Embora continue importante, falar em Pignatari como poeta hoje em dia parece estranho, talvez por ele andar um pouco afastado do gênero ao qual se dedicou dos anos 1950 ao final dos anos 70, sobretudo na fase mais polêmica do Concretismo, do qual foi um dos criadores. Tornou-se conhecida sua reflexão, referindo-se ao trabalho dos concretos: “certa vez um poeta consagrado nos disse: o arco não pode permanecer tenso o tempo todo um dia tem de afrouxar & eu: no meio da geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso” (ver “Depoimento 1”, em Contracomunicação). Afirmar isso num panorama que tinha ainda Drummond, João Cabral e Manuel Bandeira (como ele reconhece no mesmo depoimento), além de Murilo Mendes e companheiros de geração (como Hilda Hilst e Sebastião Uchoa Leite) soava, além de exagerado, fora de contexto, mas a polêmica era essencial num universo em que pouco se discutia poesia, como afirmava Mário Faustino, e poetas experimentais recorriam a uma poesia mais popular, a exemplo de Ferreira Gullar. Alguns levaram tão a sério sua frase que até hoje a consideram ofensiva. e a poesia concreta não deixa de pagar as contas por sua pretensão numa época em que o incomunicável – a poesia – ainda pouco comunica. O resultado é que ainda hoje qualquer elogio feito ao trabalho dos poetas que dela participaram – sobretudo Augusto de Campos e Pignatari – parece soar anacrônico, como se eles tivessem ficado parados nos anos 1950, imobilizados pelo tempo e pela teoria.
Não foi exatamente assim. Depois de atuar como o principal poeta concreto que estabeleceu contato com europeus (como Max Bense, Pierre Boulez e Eugen Gomringer), Décio, ao mesmo tempo que seria professor de Semiótica, dedicou-se ao estudo dos mass media, escrevendo livros dentro desse campo. Interessado pela linguística, ajudou a criar a Associação Internacional de Semiótica, em que o diretor era Roman Jakobson. Envolveu-se, ao longo dos anos, com a publicidade (ele criou a sigla “Lubrax”), no que foi seguido por poetas como Paulo Leminski, um de seus melhores amigos nos anos 1970, com a prosa e com o jornalismo (nos anos 60, aliás, ele já escrevia sobre futebol, como podemos ver em crônicas de Contracomunicação). Da sua poesia em stricto sensu, Décio se afastou quase que totalmente a partir de meados dos anos 1980 (entre 1990 e 2000, fez menos de vinte poemas, número pequeno em relação aos mais de cem, incluindo as traduções, que fez entre 1950 e 1989, não se esquecendo aqui que quantidade não representa necessariamente qualidade). De qualquer modo, é preciso levar em conta seus trabalhos como tradutor, em Retrato do amor quando jovem (em que traduz Dante, Shakespeare, Goethe etc.), 31 poetas, 214 poemas: Do Rig-veda a Apollinaire e Marina Tsvietáieva (com traduções da poeta russa moderna), além de sua participação nos trabalhos de Mallarmé e Ezra Pound. No livro de memórias Errâncias, apresenta textos (sobre o túmulo de Mallarmé, por exemplo) com ressonância poética – qualidade também presente em seu romance joyciano Panteros e em seus contos de O rosto da memória. Ao ler sua poesia, porém, sabemos que o seu libello didático sobre como fazer/entender poesia, Comunicação poética, é muito pouco para entender a complexidade e “beleza difícil” de sua obra.
Imagens atípicas
Em sua trajetória eclética, o trabalho de Décio, como criador e tradutor de poesia, não só continua a interessar como revela uma ligação direta com a obra de seu companheiro mais direto: Augusto de Campos. Isso porque, ao contrário de Haroldo de Campos, Augusto e Décio se aprofundaram no cuidado tipológico e gráfico da palavra na página, embora o autor de Poesia pois é poesia não tenha se dedicado a ele exclusivamente. De qualquer modo, a influência gráfica do poema Um lance de dados, de Mallarmé, é visível tanto em sua obra quanto na de Augusto (Haroldo de Campos recorria a Mallarmé de forma mais subjetiva do que visual). Eles também souberam, como Haroldo, se desvencilhar da fase ortodoxa do concretismo, que serviu para obter um rigor ainda maior, por meio de uma busca de novos caminhos para seus projetos.
Costuma-se dizer que a fase mais radical do trio Noigandres ocorreu durante o auge do movimento da poesia concreta. É possível. Mas, sob outro ponto de vista, é oportuno considerar que, nas obras dos três autores, suas fases mais radicais – no sentido de exploração de imagens, de ousadias sintáticas e semânticas – foram exatamente as pré e as pós-concretas. Na fase pré-concreta era comum que as obras deles fossem parecidas (embora cada uma tivesse características e modos de desenvolvimento particulares), na escolha de alguns temas. Do trio, Décio é o mais barroco em sua fase inicial, mesmo que este conceito tenha se adaptado melhor a Haroldo depois de Galáxias e de livros como A educação dos cinco sentidos e Crisantempo. É o próprio Haroldo que no ensaio “A arquitextura do barroco”, incluído em A operação do texto (1976), considerou Pignatari como um dos poetas que conseguiram, como Sarduy, Mallarmé, Góngora, Sousândrade e Lezama Lima – poetas de diferentes épocas, mas é importante dizer que, para Haroldo, o barroco era transistórico – atingir um alto nível de imagens barrocas em seus poemas. Haroldo destacava o seguinte poema:
Move-se a brisa ao sol final e no jardim confronta
a púrpura com luz e a turva bifrenária – um gesto de
azinhavre. Eni abre o portão, manchas solares
confabulam: (esvai-se o verão). Seus olhos
suspeitam, temem o susto das mudanças
incríveis, repelem o jardim bifronte ao sopro do
crepúsculo. De verde amargo e quinas de ferrugem,
um cáctus castelar, optando contra
a sombra rasa, num escrutínio de esgares, soergue
entre os cílios de Eni, por um instante, um rútilo
solar, em marcha com suas nuvens noivas!
E ela depõe, aos pés de ocre do castelo,
as pálpebras, aos poucos liquefeitas
ouro – um malentendimento de ternura
na tarde decadente, cáctus.
Haroldo afirma que o poema apresenta “Um dos mais espetaculares lances de competência logopaica (logopeia: a dança do intelecto entre palavras – Ezra Pound) da moderna poesia de língua portuguesa”. Seria um exagero – sendo Haroldo amigo próximo de Décio –, não fosse coerente com a composição. A ligação da claridade do “sol final”, do “sopro do crepúsculo” com as pálpebras liquefeitas, depois que Eni abre o portão e “manchas solares confabulam”, indo embora o verão, e o desenho do cáctus como uma “tarde decadente”, com seu “verde amargo”, compõem um panorama de solidão, o que o torna ainda mais contemporâneo. Haroldo voltou a lembrar tal riqueza de imagens num texto, incluído em Metalinguagem & outras metas (1992) sobre a crítica antecipatória de Sérgio Buarque de Holanda, que teria visto nos poemas de Pignatari algumas qualidades que o ligariam a um traço, segundo Haroldo, de “furiosa pulsão barroquizante”. Destacava Sérgio Buarque nos poemas iniciais de Décio (tal artigo se encontra no segundo volume de O espírito e a letra): “formas amétricas – embora não necessariamente arrítmicas”. O crítico assinalava também uma “mobilidade da expressão” provinda de uma “deliberada aplicação a temas e ritmos que ajudam a estimulá-la”.
Desde O Carrossel, de 1950, seu livro de estreia, Pignatari propõe imagens atípicas e móveis, como se ritmassem um filme (“Cavalgo em ‘travelling’ / Com minha infância!”). Como outro exemplo, temos o poema “O lobisomem”, que, com seu humor corrosivo, mostra uma espécie de matemática surrealista, com a qual trabalhava Lautréamont em seus Cantos de Maldoror, e uma certa morbidez em versos como “Arrancou a epiderme com sangue / Toda quente de pêlos malhados”. Em “Poema”, perceba-se a precisão dos versos: “Tosco dizer de coisas fluidas, / Gume de rocha rasga o vento: / Semanas tantas de existir / E de viver – um só momento”. Como os irmãos Campos, Décio recorre a poemas de origem quase teatral, como “Altar-menor”, em que pode explorar, com a devida ênfase, seu conjunto de imagens. Essas ressurgem com toques da ciltura oriental num poema como “Périplo de agosto a água e sal”, que dialoga com a obra Auto do possesso, de Haroldo, com suas referências à “Meca de califas”, a Ramsés II (“Que fermentou por 3 000 anos numa estufa de marfim”), às “tecelãs hindus / Que tresmalharam fios de um mágico tapete” e a mercadores beduínos. A amizade entre Décio e os companheiros de poesia concreta, portanto, não ficaria restrita à esfera pessoal. É demonstrada, por exemplo, no poema “Rosa d’os amigos”, que Pignatari dedica a eles e a si próprio, no qual Sérgio Buarque destacava o “malabarismo vocabular”. Um poema sem autoelogios, mas esclarecedor no que se refere a uma poética em comum: “Esta é a rosa d’amigos (dirás: mesa redonda) / Conciliemos ao crepúsculo: / Este vidro tem algo que não é dos vidros” – este vidro que não é dos vidros sendo isolado como a “flor” de João Cabral e a do “buquê de flores” de Mallarmé.
Autobiografia irônica
A ausência de autoelogios também ocorre, da seção Rumo a Nausicaa (com sua clara referência à tradição greco-latina), no poema “Hidrofobia em Canárias”, no qual Décio se antecipa à autointitulação de Leminski como “cachorro louco” escrevendo que é um “cão raivoso”: “decius é o cão / pignatari – o canil”. Há uma espécie de romantismo, na écogla moderna pastoril de “A morte do infante”, com seu tom do Ricardo Reis de Fernando Pessoa: “Vulnerável aos poros da terra perfumada / virei saber dos tempos naturais, / a brisa, a chuva, as vozes familiares / numa saudade confundida / entre o pássaro e a lágrima!”. Também no belo “Noção de pátria”, com a expressão usada por Augusto no título de um livro ensaístico seu, publicado em 1989: “Apenas o amor e, em sua ausência, o amor, / decreta, superposto em ostras de coragem, / o exílio do exílio à margem da margem” (grifos meus, que formam o título do livro de Augusto). E, como faz Augusto em “Ad augusta per angusta”, Décio continua fazendo uma espécie de autobiografia irônica, trabalhando à exaustão um número impressionante de analogias, em poemas como “Decius infante” (que traz novamente a figura do cáctus), “Epitáfio” (com os versos finais que dizem: “Crescente como o céu de março nas ameias das torres elevadas e redondas / e à tua própria sombra no mundo que perdeste / descansa Pignatari”), além de apostar no romantismo de poemas para a amada Eni (em “Fadas para Eni”, escreve: “Eu sou o Príncipe Eni”), relembrando o castelo e o cáctus da tarde do poema antes mencionado. Igualmente, é capaz de dialogar com a poesia de Rimbaud, em “Bateau pas ivre”, com a prosa, que tem algo de barroco, de Marcel Proust, na extensão dos versos e de cada ideia desencadeada (“Viver é frio – sem o cansaço aberto / à tarde, final e vagarosa, e em viagem / sem velas – sem o feliz murmúrio / das vísceras, como constelações de rumo / sussurrantes / para Vésper – e ao largo, ao largo / da insistência mordente de um dia sem piedade (…)”), e com a poesia de Mallarmé (considerado por Pignatari seu mestre, em um texto de seu “biográfico” Errâncias). A presença mallarmeana está numa certa cadência metalinguística desprendida da figura suprema do Autor, procurando a rarefação, em “Eupoema”, por exemplo: “Eu não sou quem escreve, / mas sim o que escrevo: / Algures Alguém / são ecos do enlevo”. O poeta brasileiro também dialoga, nessa primeira fase de sua poesia, antecendo a poesia concreta propriamente dita, com o autor do revolucionário Um lance de dados em “Adieu, Mallaimé (Autoportraîte)” – empregando as palavras espalhadas pela página – e na quebra sintática e vocabular de “Stèle pour vivre nº 1” e “nº 2”, além de sua disposição espacial diferenciada. Todos esses poemas entram na seção “Vértebra”, com poemas publicados na revista Noigandres 3, em 1956. (Continua)
Por André Dick
O “romance-ideia” Catatau, que ocupou nove anos da vida de Paulo Leminski, de 1966 a 1974, foi lançado primeiramente em 1975. Do trio Noigandres (Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos), lembrado na dedicatória, Leminski não chegou a ver nenhum texto escrito em vida. Incomodado com isso, escreveu ele em suas cartas a Régis Bonvicino em Envie meu dicionário (mantenho o corte poético que Leminski dava às suas frases): “não sei bem dizer se eles gostaram ou não / enfim, o que é gostar? / tenho certeza q para o paladar weberiano-joãogilbertesco / de Augusto / o Catatau deve ter parecido bagunçado demais / irregular demais / entrópico demais / / Augusto nunca foi muito claro comigo acerca do q ele achou do / Catatau produto final / o saque cartésio x trópico a anedota eu sei q ele adora / / décio se refere ao Catatau falando em ‘monolito’, ‘é uma boa’, / coisas assim / / haroldo, de haroldo nunca ouvi nem uma palavra”. Foi justamente Haroldo de Campos quem escreveu sobre Catatau no ano da morte do autor, no texto “Uma leminskíada barrocodélica”. Contudo, Leminski morreu antes de ele ser publicado. Décio, por sua vez, como coordenador da Fundação Cultural de Curitiba, abriu espaço para a pesquisa que terminaria na visão crítica e anotada de Catatau lançada pela Travessa dos Editores em 2004.
A expectativa de Leminski em relação à opinião dos poetas concretos caracterizou boa parte de sua trajetória. Catatau revela um encontro entre as ideias deles (mesmo que não possa ser entendido à luz do plano-piloto) e a Tropicália (Leminski, a princípio, dedicaria o livro a Caetano Veloso e a Gilberto Gil). Ou seja, o cartesianismo é visto como pano-de-fundo para um movimento de contracultura (embora seja difícil negar que haja nesta, como em qualquer transformação cultural, um pensamento pré-programado). Lembremos também que Caetano, em 1981, lançou a música “Outras palavras”, uma composição de influência joyciana e também leminskiana – já que o cantor e o poeta conviviam com frequência naquele período (mesmo que Caetano não o cite em nenhum momento em Verdade tropical). Essas influências mostravam os caminhos de Leminski, dividido entre e o erudito e o popular.
Catatau, ao mesmo tempo, e não há nada de novo nessa consideração, dialoga criticamente com obras experimentais, como Finnegans wake e Ulysses, de Joyce, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e Galáxias, de Haroldo de Campos. Sem dúvida, as palavras-montagem e o clima onírico na obra de Leminski dialogam com as criações joycianas. Também há traços de Guimarães Rosa. Em comparação à obra máxima do escritor mineiro, no entanto, como respondeu Leminski numa entrevista à revista Quem (1978), Catatau tenta ir além, chegando aos limites da “ininteligibilidade” e avançando nos meandros do Finnegans wake, que, para o teórico francês Michel Butor, poderia ser lido a partir de qualquer página. Considerar a obra uma diluição ou uma glosa da de Haroldo de Campos já não parece tão verdadeiro. Não que Galáxias não tenha servido de forte inspiração para Leminski – serviu. Mas Catatau, embora não pareça, é um livro que apresenta, ao contrário da multiplicidade barroca de Haroldo, uma ideia (fantasiosa) básica: a de René Descartes (latinizado para Renatus Cartesius, como era de praxe na época) ter parado em terras brasileiras, mais exatamente na Recife holandesa de Maurício de Nassau, estando à espera do polaco Articewski, estrategista do exército da Companhia das Índias Ocidentais, para solucionar suas dúvidas, despertadas pela febre diante do universo tropical, de paisagens em forma de pesadelo, línguas e linguagens excessivas para seu racionalismo. À espera dele, Cartesius caminha pelo parque de Vrijburg, construído por Nassau em Recife.
Catatau parece apresentar uma ligação, por vezes alegórica, com passagens significativas da trajetória de Leminski, que era professor de história, com tendência a Borges. Foi numa aula de história que, en passant, Leminski teve a ideia de imaginar que, se Maurício de Nassau veio a Recife, Pernambuco, pode ter vindo junto, em sua comitiva, o filosófo René Descartes, que pertencia ao seu círculo. Isso nunca aconteceu. Ou seja, a história de Leminski é implausível do ponto de vista histórico. A ideia anotada durante a aula acabou virando um conto chamado Descartes com lentes, que Leminski enviou ao 1º Concurso de Contos do Paraná. Por uma confusão na hora de contar os votos, perdeu (mas Fausto Cunha, representante do júri, escreveria a Leminski, em 1987, dizendo que o melhor conto havia sido o dele). Como escreve Leminski, no texto “Descordenadas artesianas”, que encerra Catatau e ajuda a explicá-lo: “Descartes com lentes era um esquema: trazia em si um princípio de crescimento, uma lei e uma necessidade de expansão, como uma alegoria barroca”. Alegoria barroca, como a vida de Leminski, que misturava inúmeras linguagens. Ele lidou com uma quantidade considerável de leituras, de experimentações, de identidades: estudou no Mosteiro de São Bento (onde se aperfeiçoou no latim, que utilizaria em sua tradução, em 1985, de Satyricon); largou duas faculdades, de Letras e de Direito; viajou de carona, como um beatnik, para a Semana de Poesia de Vanguarda, em Minas Gerais, onde conheceu os poetas concretos; trabalhou como professor em cursinhos, para depois viver como um hippie no Rio de Janeiro; e, ao voltar para Curitiba, ingressou na publicidade, foi professor de judô e um representante da contracultura de Curitiba, não se ligando, contudo, às linhas básicas de certa poesia marginal mais conhecida (a de Cacaso). De um autor com essas características e máscaras (personae) não se poderia esperar certamente um romance linear: e dar como subtítulo de Catatau a definição de “romance-ideia” é oferecer um resumo direto ao leitor – mesmo que ele tenha escrito na nota ao livro, “Repugnatio benevolentiae”: “Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se”. O recado parece ser de que o leitor desista de procurar uma narrativa em seu livro, mas que busque “ideias”, “linguagens”, “insights”, misturas de estilos. Catatau é composto por imagens características de “alegoria barroca”, como ele escreve em “Descordenadas artesianas”, dentro de uma “estética do desperdício”, conforme Severo Sarduy, nunca buscando algum centro, deixando o fluxo aberto à experimentação, através de uma sonoridade própria da tradição galego-portuguesa). O fluxo é contínuo ao longo das mais de 200 páginas sem parágrafos, sem personagens bem delineados, tramas internas ou sequências lineares. O mote inicial é apenas um motivo para Leminski anarquizar com a linguagem. Como escrevia Leminski, no seu ensaio “Anti-projeto à poesia no Brasil”, publicado na revista Convivium (1965): “A prosa poética é a corrupção da prosa: mais vale a poesia prosaica. Poesia prosaica, vale dizer, a tudo aberta, compreensiva. Os fazedores de poesia prosaica são os maiores inventores: Dante (…), Tristan Corbière (…), Ezra Pound. A adoção-compreensão da poesia prosaica era um passo à frente”.
Em Catatau, em meio a um aglomerado de linguagens configuradas pela “poesia prosaica”, encontra-se a admiração de Leminski pela mitologia grega, que antecede, afinal, o racionalismo cartesiano, onde ainda se separavam os deuses dos comuns mortais. A figura de Narciso, que ganharia relevo em seu livro Metaformose, permeia Catatau (as citações são muitas, mas talvez colaborem na interpretação do livro): “Narciso contempla narciso, no olho mesmo da água. Perdido em si, só para aí se dirige. Reflete e fica a vastidão, vidro de pé, perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ninguém olhando-se a vácuo”; “Olhos. Espelhos d’alma, Narciso está?”; Amores de Narciso: preciso: sair do espelho. Narciso, o ausente no lugar”; “No espelho triplo, se repete o eco e diz de novo que era assim”; “Alma, entra dentro de ti mesma, o alvo não passa de um espelho”, “Meu narcisismo anarquiza a alta conta, elevada estima e grande monta de consideração: uns catipiripapos, e a criatura fica parecida com a caricatura”. E define: “Anarquizo Narciso”. Parecem trechos saídos diretamente de Metaformose, escrito anos depois e deixado no fundo de uma caixa dada por Leminski à amiga e poeta Josely Vianna Baptista.
Em Catatau também estão o labirinto do Minotauro e Ariadne, sereias, Aquiles e a tartaruga, Zenão, Medusa, centauros, persas, Dédalos, Vênus, Hércules, Atenas, e Tróia; citações a filósofos (Sócrates, Platão, Aristóteles, obviamente Descartes). São traços de um universo filosófico e mitológico que se faria presente também em Agora é que são elas (1984), um novo fracasso do autor, no qual Leminski dizia trabalhar a ideia da impossibilidade de escrever um romance – quando a impossibilidade de escrever um romance linear já estava em Catatau.
A impossibilidade de escrever um romance linear vai certamente contra a figura de Descartes num livro como Discurso do método. Leminski desconstrói o método de Descartes, o mesmo que faria com as funções do conto nas teorias do russo Propp, em seu romance dos anos 80, zombando de sua filosofia (“Sou louco logo sou”), mas, ao mesmo tempo, o utilizando como mote para contestar a linguagem ditatorial de seu tempo. Como Cartesius iria descrever a razão lógica, que é filha da democracia, num país dominado pela ditadura (esquecendo-se aqui que a narrativa se passa na Recife holandesa, e se lembrando que Leminski menciona muitas vezes em Catatau a cidade de Brasília, arquitetada por Niemeyer)?
A falta de lógica se adensa quando surge o monstro Occam, para descontrolar ainda mais a linguagem do confuso Cartesius. Além disso, espalha referências à cultura polonesa pelo texto – afinal trata-se da espera de um matemático como Descartes por um polaco, Artiscewski (grafado de outras formas ao longo do livro). Mas Leminski está mais para as dúvidas de Descartes do que para a embriaguez do polonês em questão. Como Descartes faz em seu Discurso do método, Leminski, no decorrer de Catatau, fala de sua pretensa trajetória intelectual, desde a infância: “Letras me nutriram desde a infância” – como escreve Descartes em seu livro –, de impressões sobre bichos, máquinas e a sobre a função do corpo. Leminski não é Descartes, mas tem muito dele, tanto que se sente à vontade para zombar de seu trabalho, pois zomba de si mesmo. Afinal, se ele foi tão influenciado pela poesia concreta, ele possivelmente tinha uma mente em parte cartesiana. Com isso, se percebe em Catatau, como um contraponto à filosofia de Descartes, que tinha como objetivo discutir as questões metafísicas. Leminski, ex-seminarista do mosteiro de São Bento, se pergunta: “Como pode haver mais de um deus se sou só um eu, um sou?”. Há momentos que parecem recriados (e não transpostos) a partir de sua vivência no mosteiro de São Bento: “O pastor carrega suas ovelhas por dentro, interioriza o rebanho, assimila a páscoa e desaparecem pastor e rebanho”; “Naveguei com sucesso entre a higiene e o batismo, entre o catecismo e o ceticismo, a idolatria e a iconoclastia”; “Mosteiro comigo às costas, o caramujo cara de monge”. E há referência ao fato de a flora e a fauna do Brasil parecerem, ao olhar europeu, uma espécie de paraíso: “Dei dez pontos do pomo de Adão ao umbigo de não sei quem”; “Dor, no éden. Ser, em casa. Voz, debaixo dágua alguma”.
O mais interessante é que, como percebe Flora Süssekind, no ensaio “Hagiografias”, Leminski foi um dos poetas que mais se utilizaram de uma temática religiosa, algo bastante raro na literatura brasileira. Versos como “um deus também é o vento / só se vê nos seus efeitos / árvores em pânico / bandeiras / água trêmula / navios a zarpar”, até pedir: “me ensina / a sofrer sem ser visto” e consagrar: “a este deus / que levanta a poeira dos caminhos / os levando a voar / consagro este suspiro / / nele cresça / até virar vendaval” mostram sua inclinação a uma subjetividade baseada na formação religiosa.
A insegurança humana, misturada à religiosidade de Leminski, o leva a escrever os seguintes versos em La vie en close, desconfiando de si mesmo: “pedirem um milagre / nem pisco / transformo água em água / e risco em risco”; “desmantelar / a máquina do amor / peça por peça / onde luzia flor e flor / não deixar nem promessa / isto sim eu faria / se pudesse / transformar em pedra fria / minha prece”. Ou em “não são / são não / rogai por nós / para que não / sejamos senão”. Temos também, em O ex-estranho, aquela poética religiosa de ex-monge beneditino, que Leminski concentra no fundo de sua obra, percebida, com mais destaque, em “Sacro lavoro”, no qual ele lembra: “as mãos que escrevem isto / um dia iam ser de sacerdote / transformando o pão e o vinho forte / na carne e sangue de Cristo / / hoje transformam palavras / num misto entre o óbvio e o nunca visto”. Num outro poema do livro, “Tamanho momento”, diz: “nossa senhora da luz / ouro do rio de belém / que seja eterno este dia / enquanto a sombra não vem” e “nunca sei ao certo / se sou um menino de dúvidas / ou um homem de fé / / certezas o vento leva / só dúvidas continuam de pé”. No entanto, resta a esperança de “Sintonia para pressa e presságio”, de La vie en close: “Eis a voz, eis o deus, eis fala, / eis que a luz se acendeu na casa / e não cabe mais na sala”. Em “Profissão de febre”: “quando chove, / eu chovo, / faz sol, / eu faço, / de noite, / anoiteço, / tem deus, / eu rezo, / não tem, / esqueço”.
Leminski desconfia de um deus que possa salvá-lo, mas é visível que alguns de seus poemas são teológicos: eles falam de um deus que o poeta quer tornar visível, mesmo impossibilitado, chegando a um bom humor, em Distraídos venceremos: “eu ontem tive a impressão / que deus quis falar comigo / não lhe dei ouvidos / / quem sou eu para falar com deus / ele que cuide dos seus assuntos / eu cuido dos meus”. Os poemas de Leminski são densos e comovem, como a biografia que ele fez de Jesus Cristo, vendo essa figura religiosa antes de tudo como um poeta. Entre o Colégio São Bento e a fuga e a rebeldia, Leminski se situa no paradoxo da própria dúvida. Hegel afirmava que a religião tinha algo sublime: ela consiste em “não permanecer presa a nenhuma intuição ou deleite passageiro, embora anseie por beleza e bem-aventurança eternas”. O que ela procura é, em suma, “o absoluto e o eterno”. Leminski desconfia do absoluto e do eterno – mas sabe que no seu subjetivo a ordem cresce em sua escrita, precária e passageira.
Parece-me inadequado, com tudo isso, as referências mito-filosóficas e religiosas, ver Catatau apenas como um duelo entre o erudito (como as citações em latim, o discurso religioso, o pensamento filosófico matemático) e o popular (as brincadeiras com os provérbios). Isso dá a impressão que o livro é denso por um lado e rasteiro por outro, ou que é uma espécie de briga entre o erudito e o popular, o que não é o caso: Leminski mantém o ritmo e a consciência de linguagem ao longo de toda a obra, não deixando se impregnar demais pelo rebuscamento ou adotando uma espécie de escrita automática, nem caindo em gracejos – a brincadeira com provérbios, por exemplo, não tira a densidade do texto; os provérbios são subvertidos em prol de um experimentalismo da linguagem de Descartes. Se algumas vezes esse programa acaba cansando em alguns momentos, a linguagem consegue ser sempre ousada, com a sintaxe que se destacaria nos autores neobarrocos, com delírio da imaginação. Leminski mantém sua obra aberta. A linguagem de Descartes, atingida por Occam, por filosofias religiosas, por sonoridades plurilíngues, é afastada do racionalismo, da matemática cerebral e se aproxima de uma espécie de “sonho da razão” de Goya.
Por André Dick
A obra de Haroldo de Campos (1929-2003), como poeta, tradutor ou ensaísta, revela que ele foi um dos poucos autores que se preocuparam, de forma decisiva, com a desterritorialização da dita literatura brasileira, nunca respeitando, no bom sentido, territórios ou línguas. Em 2000, enquanto terminava sua tradução direta do grego para a Ilíada, o escritor publicou A máquina do mundo repensada, poema extenso, em que utilizava a terza rima. O objetivo de Haroldo era realizar uma crítica poética de grandes poetas (Camões, Drummond, Dante, Mallarmé etc.) e da física através do seu olhar de “cosmonauta do significante”, expressão com a qual João Alexandre Barbosa o definiu. Sua grande máquina do mundo, no entanto, vem acompanhada, na edição da 34, do CD Isto não é um livro de viagem, com produção de Arnaldo Antunes e lançado pela primeira vez em 1992, no qual Haroldo faz a leitura de 16 fragmentos. Seu título: Galáxias, um dos exemplos bem acabados de escritura (no sentido que Barthes dava a esse termo) de risco no Brasil, um referencial importante para a retomada do Barroco na América Latina a partir dos anos 1960, servindo de inspiração direta, por exemplo, a Catatau, de Paulo Leminski.
“Esta sua prosa é o demo!”, disse Guimarães Rosa a Haroldo quando este lhe mostrou trechos dela. “Prosa minada”, registrou Andrés Sánchez Robayna. “Fosforescências semânticas entre o branco do papel e o negro das letras”, conforme Octavio Paz. Redundante, superficial, monótona: também há muitos adjetivos negativos dados ao livro Galáxias desde seu lançamento. O principal detalhe é que suas páginas foram lidas por poucos, mesmo porque sua primeira edição, da Ex Libris, era bastante rara. Obra feita entre 1963 e 1976 (mas só lançada em 1984), dividida em 50 “rapsódias” ou “cantos” – como falava Haroldo –, e cuja primeira seleção maior de fragmentos foi publicada em Xadrez de estrelas (1976), ela é composta por um discurso quase ininterrupto, sem pontuação e com letra sempre minúscula, interrompido apenas pelo branco do verso de cada página. Esse discurso é aberto a qualquer ideia – de origem poética ou não – que se encaixe na experimentação pretendida. A obra aberta (que Haroldo via como “neobarroca”), na realidade, desestabiliza a linguagem corrente e rompe limites, sendo assim muito difícil de ser aceita. Mesmo Leminski, admirador da obra, apontou que em Galáxias caberia tudo. Por isso, Galáxias é um exemplo de livro que não pode ser entendido à luz da sociologia e da política, de teorias sobre como o subdesenvolvimento econômico interfere no plano literário – e isso, de certo modo, evidencia sua inutilidade. Trata-se de uma escritura (a escrita literária, para Barthes), não importando se de vanguarda, mas de um tempo, não tão distante, mas já nostálgico, em que se experimentava por vontade de recriar e não para somente reciclar ou se passar por vanguardista.
Mais do que partir do ponto de origem da escritura (a obra se abre com a sonoridade de “e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem”, que faria jus aos experimentos bíblicos de Haroldo), Galáxias se diferencia por trabalhar com o precário, o indefinido. Por isso aponta para o vazio. A ele se dirige Haroldo, através de um fluxo barroco de vocábulos, expressões raras ou reles (o plurilinguismo de que falava Bakhtin está todo ali), caracterizando uma polifonia poética capaz de dar a noção exata do que ele queria como projeto de vida: Galáxias representa a convergência entre a literatura que se diz brasileira com a literatura universal. O trabalho criativo de Haroldo é universal, como era seu trabalho teórico-crítico (A operação do texto, O arco-íris branco, Metalinguagem & outras metas, O sequestro do Barroco da Formação da literatura brasileira, para citar alguns de seus livros mais importantes nessa área) e de tradução (que abrange autores como Dante e Mallarmé). Daí ser necessário que sejam conhecidos Xadrez de estrelas, Signantia quasi coelum, A educação dos cinco sentidos, Crisantempo, Entremilênios e este Galáxias. O público, sobretudo o mais jovem, poderá conhecer melhor, assim, um autor capaz de mesclar erudição com uma paixão incomum – cada vez mais rara – ela poesia.
As leituras de parte da vida de Haroldo estão inseridas em Galáxias, razão pela qual essa obra também pode ser vista como uma cartografia de suas ausências. Haroldo ilumina e, ao mesmo tempo, elimina passagens de sua vida e de leituras através da escrita; onde ele se mostra presente, possivelmente é onde esteja mais ausente. A lembrança de Haroldo, num conhecido ensaio seu, de Goethe vendo o arco-íris branco como um sinal de uma nova puberdade, além de caracterizá-lo como fenômeno meteorológico, movimenta a escritura que se desprende de Galáxias. Trata-se de uma mesma revitalização: Goethe buscava descanso em Frankfurt, enquanto Haroldo vai tentar desaparecer junto com as palavras no papel em branco. O fluxo (de linguagem, de pensamento, de vida) de não pertence nem à mão que o escreve nem à representação da realidade que reflete essas experiências. Pertence, sim, ao sentido de dispersão do Texto (com letra maiúscula, como Barthes empregava), sua convergência para a morte literária, na qual a subjetividade do sujeito se mescla a leituras, sempre textuais, que ele realizou vida afora. Leituras, por exemplo, de Bashô (“o senhor bananeira bashô para quem uma peônia florindo podia ser um gato de prata ou um gato de ouro uma peônia florindo na luz”, em “poeta sem lira”); de Hölderlin (“aquela fala tinta de vermelho do senhor hölderlin”, em “neckarstrasse”); de João Cabral (“a febre é tanta e fezes que a escrita agora se reescreve”, em “hier liegt”); de Ezra Pound (“o velho poeta via ainda ou queria ver os punti luminosi mas sabia não saber nada”, em “mármore ístrio”); de Gertrude Stein (“neste fio de linguagem há um fio de linguagem que uma rosa é uma rosa como uma prosa é uma prosa há um fio de viagem há um vis de mensagem e nesta margem da margem há pelo menos margem”, em cadvrescrito”); de Homero (“a primeira tinta da aurora agora o rosício roçar rosa da dedirrósea agora aurora”, em “multidudinous”), além das referências à literatura greco-latina em geral espalhadas em muitos fragmentos e ao Le livre inacabado de Mallarmé. O sujeito, sendo o próprio fluxo da linguagem, transforma-se em constelação de outras galáxias, imagem que possivelmente agradasse a Haroldo, que foi um estudioso de Macunaíma, cujo fim, aliás, é estelar.
A pergunta que o possível (porque indefinido) autor, nesse caminho, se faz constantemente é: “O que é o Texto?”. Nesse sentido, Barthes dizia: “O Texto não é a coexistência de sentidos, mas passagem, travessia: não pode, pois, depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação” (O rumor da língua). Haroldo persegue a resposta por páginas e páginas, sem conseguir encontrá-la, pois ela inexiste. Nesse sentido, sua obra revitaliza uma escritura essencialmente dialógica, voltada para aquela enunciação ininterrupta de imagens e situações, vividas real ou literariamente, solucionadas nos espaços da linguagem e do imaginário. Haroldo tem consciência sobre o que escreve, pois foi um aluno (tardio) de Stéphane Mallarmé. Foi ele quem traduziu, no final dos anos 1950, a obra Un coup de dés para Um lance de dados (para “lance” se reproduzir em “lançado”). A epígrafe mallarmeana de Galáxias (“La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit”) mostra isso muito bem: a vida se movimenta também na “mobilidade da escrita”. Como tem essa consciência, Haroldo sabe que a modernidade é um projeto que destrói para renovar. Lembre-se que é um dos poemas mais importantes da modernidade, revolucionário a ponto de influenciar toda a crítica literária moderna. Nele, como observa Octavio Paz, Mallarmé ainda é simbolista, mas também já é moderno. Além disso, o poema mallarmeano também caracteriza a dissolução de territórios: através de sua linguagem ainda simbolista, já há um salto para o universo da música, apenas imaginado por Baudelaire em As flores do mal, mas não consumado.
Em Galáxias, Haroldo faz algumas dissoluções. Não me parece importante decidir sobre se a obra é prosa ou poesia, talvez a primeira pergunta que surja quando o leitor pegar o volume – e é a pergunta mais repetida ao longo desses 20 anos de seu primeiro lançamento pelos seus interessados. Paulo Leminski escreveu em “Prosa estelar” (Anseios crípticos 2) que entre “a força centrífuga da prosa e a centrípeta da poesia”, o livro de Haroldo “representa uma síntese, uma espécie de momento de repouso entre dois ímpetos que seguem em direções opostas”, mas afirma que nele “a prosa parece sair ganhando por pouco”, a prosa que Guimarães Rosa viu como “do demo” (muito sob influência de seu Grande sertão: veredas). Já Haroldo propôs que se trata de “um poema longo, uma gesta em escritura”, em certa entrevista recolhida em Metalinguagem & outras metas; no texto que acompanha a edição da 34 de Galáxias, escreve que é um “Audiovideotexto, videotextogame”, situando-se na fronteira entre a prosa e a poesia. O propósito de Haroldo talvez seja mais o de anular os gêneros, por meio da rarefação de sentidos, da desautomatização linguística e sintática, ele que foi um estudioso das teorias de Jakobson, Kristeva e Barthes. Um objeto híbrido, em transformação, indeterminado, pois o espaço do qual trata é sem fronteiras. A viagem se passa dentro da escritura, e dentro da escritura pode acontecer tudo – até mesmo nada acontecer (“como quem escreve um livro como quem faz uma viagem”). E, sob tal aspecto, sua aproximação é com o Texto digamos neutro, o grau zero da escritura que Barthes propunha. Galáxias não é nem uma coisa nem outra. Ela é tudo (poesia, prosa, relato, diário, carta) ao mesmo tempo.
O CD que acompanha a edição da 34 mostra que ele também tentava reunir o projeto da poesia concreta de ser “verbivocovisual” e o programa de Mallarmé: o salto para a música. “Sem o ouvido sutil de Mallarmé” (como Drummond diria em relação ao mestre francês), Haroldo no entanto se aplica como poucos na busca dessa sutileza musical, para transformar as palavras em música, como tentou, e conseguiu Caetano Veloso, em “Circuladô de fulô“, apropriando-se de trechos galácticos num de seus últimos momentos de recriação da MPB (é importante lembrar que, ao visitar Gil e Caetano no exílio, Haroldo lia a eles trechos de Galáxias). Daí a redundância proposital: o seu sentido é invisível, transcende o olhar do leitor, que se perde no acaso legível da escritura: abstrato como a música. O texto de Haroldo, como uma peça ao mesmo tempo harmônica e caótica, recorre a si mesmo diversas vezes. Não por acaso (imagem cara a Mallarmé), ele escreve no texto “ora, direis, ouvir galáxias”, texto que havia sido elaborado para acompanhar o CD Isto não é um livro de viagem: “[…] cada fragmento isolado introduz sua ‘diferença’, mas contém em si mesmo, como em linha d’água, a imagem do livro inteiro […]”. Não há dúvida de que Haroldo, aqui, relembra as “subdivisões prismáticas da Ideia”, do prefácio de Um lance de dados. A própria apresentação gráfica de Galáxias, sem parágrafos e pontuação, representa que há uma linha fina tênue, musical, conduzida do início ao fim. Ele não rompe seu texto (apesar do branco do verso de cada página), como não é possível resguardar o branco da página da ausência e da morte. Nesse sentido, ele adota, como bem percebeu João Alexandre Barbosa, uma “circularidade”. Seu ímpeto verbal também é feito de saques, do povo “inventalínguas”, convertidos imediatamente em linguagem: “a vida é também matéria de vida de lida de lido matéria delida deslida treslida tresvivida nessa via de vida que passa pelo livrovida livro ivro de vida bebida batida mexida” (em “neckarstrasse”). Essa conversão em linguagem tem um sentido visual muito apurado, tanto que Galáxias rendeu também um filme de Júlio Bressane, Galáxia albina.
Galáxias dialoga com toda a obra de Haroldo. Para notar isso, o leitor pode recorrer a um texto de Andrés Sánchez Robayna aproveitado em Signantia quasi coelum, onde o autor avalia que Galáxias dialogaria com todas as obras de Haroldo, sobretudo a partir de O â mago do ô mega (1951). Em Lacunae, seleção de poemas de 1971-1972, representa bem a página como galáxia: palavras espalhadas, como estrelas, sobre o vazio da página. Esse traço apenas se amplia em Signantia quasi coelum, como se o leitor avistasse a obra de um caleidoscópio. Embora se utilize da alegoria de uma jornada dantesca (como em Finismundo há uma alegoria da jornada de Ulisses), Signantia trata implicitamente da própria essência da escritura, ligando sua seleção à composição de Galáxias. Esta criação seminal de Haroldo também encontrará eco em sua tradução de Blanco, o poema mais ousado de Octavio Paz, e suas recriações bíblicas (A cena de origem é o exemplo mais direto, também por sua concepção gráfica) nos anos derradeiros de vida. E vai se proliferar nos poemas de A educação dos cinco sentidos, de Crisantempo e nos poemas mais recentes do livro póstumo, Entremilênios. Cabe destacar ainda, na edição da 34 de Galáxias, a longa bibliografia revisada do autor, que acompanha o livro, surpreendente pela multiplicidade.
Se havia alguma obsessão na obra de Haroldo, é que ele traduziu a morte para a página em branco da maneira mais completa, pois deixava se apagar, fazia com que sua origem proposta – a da escritura – fosse também a origem do Outro, da palavra que cerca a linguagem. Não havia “fora do texto”: havia “dentro do texto”. Ele se deixava falar apenas em sua linguagem. Se sua voz fica, em seu CD que acompanha Galáxias, é da própria ausência de que é feita seu texto. Ele, porém, não era um autor que privilegiava a fala em detrimento da escrita (característica contra a qual seu amigo e admirador Jacques Derrida se manifestava). Haroldo se anulava em sua voz pessoal, tanto inscrita quanto distante do papel. O que ele escreve, fala, se faz independente da sua figura humana, pelo espaço da escrita ou da música. Como Kafka, Haroldo sabia que era apenas literatura e não poderia nem queria ser outra coisa, ou seja, um “personagem” da melhor espécie, pois não apenas fictício. Em meio a essa busca, seu grande feito foi – e Galáxias demonstra isso – aproximar o rigor da síntese com a multiplicidade do barroco e do épico. Diminuiu a distância entre extremos, trabalhando com a solidão da página em branco, da ausência de qualquer exagero. Quando lê trechos de seu livro, Haroldo transforma-se em pó do cosmos (para utilizar a imagem de um poema de seu irmão Augusto), tornando-se, como a própria literatura, invisível. E quando lemos Galáxias sabemos que nós também podemos desaparecer junto com a sua textualidade. O êxito da obra talvez esteja em mostrar que o pai do texto – como queriam os estruturalistas – não está ali, mas os leitores podem procurá-lo e encontrar ainda um ponto de azul entre as estrelas, na linha de um espaço curvo. Ali ele deve permanecer esperando a chegada de outras galáxias, pois “o branco é uma linguagem que se estrutura como a linguagem seus signos acenam com senhas e desígnios são sinas estes signos que se desenham num fluxo contínuo”.